quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

626 - NATAL, FILHOSES ATROZES E ARTROSES…





Filhoses disse ela, e eu como sou um bocado duro de ouvido percebi filhotes.

- Agora querida ? Aqui mesmo amor ?

Pensando justificadamente estar ela a convidar-me para umas cambalhotas que cimentassem entre nós o compromisso, a harmonia, já que é dos livros que após uma cambalhota, por mais tempestuosa que seja sobrevém sempre a bonança.

Fazia frio e um vento gelado atravessava a estação cortando tudo e todos no caminho, como se corresse desembestado nas estepes ou antes na tundra gelada do Árctico e nós caminhando sobre permafrost escorregadio, como nalgumas situações delicadas em que me tenho visto enredado.

Tudo por causa da chuva, da chuva e da minha precipitação. Na pressa de cuidar duma caixa com filhoses derrubara-a, ora sucedendo serem as filhoses por natureza tão frágeis quanto uma relação recente, logo ali surgiu de modo inesperado um motivo ou um ensejo para o primeiro conflito.



Eu travara bruscamente, o piso molhado e a eficiência do ABS fizeram o resto. Mais valia ter batido no carro da frente em vez da caixa das filhoses e de um outro saco também com elas terem sido projectados e bruscamente acordados do seu inercial sossego.

Ainda tentei agarrar a caixa, mas o meu gesto acabou por ser mal entendido, mal percebido, desajeitado e inútil. A caixa caiu na mesma, com a agravante dela ter deduzido ou julgado estar eu a tirar-lha bruscamente das mãos, julgando-a incompetente para acudir a uma caixa de filhoses.

Não foi nada disso mas foi o que pareceu, o que a ela pareceu, pelo que a situação virou tensa e todos sabemos como as filhoses são frágeis e se partem à mínima tensão a que são submetidas. Apesar de tudo sorri, talvez o meu sorriso não tenha passado de um sorriso amarelo mas na situação foi o melhor que me ocorreu, que mais poderia eu ter feito ?

No momento e dada a sua fragilidade nada. Com tempo, tempo teria para lhe explicar os meus motivos, as minhas razões. Porém estabelecera-se entre nós uma frente fria e um centro de baixas pressões, podia ver-se na cara gélida que ela afivelou e vejam só o que me ocorreu, por falar em fivelas me lembrou esta minha incansável e por vezes perversa mente de lhe oferecer uma fivela nova para o cinto da gabardine preta que ela tem e adora, mas cuja fivela tem o gatilho partido obrigando-a a cingir a estreita e esbelta cintura com o nó no dito cinto.

Por mim e dada a situação gélida que se criara tudo serviria para a combater, desde um centro de altas pressões a leste dos Açores a um gesto magnânimo como estender-lhe o blusão aos pés para que não molhasse os sapatinhos, dado estar tudo cheio de poças derivadas da forte chuvada que se fizera sentir e cuja tormenta se abatera sobre nós. Não, não sob a forma de granizo mas imaginem, sob a frágil forma de filhoses e pastéis de grão desfazendo-se sob a tempestade, dentro de uma caixa e de um saco de plásticos tóxicos.

Estava criada uma situação tóxica que havia que combater, pelo que uma vez em casa me agarrei à NET e pesquisei quem sabe disto, isto é como foi, como se combateu o desastre de Bhopal, de Chernobyl e de Fukushima, tendo sido aí que aprendi sermos por vezes obrigados a confiar nas mãos do destino ou simplesmente juntá-las e orar, esperando que a situação desanuvie, se acalme, e as alminhas nela envolvidas tenham mais em que pensar e a coisa, digo o desastre, caia no esquecimento.

Eu sou de antes quebrar que torcer mas não sou de esquecer pelo que, pelo sim pelo não, rodeei-a de mesuras embora tenha tido, e confesso, a felicidade de ter sido obrigado a comer as filhoses e os pastéis todos sozinho, uma vez que ela por capricho desdenhou da coisa, digo dos doces feitos em frangalhos e que com gulodice fui comendo todo o fim-de-semana, à colherada.

Tanto me esmerei e a mimei que fui prendado com umas Peras Bêbadas que ela faz maravilhosamente, agora com tintos alentejanos e geleia de marmelo também por ela confeccionada. Estava esquecida a coisa pensei eu, mas pensei mal porque parece que as mulheres têm o dom, e nós a desdita, de nada esquecerem, pelo que volta não volta o meu brusco gesto em defesa das filhoses vem à baila não sabendo eu como me penitenciar de tal mal-entendido.


Já esperei pacientemente que três ou quatro velhinhas atravessassem a passadeira sem as atropelar nem assustar, já paguei um pequeno-almoço a um ciganito ranhoso, dei uma moeda grande para o peditório da liga, um kg de açúcar, outro de farinha, de arroz, de esparguete e duas garrafas de óleo e três de azeite puro de oliveira para a Janete do Banco Alimentar, já fiz trinta por uma linha para me redimir do erro mas ela continua impassível ante tanta generosidade minha.

Só pode ser influência da Greta, das alterações climáticas, pois o degelo que eu forço nem tem adiantado nada, nem sequer aumentado o nível das águas dos mares, nem a tem demovido da sua convicção de que eu estaria simplesmente a ser bruto quando de forma brusca e brutal tentei evitar o desfazer das filhoses que me estão a foder a cabeça este Natal.

Vamos com calma, ela é meiguinha e vai ser atacada com as suas próprias armas, eu sou manhoso que baste e não irei descurar nenhuma oportunidade. Entretanto viera aproximando-se a passos largos e com pezinhos de veludo o Natal, o jantar no Madureira, a feira que as luzes pintam na cidade que é a dela, exibindo e exprimindo desejos, flores, rosetas, volutas, cornucópias, ovais, elipses, e um frio de rachar.

O gelo deverá ficar quebrado, tal como as saudades da netinha, um milagre na quadra e nela a minha redenção, conseguida na confusão ébria da felicidade por ela vivida e a fez esquecer-se, esquecer-me, esquecer as filhoses, os pastéis de grão, as passas e as nozes. O planeta voltou a girar sobre o seu eixo sem inquisições, inquirições, interrogações ou declinações, a 21 o equinócio cumpriu-se, a paz voltava à terra, mais 4 dias e o Menino aí estaria, o burrinho, a vaquinha, os reis magos, a estrelinha de Belém e porém, a mim que nem crente sou esta constelação bafejou-me por contágio, foi ungido.

E esquecido o sacrilégio inventado, flores brotaram, os sorrisos floriram, luzes piscaram e cintilaram, de novo se estabeleceu a concórdia e em frente que atrás vem gente, na noite das vésperas lá fomos de braço dado e corações ao alto assistir à Missa do Galo na igreja da Misericórdia, perdoai-nos Senhor se nos confundimos, se nos encandeamos, zangamos, lutamos e fodemos todos uns aos outros.

 Amém.



625 - O ROMANCE DA PALHINHA DA MILINHA ...





Vive no Algarve ao alto da praia do Vau e de onde, manhã cedo, adora ver o mar que o Infante conquistou enquanto toma o pequeno-almoço.

Na larga chávena de leite com chocolate inventa o mar e as ondas enfrentadas pelos marinheiros de então, agitando o leite com a mesma palhinha plástica por onde sorve a beberagem que a marinhagem não tinha mas havia de trazer num torna-viagem, o célebre chocolate com que ela se delicia.

Não fosse a mãe chamá-la na pressa de a levar para a escola e a Milinha ficaria horas olhando o mar e inventando histórias de mares e de mostrengos, de fogos de S’Antelmo e d’outras diatribes tais que a professora Benevides lhe ensinava e contava pacientemente nas aulas.


Às aulas Milinha preferia as histórias, ouvidas ou inventadas, pegando as naus imaginadas pela ponta do mastro, a tal palhinha servindo-lhe de bebedouro e por onde sorvia a beberagem dos marujos dizia ela, até que um dia…

 Até que um dia, depois do sorvo final e do qual gostava de ouvir o som rouco da palhinha sugando o ar acabado o leite com chocolate, xxxxrrrrrrrrrrr, ao pegar nela e no preciso momento em que a atirara para o balde do lixo se lembrou;

- Que viagem faria aquela palhinha, aquele mastro de cesto da gávea se á deriva fosse deixada ?

 E disso se foi lembrando p’lo caminho, e na escola toda a manhã, até que aos poucos e devagarinho foi riscando num mapa mundi que o paizinho lhe arranjara, o percurso da deriva imaginada dum mastro levado por medonha tempestade e arrancado á Nau Catrineta, digo à palheta ou a palhinha que em cada dia ela atirava, não para a gaveta donde as retirava, mas para o balde de onde se sumiam da sua vista e consciência.

A verdade é que dia após dia e com a ajuda do professor de geografia e da amiga Bia, lá foi marcando, escrevendo, anotando e registando o inimaginável e sinuoso avanço da palhinha. A coisa começou sendo sabida primeiro na turma, depois na escola e aos poucos todos e cada um vinham acrescentando uma hipótese, todas elas plausíveis e como tal todas elas registadas, já que era suposto e admissível a cada uma dos milhares de palhinhas ter uma deriva, digo um rumo, um percurso diferente das demais.


Até os pais, desejosos de participar na aventura da palhinha sugeriram á Milinha que somasse, ou pelo menos tentasse por alto calcular qual o número de palhinhas nesse dia em movimento, em deriva, pois tantos mastros haviam de ser muitos mais que pinheiros teria o pinhal de Leiria. E assim fez a Milinha, coisa de que incumbiu igualmente toda a turminha, dando o mote ou o pontapé de saída para a corrida dos números, números inteiros, números primos e não primos, pois havia que apurar a verdade verdadeira, como muito bem disse a professora Piedade, que professava matemática e há muito esperava com ansiedade por uma oportunidade de participar na demanda, dela se servindo para motivar na aprendizagem as mais burrinhas das suas educandas.

Praia do Vau, em Portimão, palmeiras, 90.000 habitantes, e se um terço deles fossem crianças seriam elas 30.000, e se um terço desses milhares de crianças usasse palhinhas, seriam 10.000 as palhinhas atiradas cada dia com ousadia para os baldes ou lixeiras.

10.000 palhinhas por dia Milinha ! Dez, vezes 365 dias, dariam qualquer coisa como 3.650.000 palhinhas ao ano só em Portimão. Era muita palhinha. Eram demasiadas palhinhas. E quanto pesariam lembrou nos dias seguintes a professora de ciências, uma loira de Avintes. Com um peso de 3 gramas por palhinha X os tais mais de 3 milhões delas, seriam nada mais nada menos que Y toneladas. É muita tonelada, muitas mais que sardinhas pescava a traineira do paizinho do Morais, pescador e pecador diria o Padre Amador, que amava o senhor Deus e os demais.

Ademais com tanta palhinha à solta ou á deriva, algumas escapariam de ser enterradas no aterro Municipal, uma estrumeira descomunal, qual delas de todas a maior, já que quaisquer cidadezinhas as tinham, de Portimão a Campo Maior. Foi quando a Guiomar se lembrou de imaginar o percurso aleatório duma palhinha ocasional, fugida a um aterro monumental e andando p’la vida aos trambolhões, como se ao desterro tivesse sido condenada pelos beberrões.

Suscitou pesar, choro e Lágrimas entre a turma a sorte dessa palhinha perdida, e logo cada um se pôs a cismar o que lhe aconteceria até chegar um dia ao mar. Choveram redacções e composições que o professor Simões viu e reviu, gabando ou criticando o português de cada aluno e chamando a atenção para a língua pátria, para a gramática, a sintaxe e a semântica.

Que coisa mais romântica pensou a Milinha, sugerindo á turminha a compilação dos textos e que lhes dessem o nome de Romance Da Palhinha. Coisa mais engraçadinha. E já agora também eu vou meter a palhinha, ou melhor meter a perninha, o pezinho ou a mãozinha nesta história da palhinha, e juro oferecê-la á Leonor, a minha já nada pequenina netinha, ela como eu amante da palhinha, digo e emendo para que não haja confusões, amantes de chupar pela palhinha, digo chupar o leite ou qualquer outra bebida pela coisinha, pela palhinha.

Esclarecidos e esclarecidas ? Não quero aqui confusões !

E vai daí choveram lições, Isto é textos com milhentas razões pelas quais não devemos usar as simpáticas e práticas palhinhas, as piores inimigas dos animais em terra e nos ares, nos mares e oceanos, aspecto que atingiu dimensão tal estando fazendo dos humanos autênticos seres, mas desumanos. Pensemos e oremos pois a Isabel Avó, uma menina pequenina escreveu sozinha ela só, a história da palhinha Verdinha, uma história de meter dó e peninha. Ora vejam só;

Levada ao acaso pelo vento da mesa da Esplanada do Parque como se soprada por um cata-vento, a palhinha Verdinha rolou, voou, rebolou por um momento, até cair num terreno lamacento onde ficou a coitadinha da nossa palhinha Verdinha. Ali esteve dias, semanas e meses, até que um cão rabugento raspando o chão em busca de ossos, soltou do seu tormento e cativeiro a tal palhinha Verdinha, que nem um momento hesitou e se levantou para de novo e logo ser arrastada p’lo vento.

Todavia pouca sorte teve, pois foi parar a um tubo de descarga que na estação de tratamento de esgotos a descarregou, um sítio deveras fedorento que a aprisionou e donde só um milagre a soltou. Valeu-lhe ser magra e esguia, comprida e fininha, magrinha, flexível e ginasta contorcionista, o que lhe permitiria passar apertadinha entre os intervalos de uma rede já gasta, para de novo se encontrar livre a atribulada palhinha Verdinha, para que logo depois de novo uma rajada de vento pegasse nela, apesar de suja e mal cheirosa. Contudo na ânsia de ser livre, mesmo assim voou, voou, levantou e aterrou.

Voou, voou, levantou e aterrou, até que num golpe de sorte amarou em rio do barlavento algarvio, o qual lhe deu banho e ao mar a entregou, quando chegado á foz desaguou. Até que enfim o mar, o mar primevo onde tudo começou, a primeira célula, o primeiro ser vivo que do mar galgou para terra, evoluiu e viveu milhares de milhões de anos, até aprender ou desaprender a beber por mim, a palhinha Verdinha, verdinha como a cor que eles humanos elegeram na defesa de um ambiente limpo e são, mas que raio de contradição.

E de contradição em contradição caminha para a perdição o ser humano, anuiu Sebastião Transmontano, filósofo e coveiro no cemitério dos Remédios, onde acabam por ir parar aqueles para quem a vida não encontrou remédio ou condenou, c’o amianto, c’a legionela, com os gases de estufa, com as mil e uma doenças que as alterações climáticas com que as agressões ao ambiente ripostam, qual vingança contra quem sem pudor e sem vergonha, como ferro que brilha mas oxida, enferruja, devolvendo-nos todas as malfeitorias de que contra este mundo somos capazes de urdir e perpetrar.

Perpetrar e não amar, o busílis da questão. Quanto às palhinhas verdinhas, amarelinhas, azulinhas, vermelhinhas ou branquinhas, matam nos oceanos tudo que se lhes atravesse na frente, dizem-nos com palavras e vídeos a Isabel Avó e a Greta. Matam que se fartam e são aos milhões, caso para termos pesadelos e visões. Saberemos nós quantos animais essas palhinhas e outros objectos plásticos diariamente matam ? 

E tu ainda usas a palhinha ou vais mudar de intenções, de práticas ou de orações ? E são Veras essas tuas intenções ? Parabéns á Zabelinha e á Milinha e a quantos deram azo esta pequena historiazinha.

Milhões de beijinhosss <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3