terça-feira, 30 de abril de 2013

142 - Ó ABREU ABRE O CU QUE LÁ VOU EU !!...



 Após doença prolongada vim a saber. E realmente há uns meses que a sua pagina não dava sinal. Nem ele, a quem não via há um par de anos. Era bom tipo, a terra lhe seja leve. Tinha sido um bom amigo, daqueles desde a infância. Depois do caso dos cheques saiu daqui. Só nas férias o via. Bebíamos umas imperiais e dávamos dois dedos de conversa em que se colocava a escrita em dia e dizíamos mal de toda a gente menos de nós claro.

A vida fora-lhe um tormento. Não só desde o liceu. Primeiro por causa do nome e de todos o gozarem. Fechou-se. Tornou-se introvertido. Depois porque por um azar daqueles que só a divina ordem do caos explica se apaixonou pela mais extrovertida mulher que alguma vez vi ou conheci, a Dolores, mais conhecida, ainda hoje ela mesma o está sempre a lembrar, pela cabra de S. Mamede.

S. Mamede é uma pequena freguesia da cidade, toda a zona da ancestral mouraria, zona habitada especialmente por velhos e conservadores. A família dela era mestra nisso, e o pai, um conhecido e reconhecido professor primário, à antiga. Só Deus pode ter juntado duas almas tão díspares. O calado e introvertido Abreu (abre o cu que lá vou eu), hospedeiro de um parasitante complexo do tamanho da sé, e a Dolores, loira espampanante, extrovertida assumida e exagerada, cabeleireira, dada a exageros e a esturrar mesadas.

Conheceram-se no liceu, ele deve ter visto nela o contraponto a si mesmo, de quem não gostava. Sim o Abreu nunca escondera que não gostava dele mesmo. Era avesso a convívios, a novos conhecimentos e a amizades muito profundas (eu devia ser uma excepção). Dolores devia ter visto nele o lado que lhe faltava, ela que lhe era o reverso e já namorara todo o liceu, a escola de S. Gabriel e a dos padres. Não minto. Tanto assim era que quando o Abreu a pediu em casamento teve que ir ao beija-mão ou ter-lhe-iam rogado uma praga, os pais dela eram conservadores impenitentes, religiosos em primeiro grau, e antes mesmo de o Abreu ter acabado de formular o pedido já estava a ouvir da boca do velho um Deus vos abençoe meu filho, enquanto lhe passava o braço pelos ombros e o apertava contra si.

Dolores saiu de casa e a saúde do pai melhorou a olhos vistos, tendo ele vivido para conhecer a neta (foi minha aluna, parecia-se com a mãe, tinha o ar introvertido e macambúzio do pai, mas era muito inteligente e veio a tirar farmácia) e a ir à festa da sua formatura, isto quando toda a gente esperava que o velhote se finasse a qualquer minuto.

Coitado do Abreu. Fechou-se-lhe o cu. Era bom tipo. A próxima cerveja será bebida à sua lembrança. Isolava-se, mas fez carreira. Depois do liceu foi o único de nós que nada fez pela vida, mas esta sorriu-lhe. Até aos dezoito (e ao 25 de Abril) era ou fazia parte das milícias, um entretêm militar para jovens de que muitos faziam parte, uma espécie de mocidade portuguesa para crescidos. Com o 25 de Abril e a entrada na tropa foi-se arrastando e ficando. Afinal aquilo era o mesmo que a milícia, manobrar armas, conhecer armas, apresentar armas, tácticas e estratégias militares, infantaria e cavalaria, só que agora tinha um ordenado ao fim do mês.

A Dolores montou um salão de cabeleireira onde se cortavam mais casacas que cabelos e onde aprendeu a ter gostos caros. Esturrava cheques e jamais cuidou de saber se tinham cobertura ou não. Um dia o pai do Abreu, que lhos pagava, morreu, e os credores ficaram-lhe com o salão, a casa, o carro, mas deixaram-lhe a caderneta de cheques. Dolores refez a vida num ápice, e a crédito, que é como quem diz, a cheques, só que desta vez em Tomar, depois Castelo Branco, Viseu, Guarda, até que finalmente os bancos lhe recusaram novas cadernetas e a vida do Abreu, que pulava de quartel em quartel e só não conhecia as bases da marinha porque a Dolores detestava praia e areia, estabilizou.

Abreu mantinha uma página na net onde de três em três meses postava uma bosta, tinha os contactos e os mantinha com os amigos que, vim a saber, da cidade era eu e poucos mais, pois da juventude e de Évora eu era mesmo quase único. Vinha cá pelo S. João, raro sendo o verão em que não bebíamos umas imperiais e comíamos uma sardinhada a acompanhar, detestava os pimentões que eu adorava, tratava-me por Berto que era como eu era tratado desde a infância que repartíramos, e, o ano passado não aparecera e estranhara-lhe a ausência.

A nossa amizade, forjada desde a infância, nos bancos da escola, no liceu e um ano na Guiné, em Contabani, não era exemplar mas era sólida, eu era o único que não namorara a Dolores e dos poucos com quem ele se abria, bastaria que bebêssemos umas cervejas. Este S. João se falássemos de um amigo falecido tenho a certeza que diria já se lhe fechou o cu de vez coitado.

Nunca fez nada na vida e mesmo assim ou precisamente por isso finou-se como primeiro-sargento, bem condecorado e melhor medalhado.

Disseram-me que o funeral teve honras militares.

Coitado do Abreu. Fechou-se-lhe o cu de vez. Era bom tipo. A próxima cerveja será bebida à sua alma.


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