domingo, 26 de agosto de 2018

528 - O DANÇARINO DO CLUBE FLAMINGO ...


Em lugares assim não escolhemos as nossas amizades, antes as aproveitamos e forjamos. A distância da pátria, o isolamento da família e dos amigos fluem ou desaguam nesta prédisposição. O ambiente de guerra, o excesso de fardas, excesso porque uns dias de licença na cidade calhavam a todos, e para os que não estavam habitualmente acantonados nela, cidade, havia sede de tudo e uma tendência para o exagero e para o drama. Por isso as amizades que nunca regateei me foram cómicas umas vezes e trágicas outras.

Naquele ano longínquo de fins de 73 a noite ia a meio, um novel, moderno e luminoso relógio lutava por sobressair contra todas as outras luzes do Clube Flamingo que abarrotava de algazarra, fumo de cigarros e outros fumos. Tudo isso, toda essa alegria, sentindo-se sobretudo no espírito de alguns dos presentes, tudo boa gente, tudo gente querendo divertir-se, e alguns vingar-se de meses na mata.

AV largou a nossa mesa para ir cantar, subiu ao palco, alegrou, arrebatou, emocionou e naturalmente deu nas vistas devido ao garrido e exótico trajar e aspecto peculiar. Eu era um dos seus muitos admiradores e amigos, diria que amigo por afinidade, tinha sido colocado de licença no mesmo quartel do cabo Rudolfo Leandro, o Rudy/Rubi, cabo de transmissões, esse sim há muito em Luanda e amigo amicíssimo amantíssimo de AV e uma ave quase tão rara ou exótica como ele.

Por essa altura os problemas de género não me tocavam como passaram a tocar. Por aquela data e lugar tudo e todos eram bem quistos, o Clube Flamingo era recatado, a clientela minimamente civilizada e seleccionada, os arroubos românticos e o exotismo de AV e Leandro eram displicente ou ostensivamente ignorados, Luanda não era a cidade do Cabo mas também não se parecia sequer com a puritana Lisboa, e as festas do Clube Flamingo desfrutavam de cada vez melhor e maior fama na cidade, atraindo mais e mais clientela.

Na nossa mesa deveríamos ser uns seis ou sete, eu, os dois que já citei e causa do sarrabulho que se seguiu, o tenente Fernando Fernandes, Rosa, uma negra bem integrada e aceite entre a selecta maioria branca da cidade e a Mila, uma experiente enfermeira das forças armadas e acantonada numa das bases aéreas de Luanda e que vinha mantendo com o tenente FF um arranjinho que nem tentavam disfarçar. 



Nem tive tempo pra me aperceber como a coisa começara, de repente o tenente FF joga a cadeira para trás levantando-se em guarda, o grandalhão avançando para ele disposto a desfazê-lo e entretanto todos em pé, todos surpreendidos, todos afastando-se da contenda mas não lhe virando as costas quando, repentinamente a mesa pelo ar, o grandalhão quase atirado ao chão por ela mas resolutamente aparando o golpe, joga a mão à bota sacando da faca e avança para FF precisamente quando alguém grita chamem a PM, e entredentes o grandalhão:

- Vais pagar-mas meu cabrão !

nisto alguém da multidão aglutinada em círculo jogou uma faca arrojando-a pelo chão e que FF aparou com o pé e de um só golpe, baixou-se, sopesou-a, mediu-a, mediu a distância ao grandalhão, olhou-o nos olhos e fez que o reflexo da lâmina o avisasse de que também ele estava igualmente armado.

De imediato o grandalhão travou o ímpeto, abriu as pernas buscando firmeza, enrolou em volta do braço esquerdo um casaco apanhado de uma das cadeiras e pôs-se em guarda. O tenente FF idem, tendo apanhado do chão uma das cadeiras caídas e fazendo dela seu escudo. Entalou o bico da faca num intervalo das lajes do chão, torceu e partiu-lhe o bico que chutou para o lado donde a faca lhe fora arremessada enquanto simultaneamente mostrava ao círculo entretanto formado em seu redor a lâmina diminuída. Toda a gente percebeu e recuou dando espaço aos contendores e resguardando-se d'algum golpe desencaminhado e imprevisto.

O jogo começou, ora investia um ora investia o outro, investes tu invisto eu, a luta assemelhando-se a uma dança, e cedo se notou quem melhor dominava os seus passos, quem melhor e harmoniosamente manobrava o braço, a faca, o movimento, o bailado. FF dançava como um dançarino, nunca estava no mesmo lugar e seria cada vez mais difícil o grandalhão acertar-lhe, atingi-lo. FF dominava o jogo, jogava na defensiva mas era nítido quem dominava, o grandalhão cansava-se e desorientava-se, grunhia.



Quanto mais cansado mais lento e FF aproveitava. Um toque aqui, um toque ali, e o grandalhão ia ficando retalhado como quem se corta ao fazer a barba. Primeiro numa orgulhosa tatuagem dos “páras” no antebraço esquerdo, depois em cheio no coração doutra tatuagem no braço direito e dedicada ao “amor de mãe”. Golpes extensos em cada um dos cortes, pouco ou nada profundos mas sangrando e cegando-o de raiva.

O golpe final foi de mestre e nem sei se teria sido intencional ou ocasionalmente proferido muito antes de cinco militares da PM irromperem pelo salão de bastão na mão. FF aproveitara um centésimo de segundo de distração, o cansaço e a desorientação do grandalhão riscando-lhe o baixo-ventre. Com o esforço e a tensão da luta o corpo rebentou-lhe como se fosse uma hérnia e assustado, o grandalhão susteve as tripas com as mãos, encostou-se ao balcão da esquerda dando-se por vencido. Um tumulto percorreu o salão, nisto entra a PM, dirige-se ao primeiro que viu de faca na mão precisamente no momento em que este, mais branco que a cal da parede e sustendo as tripas numa aflição se deixou escorregar balcão abaixo até ficar sentado, cercam-no e gritam ao barman que chame uma ambulância. Nada de grave, é meterem-lhe as tripas para dentro, darem-lhe uma costura e quando muito restará a cicatriz de uma cesariana.

FF aguardava a sua vez, aguardava ser levado, deixara cair a faca aos pés, estava calmo e os testemunhos de todos o tirariam de apertos. Já no jipe da PM e enquanto se afastava relembrou a metrópole, Lisboa, a recruta, a especialidade, a dureza dos treinos e o galardão. Tinha sido considerado o melhor dançarino da classe de 73.

Sorriu.





NOTA: - Assim sendo, uma faca ideal para raspar deverá ser muito mais pequena que uma catana mas ter a lâmina comprida e direita, apenas ligeiramente curvada na extremidade, o que ajudará na esfola e, volto a frisar, naturalmente bem afiada, afiadíssima. Muita gente não o sabe e pensará haver uma ou duas dúzias de diferentes facas, grande engano, há facas para todos os gostos e todas as funções.

Ali junto ao Cunene uma boa faca era não só um objecto de primeira necessidade como de primeira ordem, não olvidemos que algumas vezes, felizmente poucas, a nossa sobrevivência numa inesperada luta corpo a corpo dependeu sobretudo da faca usada. Por mim preferia-as sempre com um pouco mais de dois palmos de uma ponta à outra, bico bicudo, ligeiramente encurvado no gume e, este ondulado dessa curva até meio da lâmina, continuando o resto a direito e toda ela sempre bem afiadíssima como já vos dissera. Acompanhava-me a coxa direita.

 

Há quem as prefira com um efeito de serrilha no contra gume, ideal para cortar ligamentos, músculos, ramificações nervosas, tendões, óptimas para desmembrar animais, para os desmanchar, porém éramos soldados, não magarefes, matar o inimigo que nos combate sim mas nunca desmembrámos nenhum, não éramos bárbaros, éramos sobreviventes, quem vai à guerra dá e leva lembras-te ?

E se não dás levas, um tiro, uma facada, uma catanada, daí a faca sempre afiada e esquece a serrilha, a serrilha sim é dispensável, mas não descures o ondulado do gume na lâmina, é prático, ajuda-te a cortar sem te obrigar ao moroso e cansativo vai vem do serrar, para a frente, para trás. Numa luta quem se pode dar a esse luxo ?

Quem está para perder tempo com isso ? Espetas no ventre do magano a faca que terás bem firme e segura na mão, forças a lâmina para cima que ela de per si e ajudada por esse leve ondulado correrá célere acompanhando a mão, o gesto e o porco ficará aberto num segundo, arrumado, não mexe mais, em segundos estará acabado, esvaído, chafurdando numa poça do próprio sangue

Se não quiseres ir tão longe ou ser tão incisivo, tão letal, podes simplesmente correr a curva do gume na barriga do porco. Se fores Dextro bastará um golpe horizontal da esquerda para a direita e tens o tipo aflito, agarrado as tripas, de qualquer modo estará no fim, pensando somente em si mesmo e encostado às boxes, implorando, chorando, por vezes chamando pela mãe e implorando perdão.

Atenção, nunca procures dar azo ao movimento contrário, isto é abrir de cima para baixo, a lâmina ficará encalhada, presa, retida no externo e será travada pelas costelas e tu exposto, desarmado. O Movimento deverá ocorrer sempre de baixo para cima, desde os tecidos moles até atingir as ditas costelas, este gesto será mais que suficiente.

Mas, toma nota, uma última lição, se procuras silenciar uma sentinela, ou acabar de vez com uma justa, e tendo tu a possibilidade de aplicar ao inimigo uma manobra de mata leão que te permita aplicar um golpe de misericórdia que cale de vez o indivíduo sem chinfrim, é enfiar-lhe a faca num rim de modo a atravessar-lhe o corpo e tocar o outro rim, ou passar-lhe pela garganta o fio da lâmina num golpe rápido apontando a carótida ou a jugular e nem piam, é remédio santo, coisa que eu não sou, inda que seja bom rapaz e um rico homem, não digo um homem rico mas um rico homem.

Isto é sapiência. Sapiência do meu mister era assim trocada divertidamente pelos segredos das peles. Na verdade de posse desta aprendizagem, em casa, calçado, casacos e sofás de cabedal andam sempre impecáveis, flexíveis e luzidios. 

Quanto a eles não sei até que ponto o saber de mim herdado terá sido traduzido em talento, tanto mais que regressei à metrópole antes da grande prova, da mãe de todas as batalhas africanas, a de Cuíto Cuanavale* a sul de Angola. Cinco meses de morticínio no qual pereceram segundo se calcula perto de quinhentos mil africanos. Essa grande batalha pelo poder teve lugar já depois do meu regresso, porém e como todos sabemos, “o saber não ocupa lugar” pelo que sinceramente espero que a formação por mim proporcionada lhes tenha sido de algum modo útil. Capice ?