domingo, 4 de agosto de 2013

156 - FIDELIDADES * por Maria Luísa Baião..............




Foi opção tomada há quase quarenta anos e nunca senti até hoje o mais pequeno arrependimento. Hoje conheço-o por fora e por dentro, satisfeita, saboreio-o com o prazer que só a maturidade permite, sem pressas, no sítio, na hora e do modo próprios, que é como deve ser, até para não enxovalhar as roupas.

Procuro-o, propositadamente por vezes, sei não ser a única, e não me importo. Todo mundo sonha com ele, com isso, especialmente no verão, porque nos faz esquecer este calor incandescente consumindo-nos. Pena que nem sempre isso suceda, por vezes sabe a pouco, e aos pouquinhos, no entanto, acende-se a labareda e a boca diz ao que vem, uma e outra vez, insaciada.

Existe um prazo para que o desejo aconteça, atinge o auge, o zénite, o perigeu, entre cinco minutos antes do primeiro roçar de lábios até, no máximo, cinco minutos depois. Pavlov chamou-lhe reflexo condicionado, eu chamo-lhe desejo insatisfeito. Seja o que for faz salivar…

Raras ocasiões lhe fui infiel, no máximo dez, ou vinte, o que, para quarenta anos, não é nada.

E fiel?
Quantas ?
Quantos dias ?

Milhares por certo, não me venham portanto com paternalismos serôdios que eu já sou crescida. Para além disso, nos meus gostos e nos meus actos, ninguém manda, que ninguém meta a colher.  

É que é gostoso, não cansa, não engravida, é prático porque não precisamos tirar a roupa, não precisamos sair da festa, dá saúde, alimenta a carne e o espírito. É bom.

Não que ande a sonhar com ele, e até talvez por o ter em casa sempre à mão… mas quando tal não acontece, que desalento, que tristeza, não que esteja grávida, mas o desejo primeiro, a pertinácia depois, e então olha, persigno-me e é o primeiro que aparece.

E que prazer quando ele me delicia, não é o mesmo que com qualquer outro, com qualquer um a coisa é rápida, uma necessidade de satisfazer o desejo, com ele não, com ele a coisa faz-se render, durar.

O primeiro toque costuma ser suave, interrogativo, como que para sondar ou matar saudades, decente. Aos pouquinhos, no entanto, acende-se a labareda e já não há modo de parar, é uma coisa muito nossa, muito pessoal, quase uma maneira íntima de colher o sabor do que se gosta, de dizer mil coisas em silêncio.

A sensação continua a ser a mesma de sempre, a vontade igual, o sabor idêntico, não vejo portanto motivos para parar ou reduzir. Gente insonsa sempre disse que o que é bom e sabe bem, ou faz mal ou é proibido, pois, sim abelha, se tiver que morrer ao menos que morra feliz.

Há muitos anos era delicodoce, hoje continua doce e delicado. Dantes era predicado, hoje verbo, sujeito, acção, emoção e torvelinho. Chego a temer que seja um sonho, que venham buscar-me desse sonho, de me ver encurralada num sonho.

Já lã vão dezenas de anos, experts do marketing mudaram-lhe o nome, gente que nada sabe pensando que sabe tudo há-de acreditar que a fidelidade assenta nisso. Nada mais falso, a fidelidade é algo mais profundo.

Há um abismo imenso entre o que pensamos o que sentimos e o que fazemos, e eles não sabem, nem nunca saberão.

Poucas vezes lhe fui infiel, mas às vezes calhou, às vezes longe de casa, onde dele nem sombra, às vezes calhou. Mesmo contrariada, já tem acontecido, afivelo um sorriso irónico, peço-lhe perdão e zás, lá vai, e lá calha.

Claro que estranho, claro que não é a mesma coisa, por isso volto à minha fidelidade, à minha preferência, ao meu gosto. Os tempos mudam, os hábitos ficam e fazem o monge.

Agora chamam-lhe "Supermaxi", e numa dobradinha como dizem os brasileiros, ou numa dupla, como nós dizemos, promovem-no a super por um lado e a maxi por outro, como se a etimologia ou a semântica tivessem muito a ver com o gosto gelado da baunilha e do chocolate.

    Aceito que a nível mundial esse nome possa impressionar alguém, que venda mais, muitos mais gelados que "Delicô", como se chamava e não tinha tradução possível e portanto nenhum significado especial, pelo menos para mim.

Mas tendo-lhe sido mudado ou não o nome a minha fidelidade estava jurada.

Não havia nada como aquele gelado da Olá.  

 In Diário do Sul, Kota De Mulher, – Évora,  por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião, Publicado em 18-07-2005, pag. 4