sábado, 11 de junho de 2011

57 - HORROR DOS HORRORES....



UM CAPITULO AO ACASO, UM CASO ENTRE MILHARES...    BAGDAD MARÇO / ABRIL DO ANO DE 2003

No percurso diário, do nosso sítio para os hotéis Palestina/Sheraton, passamos forçosamente, todos os dias, próximo à central telefónica que alimenta esta área da cidade.

É uma entre as muitas centrais desta metrópole gigante, precisamente aquela que nos canaliza para casa os telefonemas diários que, gratuitamente, a organização e o avanço da guerra ainda permitem efectuar.

Porém, o destino fadara mal aquele dia, aquela hora.

O velho autocarro avançava devagar, aos solavancos pelo trânsito super apinhado, como ele, também só velharias.

Repentinamente, à esquerda, estática sob o assobiar de uma sirene, som que em tantos de nós provocava autêntico mas diferenciado reflexo condicionado, uma mãe estaca hirta no meio de uma rua lateral.

Pela mão levava uma criança, caminhavam de mãos dadas, estugando os passos na pressa de cumprir o recolher e evitarem os acidentes dessa rua térrea.

Seriam umas vinte horas, mais minuto menos minuto, pois como veremos umas vezes um minuto não é nada, outras é todo o tempo do mundo que nos resta.

Um clarão, um estrondo enorme.

Depois de dissipada a nuvem criada, uma estrutura completamente esventrada.

Uma menina jaz no chão, a alguns metros.

Em frente, uma parede fica toldada de vermelho vivo, pedaços de mulher juntam-se aos destroços daquilo que fora uma central telefónica, numa rua super movimentada.

Onde somente o trânsito era caótico surgiu, inesperado, o caos.

O autocarro estanca, avança de novo, de novo os solavancos, depois pára.

No lugar forma-se um aglomerado.

A criança ficou estática, muda e de olhos fixos em coisa nenhuma, como se de repente tivesse perdido a visão ou o mundo tivesse deixado de existir para ela...

Instantâneo, o clarão deve ter cegado as duas, o estrondo da explosão, esse, só a criança o terá ouvido, se é que ficou em condições para tal.

Nunca mais nenhum de nós conseguiu qualquer telefonema para casa ou para onde quer que fosse, e perceberão porquê.

O velho autocarro que tomáramos para o nosso sítio, fugira ao trânsito desviando-se para essa rua secundária e esburacada quando, a cinquenta metros, a central telefónica foi atingida por um míssil, cientifica, diligente e cirurgicamente disparado, mostrando-nos que, se estávamos vivos, a esse desvio o devíamos.

Em redor, a destruição descomunal, pára por momentos a urgência de todos, só então reparamos que, nessa rua das traseiras, uma alva parede apresentava um rasto de sangue, terminando sumido na terra seca.

O corpo da mulher seria prontamente recolhido, a cabeça, que se separara do corpo, terá sido enrolada na mesma mortalha.

Uma criança ficara repentinamente órfã, de mãe e do mundo.

Disseram-nos que não chorara, que haveria de passar muito tempo até perceber o que se tinha passado, se é que alguma vez o estado catatónico em que ficara lhe permitiria entender esse minuto.

Talvez não, talvez fosse preferível que não.

Cumprindo ordens de populares que acorreram ao desastre subimos, o autocarro avançou de novo para libertar a rua aos bombeiros entretanto chamados ao local, e, porque um míssil nunca vinha só, pois já por que não raramente um segundo vinha emendar, ou confirmar a eficiência do primeiro, nada melhor que abandonar essa zona, e depressa.

Não por causa dos solavancos, cheio de náuseas, vomitei tudo e todos em redor.

Ninguém dizia nada. Ninguém disse nada.

Como nos habituámos depressa a esta normalidade.

É a guerra, dela nada há a esperar de bom, todo o mal é normal. 

Para trás, mau grado o risco que corriam, ficava um aglomerado que aumentava a cada minuto que passava, bradando a uma só voz contra o céu, esse lugar divinizado, em direcção ao qual ao longo de séculos ergueram as suas preces e agora lhes remetia crime e castigo. Porquê?

O mundo pode ser tão bonito, se quisermos.

Como é grande a força dos poderosos.

Já imaginaram quanto bem podiam fazer pelos mais fracos?

Uns morrem de operações cirúrgicas, outros de operações cirurgicamente planeadas.

Uns de ataques fatais, outros de danos colaterais. Nós portugueses, morremos em listas de espera, é menos chocante.

Sentimos que andamos sempre, se não com a tensão altíssima, no mínimo debaixo de grande tensão.

Quando chegarmos a casa, se chegarmos, todos prometemos tudo fazer para evitar males maiores e ajudar a todos no que puder e estiver ao nosso alcance.

Por aqui vamos fazendo o que podemos, as mais das vezes nada mais que não seja lamentar o que se passa, em especial nos hospitais.

Não entendemos já nem o que os nossos olhos vêem...


in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad "
- Ed NossoFuturo - 2005 - Humberto Baião - ISBN 972-9060-31-2