quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

566 - LIDES DOMÉSTICAS, By Maria Luísa Baião *



Olhou-me demorada e ternamente. Eu retribui o carinho passando-lhe a mão pela cabeça, de arrepio, coisa que sei não gostar. Uma provocação portanto. Retraiu-se um pouco, fugiu ao meu gesto e ajeitou-se melhor no sofá onde desde o almoço se estendera ao comprido. Tem uma propensão nata para a mandriice, então aos fins-de-semana, dias em que estamos todos em casa, até para comer tem preguiça e vai fazê-lo quase a dormir já.

Perdoo-lhe a preguiça nesses dias. É que não gosto, quando arregaço as mangas e me atiro a algumas das actividades que cabem às “domésticas” e com as quais embirro solenemente, que se atravessem à minha frente e me quebrem o ritmo. Contudo acho que se não for eu a diligenciá-las ninguém as fará melhor. Sempre detestei essas actividades, tenho mais e melhor com que me entreter, ocupar o tempo, com muito mais proveito para mim e para os outros. Mas tem que ser.

O barulho do aspirador é incómodo, dá uma volta no sofá, esconde a cabeça e as orelhas, buscando ignorar-me e ao frenesim que arrasto, cujo tumulto sabe ser somente uma questão de minutos. Por outras palavras, torce-me o nariz. Essa coisa dos olhares ternos vai bem desde que não incomodemos. A ternura, como vêem também tem limites e condições. Não me chateies que eu faço o mesmo e ainda te pago com algumas meiguices. E eu julgando essa ternura ilimitada e incondicional.

Estamos sempre aprendendo. Modelamo-nos é o que é, adaptamo-nos às situações como os náufragos se adaptam às bóias e coletes salva-vidas.

O aspirador lá se vai esforçando, como um asmático. Espreito à janela, na paragem do autocarro uma velha fala sozinha. Eu pensando sozinha. Crianças pobres brincam umas com as outras, como eu quando pequena. Saltam à corda, brigam-se, apaziguam-se. Bate-me o coração por vê-las, sinto-me cansada, deve ser deste tempo, carregado de humidade. Aproximo-me da janela, os vidros embaciados, desenho um círculo com a mão e espreito. Oiço o aspirador, há muito tempo sorvendo desacompanhado, distraído, distraída eu, oiço o relógio da sala, olho as horas, recomeço a azáfama. Dizem que os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.

Contemplo o meu reflexo na janela, o círculo como um espelho, pareço uma mulher resignada, não o sou, somente detesto estas lides perfidamente repetitivas. E a preguiça estirada no sofá como uma ofensa, um ultraje a mim mesma dirigido e eu, parva, voltei a passar-lhe a mão pela cabeça e de novo fui presenteada com igual indiferença.

É dia ainda, trovoadas e sombras da noite espiam-me por essa janela. A chuva na intimidade dos vidros mostra-me os brilhos da rua, inundada de água. O meu olhar torna-se silêncio, relembro promessas neste tempo lento de horizontes parcos e toma-me uma saudade imensa das palavras, de sons, de vozes quebrando o quebranto e tomando-me de assalto os sentidos.

O tempo e os sentidos, os mesmos que nos escondem na alma paixões de ontem, de hoje e de agora. O corpo confessamo-lo quando a hora chega. Querendo o desejo faz das palavras silêncio e limite do que permanece, como as águas límpidas do mar oceano. Os gestos como reflexo dos sentidos, e em cada pensamento o amor que nem o corpo nem a alma querem esquecer.

Penso nalgumas árvores que o Outono pinta de vermelho quente e recomeço as lides pondo fim ao vogar do espírito. No ardor de terminar lavo-me de fantasias, meditação e imaginação, medos, fobias e taras.

Afago-lhe de novo a cabeça, eriça o pelo, arqueia o dorso, salta para o chão, roça-me as pernas e solta um miar curto e baixo. Já sei o que quer. Esta minha gata é um espectáculo, só lhe falta falar !

NOTA: * By Maria Luísa Baião,‎ escrito segunda-feira, ‎30‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎pelas 12:22h e provavelmente publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER nos dias seguintes.  

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

565-MAL TE VEJO, A JANELA, ABRE A JANELA...



Solução, fazer conversa. Fiz conversa, uma vez mais. Encostei-me às caixas dos dióspiros e tergiversei, aparei-lhe os golpes e tive cuidado de não desferir nenhum que a pudesse magoar. Nada mais me resta que empatar, empatar até ela perceber que não, não é o momento nem é já tempo de refazer o que nem chegou a ser feito. *
  
Na manhã seguinte houve fita, cena, a Gina atirou-se de cabeça e, sem que eu o esperasse, solicitou-me ligação para uma chamada vídeo, pela webcam, vocês sabem como é. Estranhei, ainda por cima tão cedo, sou exageradamente madrugador, quer dizer, a minha Mimi é que me acorda matemática e diariamente sem falta às 7:00 da manhã, parece ter engolido um despertador o raio da gata, pula-me em cima até que eu me levante, abra as janelas, os estores, e lhe dê o pequeno-almoço, depois se quiser posso voltar a deitar-me que ela já não me incomoda, mas quem vivendo sozinho e depois de um despertar destes quer voltar à cama ?

 Fui atraído pelo trim trim da campainha pedindo a ligação da chamada,
  
- Raios, a esta hora, o que será, quem será ? Deus queira que não seja merda, nem a barba ainda fiz caraças.

 Não me enganei muito, não errei de todo, era a Gina dando-me os bons dias, digo insistindo no colinho, toda ela sensualidade e sedução, toda ela tentação, como se eu tivesse dezoito anos e as hormonas repentinamente aos saltos, eu aos saltos contente por vê-la e ela sábia e calmamente escovando os lindos e compridos cabelos, a escova descendo devagar, acompanhando a fila de botões da camisa indolentemente entreaberta e, pela abertura espreitando, dois seios envergonhados, tímidos, receosos de serem vistos, assomando, mostrando-se mas não querendo ser vistos.


  
 Esqueci-me do diálogo, lembro apenas ou somente que eles e eu espreitando, e ela linda até àquelas horas matinais,

  - Há pouca luz, mal te vejo, a janela, abre a janela.

  e ela, sabida, escondendo ainda mais o que desejava mostrar-me e os cabelos compridos escondiam, o que a camisa mal aberta ou mal fechada escondia, a tentação vergando-me, eu resistindo e a escova insistindo, deslizando, demorando-se onde ela sabia dever demorar-se, as unhas compridas, cuidadas, de um vermelho lindo, vivo, toda ela linda, um anjo, uma anjinha, e eu pecador me confesso, resistindo, tivesse eu vinte anos e isto não ficaria assim, ou fosse eu artista e pintá-la-ia como alguém pintou Ana Maria, ou a “Origem Do Mundo” acho que foi Courbert, Gustave Courbert, e ela teimando, e eles espreitando-me, eu espiando, perscrutando avidamente até que, envergonhado da minha própria figura, irritado com a minha própria fraqueza me enchi de brio e de coragem, desliguei repentinamente o PC, preparei uma desculpa para quando ela me confrontasse com o corte abrupto da chamada, levantei-me, enchi o peito de ar satisfeito comigo mesmo e,
  
- Ainda não foi desta que me deram a volta, ando distraído, tenho que ser e estar mais atento à tentação, tenho que me respeitar, que me dar ao respeito a mim, sim a mim que já não tenho idade para estas coboiadas, vai mas é ter juízo Baiãozinho ou Bertinho como alguém certamente me aconselharia.

  

E fui, fui ter juízo, aqui estou eu pecador impoluto, pronto para outra, venham mais cinco, traz uma amiga também, não há crise, nem receio, só é frágil quem quer, só cede quem quer, nunca cedi, nem à primeira, nem à segunda e muito menos à terceira.
  
Mas honra lhe seja feita, a Gina está excepcionalmente bem conservada, ainda há Deus valha-me Deus.
  
Fulcral é que não a magoe, quanto ao resto é fácil, basta mudar de hipermercado. Tenho certeza que se deixar de vir aqui será pouco provável voltar a encontrá-la, no entretanto ela arrefece e trava os ímpetos, como se tivesse mordido um dióspiro verde, e eu trato da próstata, evito ficar mal visto, ter uma nega, uma fraqueza, porque tal qual diz o velho ditado, o que os olhos não vêem o coração não sente.

Ora o melhor será a Gina ir tirando o cavalinho da chuva, sucede que não tomarei nenhuma resolução enquanto sentir este aperto na válvula mitral, este aperto no coração, este pranto que pronto largo à mínima lembrança, esta saudade que me atravessa e dilacera, esta presença constante, esta Luisinha que ainda amo como se fosse ontem e continuarei a amar.
  
- Ainda não foi desta que me deram a volta Luisinha, verdade que ando distraído desde a tua partida querida, tenho que ser e estar mais atento à tentação, tenho que me respeitar, que me dar ao respeito a mim, sim a ti e a mim que já não tenho idade para estas coboiadas, vai mas é ter juízo Baiãozinho ou Bertinho como tu certamente me aconselharias.

 E fui, fui ter juízo, aqui estou eu pecador impoluto, pronto para outra, venham mais cinco, traz uma amiga também, não há crise, nem receio, só é frágil quem quer, só cede quem quer, nunca cedi, nem à primeira, nem à segunda e muito menos à terceira.

Porra, os aborrecimentos que tudo isto me tem trazido, estava capaz de morder uns dióspiros só por desfastio, e cuspir as sementes para bem longe …



https://mentcapto.blogspot.com/2019/01/564-os-diospiros-e-os-amargos-de-boca.html

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

564 - OS DIÓSPIROS E OS AMARGOS DE BOCA…



Era uma vez, há muitos anos, um dia sem sol em que saíra de casa para ir trabalhar mas quis o destino que não fosse. Seria um dia normal, oito e meia da manhã, dia em que ao sair do prédio deparei com três malas à porta, retrocedi mas a porta fechara-se, ela fechara-a. Busquei as chaves e nickles batatóides, tinha-mas tirado, estava a ser despejado. Um homem não verga, embora fervendo galguei as malas e meti-me no carro jurando que ela não se ficaria rindo. 

Não fui trabalhar, fui fazer p’la vida, arranjar poiso e lugar para as ditas. Ela havia de levar uma lição. Não havia provas de nada, ela estava a basear-se em dúvidas, mas as dúvidas podem ser piores que as certezas, em especial as filosóficas dúvidas metódicas… Olhei para cima, vislumbrei-a sorrindo por detrás dos cortinados e arranquei fazendo um pião e com que os pneus chiassem. *

Sair de casa era portanto a solução e tudo que não coubesse na bagageira do carro era excesso, com o tempo fui abandonando o cariz materialista e fui-me tornando tão espartano de hábitos e exigências, quão estóico na capacidade de sobreviver com meios limitados e em condições adversas.

Eu detestava dióspiros e a Gina sabia, por isso estranhou ver-me ali em redor deles apalpando-os, sopesando-os, olhando-os. E cercou-me, digo acercou-se.

Naturalmente eu procurara saídas, uma delas num segundo andar da periferia e sem elevador não augurara nada de bom para mim, quase nos quarentas, ainda se ela fosse enfermeira... Mas não era. 

Outra não tive a menor duvida quanto a uma boa localização e centralidade, contudo a inexistência de uma garagem deitou por terra todas as minhas aspirações, não podia dar-me ao luxo de deixar a moto na rua, e onde guardar os capacetes e os fatos de cabedal ? 

Uma terceira era, ou teria sido o paraíso, quinta no campo, espaços verdes, ambiente natural, ar puro, comunhão com a natureza, enfim, o único senão era o acesso que obrigava a percorrer perto de dois ou três quilómetros numa estrada de terra recheada de covas e buracos, terríveis para o baixíssimo convertível que eu então tinha, tão baixo como qualquer outro desportivo.

- Tu por aqui Baiãozinho ? Coisa estranha, se não estou em erro detestas dióspiros ou não ? Ficáramos com umas coisas por resolver recordas-te ? Talvez agora já não houvesse problema. O Rodrigo faleceu há quase 4 anos e eu herdei aquele palacete no bairro, a casa da mãe dele lembras-te ? Filhos nunca quis. Estou sozinha, e tu estás a aguentar-te sem a Luisinha ?

Aquilo foi mesmo assim, de rajada, e eu sem uma esferográfica onde anotar tanta questão, iria esquecer duas ou três de certezinha, embora não fosse coisa que me incomodasse por aí além, tinha a certeza que ela mas lembraria ponto por ponto, coisa que eu não desejava mas da qual não me livraria ou não conhecesse eu a Gina. A história repetia-se, há anos como comédia, desta vez envolta em tragédia…

Eu tentava encontrar um dióspiro com aspecto de maduro, mas ainda duro, verde por dentro, daqueles em que uma dentada ficaria de imediato travada, queria pregar uma partida à minha netinha. Queixara-se ela que uma banana verde lhe travara a boca ao que eu respondera nem imaginar ela o que era ter ou sentir a boca travada. Uma partida, quando não era ela a inventá-las era eu, garotices .

Verdade que há um bom par de anos eu e a Gina tivéramos uma grande conversa, curiosamente encostados aos caixotes de dióspiros da frutaria da ponte, há muitos anos já, em 1991 para ser mais preciso, eu tinha menos 27 anos andando pelos 38, e ela pelos 30 ou quase, já não sou capaz de acertar. Lembro sim que para pior já teria bastado assim, assim como eu me encontrara e de não ter ido na tanga dela, daí a sua invocação do palacete no bairro, espaço, muito espaço e garagem, de que na altura ela não dispunha e cuja inexistência me travara os ímpetos. Ela era a da casa sem garagem, eu o tipo que não caíra nem à primeira, nem à segunda e muito menos à terceira.

Os dióspiros eram portanto um item com história entre nós, desgraçadamente nem ela nem eu apreciávamos tal fruta, o acaso e as circunstâncias ou o destino nos colocaram junto deles como se no entretanto não tivessem decorrido quase três décadas, cada um de nós vivido uma vida e nesse interregno nos tivéssemos visto, de longe, umas duas ou três vezes, se tanto.

Agora a Gina vinha dar vida a tudo quanto ficara abafado, suspenso, como os astronautas das séries de ficção que fazem as viagens no tempo congelados em nitrogénio, criogenia acho, criogenados, a Gina vinha com um pauzinho mexer em assuntos velhos, a Gina queria colinho e vinha de mansinho tentar fazer como a minha Mimi, que desde que a Luisinha partiu anda mais carente e me salta para o colo ainda antes que eu me sente, como se tivesse receio de perder o lugar, mas a Gina não é a Mimi e eu não sou o mesmo de 91, nem estou com as malas à porta de casa, a Gina é uma querida mas não está a saber colocar-se no lugar do outro, no meu.

Ora sucede que eu não tomarei nenhuma resolução enquanto sentir este aperto na válvula mitral, este aperto no coração, este pranto que pronto largo à mínima lembrança, esta saudade que me atravessa e dilacera, esta presença constante, esta Luisinha que ainda amo como se fosse ontem e continuarei a amar.

Solução, fazer conversa. Fiz conversa, uma vez mais. Encostei-me às caixas dos dióspiros e tergiversei, aparei-lhe os golpes e tive cuidado de não desferir nenhum que a pudesse magoar. Nada mais me resta que empatar, empatar até ela perceber que não, não é o momento nem é já tempo de refazer o que nem chegou a ser feito. **

Na manhã seguinte houve fita, cena, a Gina atirou-se de cabeça e, sem que eu o esperasse, solicitou-me ligação para uma chamada vídeo, pela webcam, vocês sabem como é. Estranhei, ainda por cima tão cedo, sou exageradamente madrugador, quer dizer, a minha Mimi é que me acorda matemática e diariamente sem falta às 7:00 da manhã, parece ter engolido um despertador o raio da gata, pula-me em cima até que eu me levante, abra as janelas, os estores, e lhe dê o pequeno-almoço, depois se quiser posso voltar a deitar-me que ela já não me incomoda, mas quem vivendo sozinho e depois de um despertar destes quer voltar à cama ?

Fui atraído pelo trim trim da campainha pedindo a ligação da chamada,

- Raios, a esta hora, o que será, quem será ? Deus queira que não seja merda, nem a barba ainda fiz caraças.

Não me enganei muito, não errei todo, era a Gina dando-me os bons dias, digo insistindo no colinho, toda ela sensualidade e sedução, toda ela Tentação, como se eu tivesse dezoito anos e as hormonas repentinamente aos saltos, eu aos saltos contente por vê-la e ela sábia e calmamente escovando os lindos e compridos cabelos, a escova descendo devagar, acompanhando a fila de botões da camisa indolentemente entreaberta e, pela abertura espreitando, dois seios envergonhados, tímidos, receosos de serem vistos, assomando, mostrando-se mas não querendo ser vistos.

 Esqueci-me do diálogo, lembro apenas ou somente que eles e eu espreitando, e ela linda até àquelas horas matinais,

- Há pouca luz, mal te vejo, a janela, abre a janela.

e ela sabida escondendo ainda mais o que desejava mostrar-me e os cabelos compridos escondiam, o que a camisa mal aberta ou mal fechada escondia, a tentação vergando-me, eu resistindo e a escova insistindo, deslizando, demorando-se onde ela sabia dever demorar-se, as unhas compridas, cuidadas, de um vermelho lindo, vivo, toda ela linda, um anjo, uma anjinha, e eu pecador me confesso, resistindo, tivesse eu vinte anos e isto não ficaria assim, ou fosse eu o artista e pintá-la-ia como alguém pintou Ana Maria, ou a “Origem Do Mundo” acho que foi Courbert, Gustave Courbert, e ela teimando, e eles espreitando-me, eu espiando, perscrutando avidamente até que, envergonhado da minha própria figura, irritado com a minha própria fraqueza me enchi de brio e de coragem, desliguei repentinamente o PC, preparei uma desculpa para quando ela me confrontasse com o corte abrupto da chamada, levantei-me, enchi o peito de ar satisfeito comigo mesmo e,

- Ainda não foi desta que me deram a volta, ando distraído, tenho que ser e estar mais atento à tentação, tenho que me respeitar, que me dar ao respeito a mim, sim a mim que já não tenho idade para estas coboiadas, vai mas é ter juízo Baiãozinho ou Bertinho como alguém certamente me aconselharia.

E fui, fui ter juízo, aqui estou eu pecador impoluto, pronto para outra, venham mais cinco, traz uma amiga também, não há crise, nem receio, só é frágil quem quer, só cede quem quer, nunca cedi, nem à primeira, nem à segunda e muito menos à terceira.

Mas honra lhe seja feita, a Gina está excepcionalmente bem conservada, ainda há Deus valha-me Deus.

Fulcral é que não a magoe, quanto ao resto é fácil, basta mudar de hipermercado. Tenho certeza que se deixar de vir aqui será pouco provável voltar a encontrá-la, no entretanto ela arrefece e trava os ímpetos, como se tivesse mordido um dióspiro verde, e eu trato da próstata, evito ficar mal visto, ter uma nega, uma fraqueza, porque tal qual diz o velho ditado, o que os olhos não vêem o coração não sente.

Porra, os aborrecimentos que tudo isto me tem trazido, estava capaz de morder uns dióspiros só por desfastio, e cuspir as sementes…

Tu bem me avisaste Luisinha, mas sabes como sou, ver para crer como S. Tomé, não temas querida, sempre me conheceste, sou um homem devotado e de fé.


Amém.


  


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

563 - ALVO, VÉRTICE, BISECTRIZ, TANGENTE ...



ALVO VÉRTICE PONTO ...


Tu em pé, altiva e hirta,
eu de joelhos, abraçado a ti,
mirando-te,
olhando-te de baixo para cima,
admirando-te as colunas de Hércules,
o olho de Ciclope,
o olhar trespassando-te,
o desejo latente,
ante ti eu, um lactente sedento,
olhando o Paraíso, a maçã,
o fruto apetecido e eu,
de novo eu, sempre eu.


Homem amadurecido,
sucumbindo à tentação,
ao fruto proibido, trepando,
 p’las marmóreas colunas acima,
agora abertas,
agora convidativas,
dando passagem a minha nau,
acolhendo o meu rumo,
e eu sedento,
e tu o sumo.

E além,
o Farol de Alexandria
assinalando a noite,
marcando o ritmo, o dia,
policiando as águas agitadas
como dois lençóis em desalinho,
e entre sedas e linho,
o cálice ! o cálice !
quero-o !
a cicuta, a cicuta,
a mim !
anseio matar esta sede,
este desejo, fantasia, ambição,
sonho, melodia, delírio.

Tremem as colunas de Hércules
ante meu gatinhar sôfrego e,
de tão fortes oscilam sob tensão,
tangem, vibram como cordas,
viola, violina, violão,
fado, destino,
vibrando hesitantes,
dissonantes,
cunha cravada entre querer e não querer,
entre o dar e o haver,
saldo, preço, conta, sacrifício,
razão e emoção, quem vence ?

O coração,
que tacteias com a mão e
abres como pétalas em flor c’os dedos teus,
e o néctar, o néctar, agora meu,
e tu, e eu, e nós,
e em minhas faces o mármore gelado
das colunas quentes,
ardentes,
a cicuta bebida num trago,
avidamente,
o Farol no máximo.

A luz omnipotente,
as estrelas, só estrelas,
tudo estrelas,
as colunas fechando-se e
o meu abraço cingindo-as,
enlaçando-te,
e tu, qual Ciclope,
tacteando-me os cabelos,
puxando-me, empurrando-me
contra ti.

O olho do Ciclope dado,
dando-se, 
abrindo-se, extasiado,
surpreendido, estupefacto, e
finalmente fechando-se,
sossegando, dormindo,
e eu
num abraço arrebanho contra mim o mar,
Mediterrâneo, Atlântico,
velando as tuas águas,
o teu descanso até
ver em meu redor mar chão,
ouvir o canto das sereias,
divisar ao longe o galeão.

Onde
dessedentados partiremos
rumando um novo rumo,
construindo um novo mundo,
redescobrindo arquipélagos,
enseadas, portos, abrigos,
e de novo o amor,
o mesmo outrora tão temido,
ora perdido, ora encontrado,
agora o passadiço,
passado é passado,
subimos ambos,
devagar,
tu à direita eu à esquerda,
a espada balançando na cintura,
o galeão ondulando na maré,
o espartilho,
corpete dando-te forma,
um camarote real,
baldaquino,
dossel,
o amor, o amor,
o galeão avançando,
navegando,
balançando como um carrossel…



Nota: O corpo humano, no todo ou em parte, pode ser visto sob vários prismas, desde os mais objectivos até àqueles altamente subjectivos. 

A verdade é que eles existem, os prismas, desde o mais baixo, o alarve, popular ou pornográfico, no geral ofensivo, existindo a contrabalançar o prisma estético, ligada ao belo, à beleza, à pintura, à escultura, ao desenho ou à fotografia.  

Já o nobre prisma ou a nobre perspectiva ética defendem que o corpo humano é para respeitar e não é para vender, violentar ou violar por exemplo. Na perspectiva artística defende-se desde há milhares de anos que (em especial o corpo feminino) o corpo seja alvo de admiração se estimado, trabalhado, mente sã em corpo são, admiração que está na origem dos cânones clássicos inda hoje mui considerados. 

Naturalmente não esqueçemos a perspectiva médica, o corpo é um sistema de órgãos muitíssimo complexo. Mais complexo que um automóvel, um avião ou um computador, e deveras muitissímo mais sensível e melindroso.  

Isto para não falar das perspectivas ou abordagens mais subjectivas que a literatura lhe dedica, em prosa ou poesia, geralmente duma beleza ímpar, e que infelizmente não estão ao alcance de toda a gente por razões compreensíveis. 




sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

562 - PARA VÓS, COM CARINHO, by Luísa Baião *



Sou viciada em café, do cheiro ao sabor tudo nele me agrada, pelo que raro é o dia em que não tomo três, quatro ou cinco bicas. Qualquer dia estou castanha, tão castanha como os pulmões dos viciadinhos em tabaco, de que em casa existe um belo exemplo.

Tenho uma vida algo atribulada e ando sempre correndo daqui para ali, que me cansa mas a que não dou descanso, temendo que o ócio traga ao cimo tudo em que não quero nem pensar. Acredito que venha a morrer bem tarde, tanto tenho para fazer tanto há a fazer que o vagar não chega para tal. Adiante pois que tristezas não pagam dívidas.

Um destes dias corria eu para a bomba da gasolina em cujo café já tomei mais bicas que litros meti no carro, quando se acercaram de mim alguns taxistas amigos que sem rodeios me atiraram com a seguinte questão; “ó Dona Luísa, não soubéssemos nós da sua vida e não nos viria à cabeça esta pergunta: Quando tem você tempo para escrever as suas crónicas ?”

Não foram os primeiros a quem a questão se colocou, amigas e amigos vários têm manifestado a mesma surpresa, a par da surpresa para mim que é o facto de saber que me apreciam, o que, modéstia à parte, me envaidece um pouco e me dá alento para não parar.

Pois bem meus amigos aqui vai o meu segredo, como vós gosto de ver televisão mas dado que alguma coisa de jeito só lá para as tantas, fico depois de jantar com algum tempo livre para ler, do que gosto muito, e evidentemente para alinhavar estas minhas crónicas, as quais o meu marido depois muito gentilmente bate no computador. (tirando isto pouco mais faz lá em casa).

Vários canais de TV e horários para quem tenha insónias, cousa de que felizmente não padeço, são portanto do melhor que me poderia ter acontecido, de outra forma ficaria provavelmente agarrada à TV e esquecida de mim e de vós. Uma outra coisa que solenemente aprecio é a conversa e quando posso, em especial nos fins-de-semana, é verem-me no Bigorna ou no Arcada, este coitado está mesmo a dar as últimas, ou nas respectivas esplanadas, se o tempo o permitir.

Esplanadas, sobretudo nas noites de Verão é das coisas que mais aprecio em especial se o café for do Nabeiro e as companhias puxarem bem pela conversa. Era com vocês que adoraria estar, perna trocada, bica fumegando, dois dedos de parlapiê, mas digam-me francamente, onde estão então que raramente vos encontro a todas (os) ? Vai daí, e já que não me dão hipóteses de privar de perto convosco, olha ! Escrevo-vos ! Para aliviar e sublimar esta carência de amizades que a vida, o tempo disponível e os compromissos não nos permitem partilhar.

E não pensem que esta forma de convosco estar, falar, não tem vantagens porque tem, vocês já viram que sou eu quem escolhe os assuntos ? Sou eu quem dá à conversa o rumo que pretendo ? E a vantagem de nunca entrarmos em polémica ? Ou se gosta, ou não, ou se concorda ou não, mas que tenha dado por isso nunca nos aborrecemos ! Nunca houve a mínima discussão ! Claro que estou a brincar, nada mas nada substituirá nunca o prazer da vossa presença, mas que fazer ? Se outras possibilidades não há ?

Se ainda formos vivas (os) quando Évora tiver uma Praça Grande, com jardins, cafés, esplanadas, relva e estacionamento, uma fonte bem iluminada e bicas largando fios de água, se Évora tiver um dia, ainda nas nossas vidas uma “movida” como a que invejo em tantas cidades do país e do estrangeiro, então sim, todo mundo por lá passará, todas (os) nos veremos com maior frequência, travaremos tagarelas e puxaremos pela língua a quem se cale, correremos as montras de braço dado, escutaremos os músicos de improviso e riremos dos malabaristas, dos cospe fogo e dos mágicos. Mas assim, sem praça grande nem pequena, sinceramente não vale a pena.

Aproximam-se as férias, esta aldeia grande vai ficar sem gente, também eu aproveitarei para fugir daqui por uns dias e descomprimir. Espero sinceramente que as vossas férias sejam proveitosas, alegres e divertidas, já que por cá a diversão a sério só começará lá para Setembro e será tanto mais animada quanto mais nos aproximarmos de Dezembro e das Autárquicas. Aí é que a coisa vai aquecer e ficar preta, preta como o café que adoro, vão ser tempos interessantes vão…

* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em 13-7-2001 no jornal Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER



quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

561 - O PRAZER DA ESCRITA, O PODER DA PALAVRA * by Maria Luísa Baião


Sou mulher, quero fazer das palavras alegria, p’ra que a noite se converta em dia e elas transformem em mim a vida que vivia.

Ecoam no meu ser sonoridades, quentes, ciciadas, bafejadas. Toques, afagos, aconchegos, que hoje são desejos, saudades, ecos de maternidades. Flanelas, biberões, já foram sons, janelas, escancaradas como grades serradas, uma fuga para a frente jamais na memória dissolvida. Era isso a vida.

Soletrada a palavra, ainda como brincadeira e então o suave tacto do pano, livro primeiro, depois o “ a b c “ já se vê, e seguidamente, durante a vida inteira, nunca mais a palavra foi engano, nunca mais foi verdadeira, porquê?

Colegial precipitada pois claro, mas poderia ter sido de outra forma? A pressa em conhecer o mundo inteiro, os livros, o amor, a escrita, um diário, um tinteiro. A leitura à jorna, a imaginação, delirante ! E confesso que daí por diante, uma criatura foi moldada, no prodigioso mundo da palavra. Talvez tu desconheças, mas eu sei que a palavra é realismo mágico, passado e futuro podendo ser trágico, também um mundo novo que se abre. É fogo que arde, é milagre, é sentimento, é verdade, é falsidade, e maldade.

Comovem-me as palavras, consomem-me as palavras, amor e perversão andam abraçadas, em idílicas cenas tão fielmente retratadas nas palavras como dor e coração, tão deturpadas que dissecadas nos enchem as mãos de... Nada. Sou mulher, sou desejo, sedução, sou ensejo, sou maldição. Não creias nunca no anátema, palavras são palavras, são traição. Sou mulher, sou virtude, sou beleza e oração.

Uma bátega se abate sobre mim, tanto melhor não quero que me vejas assim. Disfarça lágrimas escorrendo-me pela face ácidas mas felizes, sôfrega emudeço, não há palavras que descrevam tanto amor. Pela primeira vez não encontro palavras p’ra tanto fervor. Eu, tu, porque não ser felizes ? Altero-te as hormonas se me passeio p’las ruas, perdes o norte às viagens e esqueces que são simples feromonas a origem das tuas incompreensíveis miragens. Tão fielmente retratadas nas palavras que de fórmulas mágicas a enformam, a mulher é vertigem, é alvo das mais incrédulas abordagens.

Desmistifica, exorciza o teu pensar porque, qualquer mulher vai muito além do que é vulgar. Não cuides influenciar comportamentos, as palavras, só as palavras mudarão o curso dos acontecimentos. Vida é arrebatamento e fulgor, é também deslumbramento e amor. Amor que é belo e cega, e para despertar uma só palavra tantas vezes lhe chega. Não me venhas com os eufemismos usuais, pois a ficção que é a vida, torna tantas vezes as palavras banais. Põe-me antes ternamente a mão sobre a espádua e verás que mais que palavras, será esse teu gesto lindo que, ruborizada e febril, me fará fugir para debaixo de água.

Deixa escorregar teus dedos por minha face corada, afugentarás meus medos, dir-te-ei quanto desejo ser beijada. Torna-me espiral, voluta, faz-me sentir especial, impoluta, acarinhada. Segreda-me palavras, eleva-me nos ares até que sinta derme e epiderme arrepiadas. Não cries entre nós desertos, não permitas desejos esmorecidos, palavras são segredos, que se incertos paulatinamente se verão esquecidos.

Não ! Porque o amor não esquece, e se a saudade no meu peito cresce é a tua imagem que, onírica me surge, e sentir-me querida me envaidece. Vem, o tempo urge. Sim é verdade, não suporto a inocência da maldade, nem a indolência e a passividade da paixão desavinda, da saudade. O corpo arde-me de desejo, num cerco de seduções e palavras me atormentas, dói-me não ver da tua parte ensejo de pôr cobro a tão ardentes paixões, tão violentas.

As palavras, sempre as palavras, a ficção que é a vida, a tua imagem, o silêncio, requerem mais coragem que, o que penso ser-me homenagem devida, Inocêncio. Inocêncio ou Alberto, João, António, Carlos, Augusto, que interessa? Importante é que venhas depressa. Traço teu retrato com as mãos, com barro moldo um artefacto, um busto, um rosto, oh ! E com que gosto.

O intimismo da memória mente, tanto mais quanto mais tempo estás ausente. Canto vitória e ordeno-te: corre para mim, simplesmente ! Deixo as palavras penetrar fundo em minha mente, uma decisão que nada muda, continuo carente, de paixão, de amor ardente a que o espírito o corpo desnuda. Por palavras a mim mesma descrevo um gesto teu, de verdade despido, porque na razão inversa do que penso, estás longe, e estás vestido.

E meu corpo é mar revolto, turbilhão ansiando doce bonança, ver-te devoto, junto a mim devolvendo-me a esperança. Faminta te deixo a boca, sedenta, álacre e louca, pinta numa cena barroca, acre, doce e ternurenta o reencontro desejado, tantas vezes sonhado, tão na verdade vivido quão na memória sofrido.

Sou mulher, sou mãe, sou devoção, mas nunca serei cega para tanta emoção. Sou mulher, sou assim e sou feliz, tu para mim amor és uma benção, amo-te, adoro-te, orgulho-me de ti. Sou cega quanto pode ser por simpatia mulher que acima de tudo coloca a idolatria. Eis-me algoz de amor feroz, muitas vezes as palavras são tudo, por vezes as palavras não são nada. Na sua voragem me embeveço, a viagem começa na primeira página, termina onde adormeço e só quando o livro tomba aprecio a miragem que não esqueço.

Tive tempo, tive amigos, mas saberão vocês porque escrevo? Porque o mundo me cerca e não me atrevo a crer que alguma vez os perca. Palavras são elo de corrente, são forma de me amarrar a vós para sempre. Modo diferente só de compensar a falta de espaço e de lugar, sentir-me entre vocês, ficar contente.

A escrita, pois, a escrita, o seu poder, umas vezes evasão, se ando a correr, outras, formas de acertar horários para vos não perder. Dúbia, dúplice, enganadora, lastimável, horrível ou confrangedora, é e será sempre sedutora, inenarrável, sofrível, enternecedora.

Troco impressões com Saramago, Lobo Antunes, Kundera e tantos outros, que há muito coabitam meu ser, meu mundo, meus diálogos. Todos loucos ou não, não sei dizer, quantos conciliábulos não se fizeram já, sempre, sempre no sentido de vos levar a ler. Consegui-lo, quem me dera ! A palavra é uma arma cantou o poeta e se em tal não acreditas não deites foguetes, não faças a festa. Palavras são punhais e só por isso tanto preocupam certa gente os livros que lês ou o caminho por onde vais. Estuga o passo, lê, troca impressões, esgrime o florete da retórica, não deixes que te cortem cerce as ambições. Palavras, acredita, são uma das formas de não morrer jamais.

Assim foi que, estando a cidade sitiada e o valoroso Constantino defendendo-a, nos baluartes, dentro dela os monges continuavam em discussão acesa sobre qual seria o sexo dos anjos” **
   
* Texto submetido a concurso literário promovido pela Câmara Municipal de Redondo no ano 2000 e publicado em 4-8-2000 no Semanário IMENSO SUL, coluna Kota de Mulher.

**  in Notícia do cerco de Bizâncio.