domingo, 15 de maio de 2016

346 - CAVALGANDO AS ONDAS ...............................


A noite estivera enluarada e fresca, por isso a malta entretivera-se a largar os fios da amurada do navio pescando lulas e chocos até altas horas, a bem dizer até que arrefeceu demasiado e todos se recolheram aos respectivos beliches. Nem todos, os que estavam de quarto entraram ao serviço para preparar a largada do navio, o “NRP Pereira da Silva” regressara de uma longa viagem pelo Mediterrâneo e aportara aqui com um problema hidráulico no leme, mas o problema estava resolvido.

Eu cirandava por ali, curioso das fainas de cada um, dormira até tarde embalado pela ondulação da rebentação a que nem a amarração fugia e agora do sono nem cheiro. O frio atirou-me para o quente aconchego da sala do radar, na parte superior das obras mortas do navio, o comandante há muito traçara o destino e recomendara o rumo, que os especialistas apontavam na imensa folha de papel vegetal sem fim que o maquinismo ia fazendo correr na mesa, riscando-o nela com lápis dermatográficos pretos, vermelhos e azuis, uma mistura de cor e cera, não fosse o navio naufragar e a água apagar os vestígios das suas manobras. À falta de caixas negras e equipamento digital, lápis e papel à prova de água davam alguma garantia, desde que não afundasse a mais de cem ou duzentos metros, a partir dali chegar-lhe seria já um desafio.

Quando largámos ainda a ténue claridade da manhã fazia dançar nas águas as luzes de Lagos, ia eu pensando nela por já termos passado manhãs na Praia dos Índios, a Meia-Praia. Quando dobrámos a ponta de Sagres o mar mostrou-se encapelado e o rumo foi alterado de norte para noroeste, havia que fazer frente às vagas com a proa e não levar com elas de través no costado o que poderia tombar o navio. Pensava nela porque aquele contratempo não nos iria permitir chegar a meio da tarde a Lisboa, nem talvez ao fim da noite, e o fim-de-semana que há semanas ambicionávamos, esperávamos e combináramos dezenas de vezes iria uma vez mais por água abaixo, já que de água estamos tratando.


Muito antes da ponta de Sagres já nós apontáramos ao largo, lembrei-me então que seiscentos anos antes incipientes caravelas haviam cruzado estas mesmíssimas águas rumo a Alcácer-Quibir, onde estragaram o fim-de-semana, tal como horas depois de apontada a proa às ondas e rumando a noroeste ultrapassámos a linha imaginária nordeste/sudoeste traçada pela coragem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral uns bons anos antes.

Da sala de comando vinha a confirmação das posições que o sextante pingava e os radaristas de serviço anotavam, em relação a elas o equipamento observava varrendo tudo em redor do navio, e que no vegetal da carta era marcado como sendo o centro do mundo, centro marcado por uma luzinha a ele apontando, que o radarista marcava a vermelho, azul ou preto, a partir dali uma mesa mecanográfica calculava azimutes, milhas tragadas, nós galgados, velocidades e posições. Não havia GPS por essa época, nem GPS nem telemóveis nem SMS. Porém para mim o centro do mundo era ela e não aquela sala, a luzinha ou o navio, ou os pingos do sextante, era para ela que o meu rumo e o meu pensamento apontavam, as ondas alterosas só me transtornavam o caminhar, não o destino, sabia-a à minha espera nas Residências da Gulbenkian a Stª Maria, ou, se a deixassem, na Doca da Marinha, onde o navio atracaria. 

Para o adormecer e apaziguar enchi o bucho de azeitonas, salgadas atenuavam as náuseas e o vazio provocado pelos solavancos da embarcação, cuja proa se erguia ao embater frontalmente nas ondas para logo mergulhar a pique no vão criado pelo deslocar delas que num instante levantavam a popa, dando o navio uma queda de vários metros e fazendo-nos sair o estômago pela boca. Era demasiado, a nau poderia até partir-se em duas ao embater desamparada no fundo desse mar cavado, mais parecia um submarino que uma fragata, e as obras vivas, não raro, passavam mais tempo fora que dentro de água, era assustador e tenebroso. O comandante mandara rumar a Sesimbra mal fosse possível, e assim foi. Ali nos resguardámos dos vagalhões e dos abismos do mar, seriam umas onze horas da noite, talvez um pouco mais. 

Alguns de nós fomos a terra numa chalupa, invadimos cafés e restaurantes, todos tinham fome e sede, e a todos custava andar e equilibrar-se, como se o chão firme se movesse. Tentei ligar-lhe mas das Residências não atenderam. Não sabendo quando chegaria comprei num quiosque um postal ilustrado que ali mesmo preenchi e selei, uma cara linda por trás do balcão adivinhou-me o pensamento sorrindo-me maliciosamente.

- Como disse que se chamava menina ? Foi Zéza que disse ? Zézinha ? Bom fim-de-semana Zéza e não se esqueça de meter o postal no correio. Nunca lhe perdoaria !

Beijei o postal, sorri para a Zézinha bonitinha malandrinha marotinha simpatiquinha e pela cumplicidade adivinhada no seu olhar soube que não se esqueceria do meu recomendado pedido. Antes da manhã despertar o mar acalmara tão repentinamente como encapelara e rumámos finalmente a Lisboa e ao Tejo. Deviam ser umas dez ou onze da manhã quando passámos por baixo da Ponte Salazar. Não seria um fim-de-semana totalmente perdido mas, chegar e não chegar, formaturas, dispensas, atravessar o Tejo para a outra margem se atracássemos no Arsenal do Alfeite, antes das três nunca pisaria a Praça do Comércio, apanhar ainda o 32 até à Gulbenkian e jamais lá estaria antes das cinco da tarde, o que significava somente lanche, jantar e talvez uma soirée.

E assim foi, acabámos mão na mão, ombro no ombro, vendo um filme, “O Regimento Vermelho Feminino” * ou qualquer coisa assim, filme icónico e Maoista que era só o que passava no Cinema Universal, ali ao Rego, e onde já víramos “O Couraçado Potemkin” * outro filme de culto, à rua da Beneficência e onde passado o PREC e a euforia dos filmes vermelhos viria a funcionar o “Rock Rendez-Vous“, que tivemos o prazer de inaugurar assistindo ao concerto de Rui Veloso que dali lançaria a figura carismática do Chico Fininho.

Enfim, era uma rua cheia de animação e motivos para tal, onde ainda por cima adorávamos amesendar, quer fosse no “Bem Comer” ou no “Carne Alentejana” que nessa altura eram mais tascas que restaurantes e nem tinham os preços impraticáveis de hoje.

Foi vez única, nunca mais me separei da Luisinha até hoje, curiosamente quarenta anos depois voltei a encontrar a Zéza marotinha, a Zézinha simpatiquinha, bonitinha e malandrinha nada mais nada menos que atrás do balcão dos correios da minha terra, onde é a gerente, e à frente de uma catrefa de filhos, trupe que vai gerindo com parcimónia e harmonia.

Olhámo-nos, talvez demoradamente, eu de carta na mão, ela erguendo o carimbo, e de repente os dois, quase em simultâneo;

- Eu já vi esses olhos !
             - Eu conheço esse sorriso não lembro é de onde !

Quarenta anos passados ... A vida tem cada uma …