sexta-feira, 7 de julho de 2017

000443 - EU ADORO AQUELES OLHOS * ................

  Stevie Ryan, eu adorava estes olhos  :/  R. I. P.  



Escolhi aquele ramo porque era espampanante, tinha muitas e variegadas flores, multicoloridas, não tendo sido caro, o que parecendo que não nos tempos que correm também conta, não sei dizer-vos se havia alguma promoção, lembro vagamente a recomendação da florista para que não lhes faltasse com água e ainda recordo que ao segundo dia lhes começaram caindo as pétalas.

Talvez fossem flores com alguns dias de colhidas, ou recentemente retiradas de alguma estufa e vendidas baratas para mais facilmente as despacharem, talvez, mas no momento estava mais preocupado com o que me restava fazer e para o que não me sobrava tempo, no entreacto tentava fazer com que ela me percebesse, enquanto a cabeça gizava todos estes pensamentos em catadupa, daí que quanto mais pretendesse explicar-me mais confusa ela ficasse, até devido à gaguez, ora se há coisa que nunca tenha sido foi gago, mas o olhar insistente dela estava a enredar-me, a atrapalhar-me, e como um vulcão arrancava-me das entranhas recordações felizes mas esquecidas, e insistia, parecendo esboçar um sorriso ante a minha confusa trapalhice, mas como não se ela insistia olhar-me com aquele olhar estrábico que, tal qual há quarenta anos um olhar assim me destrambelhara, nos idos de 73... 

Foi como se eu tivesse voltado hoje ao mesmíssimo dilema, seria para mim que ela olhava e sorria ou seria para o cliente aguardando vez a meu lado ? Também estes olhos eram lindos e espelho de uma alma pura, mas seriam eles igualmente e deveras enganadores ?


Há bem mais de quarenta anos atrás eu sentira-me confundido, atrapalhado, enganado, porém era mais novo, um jovem curioso e apaixonado, curioso e corajoso, disposto a descobrir o que se escondia por detrás daqueles outros olhos que em simultâneo nos cativavam e iludiam, porque sim, porque a verdade é que também eu fora ao engano naquele baile em que me pareceu ela não tirar os olhos de mim, de mim ou do Bernardo que se encontrava a meu lado, na galhofa, e às tantas me sussurrou na voz rumorejada que era a dele:

- Baião, vai tu à estrábica que eu vou-me à mamalhuda sentada ao lado dela.

e quando a música arrancou assim fizemos, inda que eu tenha sofrido um choque ao aproximar-me pois não tinha ainda chegado perto e já ela se levantava surpreendendo-me. Primeiro chocara-me por não compreender a razão pela qual se levantara ela quando eu ainda nem lhe pedira para dançar, depois por ter tido uma daquelas repentinas crises de auto-estima e ciumeira ao não conseguir olhá-la nos olhos pois que ao fazê-lo senti assaltar-me o dilema da rejeição, ela olhava para mim ou para o Bernardo que avançava a meu lado embora dois passos atrás ? É certo que pelo menos um dos seus lindos olhos me fitava expectante e convidativo, mas o outro parecia contradizer de todo a leitura que eu fazia do primeiro.

Porém era tarde para parar ou desistir, e soltando um lamento e um apelo mais parecido com o rumorejar do falar do Bernardo lá consegui balbuciar um:

- A menina dança ?

Pareceu-me ela ter respondido que sim, contudo estendeu o braço na direcção do Bernardo, que avançara entretanto os dois passos que o separavam de mim. Recordo perfeitamente ter pensado o pior que fui capaz, puta que a pariu pensei eu enquanto os dentes se me cerravam e o rubor me subia às faces alimentado por um sentimento de raiva todavia sustida ao sentir a sua outra mão, e o seu outro braço cingindo-me pela cintura, enquanto a meu lado o Bernardo se aventurava com a mamalhuda, aliás uma óptima rapariga a Olívia, que já lhe deu três rebentos e quatro décadas de felicidade, comemorados no dia em que a sua segunda netinha veio ao mundo.


Quer porque ele se ajeitasse no regaço ou ao peito da Olívia, ou porque a banda tivesse soltado um I Love You mais forte, a verdade é que me dera um encontrão que acabou de vez com as dúvidas tidas e me colocou sem equívocos nos braços da Mariazinha, o resto foi acertar o passo ou os passos, para que não nos pisássemos, cuidado que ainda mantemos e partilhamos como nesse primeiro dia.

Passados alguns anos vim finalmente a saber que não, que ela nem olhara nem estendera o braço na direcção do Bernardo, que sempre me amara desde a primeira hora, simplesmente antes de corrigir o estrabismo, na década de oitenta, consultáramos com êxito um excelso optometrista de Badajoz, um dos braços tinha tendência a seguir o movimento do olho torto, daí a confusão que se gerara na minha mente, ela avançara firme e decididamente na minha direcção, há meses que esperava por mim, há anos jurou-me, ainda que o braço, pelo motivo exposto tivesse erradamente apontado à esquerda.


Acreditei nela e perdoei-lhe, mas fora eu quem se mexera na busca do especialista de Badajoz, não gosto de dúvidas, prefiro certezas. Dessa equivocada certeza nasceu este exemplar amor, comemoraremos dentro de dias o nosso quadragésimo aniversário de casados, é certo que ela não tem as mamas da Olívia mas em compensação tem-me igualmente feito feliz, e tem um olhar e uns olhos lindos, amendoados, e lá no fundo, lá bem no fundo dos olhos, quando lhe espreito a alma, consigo ver ainda a beleza do estrabismo que me levara ao engano nesses olhos encantadores, arrebatadores, amorosamente dúplices, sensualmente dúbios, que ainda me iludem e cativam.