sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

ÉVORA, ÉVORA ERA MAIS, MUITO MAIS.......


135 - ÉVORA, ÉVORA ERA MAIS, MUITO MAIS.......


Enquanto a água corria na banheira e me escanhoava, o vapor adensava-se e, no espelho, não já eu de espuma branca na cara, qual Pai Natal, mas um outro, perdido em divagações, sobras de um passeio dominical pelas ruas solarengas da urbe, moribunda, que nem esta quadra animou.

As ruas, que outrora um caudal de gente animava, são agora desolação e abandono, porta sim porta não, quando não porta sim porta sim, um comércio fechado, uma habitação devoluta, painéis garridos, “trespasse”, “venda”, “aluguer”, que não logram apesar do agressivo colorido, quem lhes responda.

A cidade perde identidade a galope, tem vindo a descaracterizar-se em céleres passos de caracol, sobra-lhe agora em indiferença o que dantes lhe faltava em solidão. Nem a brancura ou o asseio são já apanágios seus mas, como diz o adágio, mal não há que sempre dure nem bem que jamais se acabe.

Aguardemos, aguardemos e oremos, sentados.  

E aqui onde vou agora era o “Augusto Cabeça Ramos”, ali o “ J. J. Gonçalves”, sim, porque dantes as firmas e as lojas eram pessoas e tinham pessoas, com quem tratávamos olhos nos olhos. Ali, onde o chinês, dantes o “Archiminio Caeiro Ldª”, naqueloutro chinoca a “Mafeuropa Ldª” Máquinas E Ferramentas Da Europa, uns passos adiante a antiga “CUF”, quase pegada ao Turismo.

Derivando para “Alconchel” o “H. Vaultier Ldª” e já esta abaixo, igualmente tomada pelas forças do mandarim, a inexistente “ Angelino & Figueiredo”, e tantos, tantos outros que povoavam a cidade, tais como o “Raul Cruz Sucs”, a “ Casa Valadas; lubrificantes correias vedantes e outros utensílios úteis para uma lavoura moderna “, logo pegada a “Kermesse de France , Phragrancias de Europa para a mulher ideal“, assim mesmo, com ph, montra em vidro negro biselado a dourado decerto da mesma idade, dois passos adiante o J. B. Andrade que fechou sem deixar saudade,

ainda hoje recordo tudo menos a mulher ideal, que nunca conheci, se me gravou na mente quando do meu exame de acesso à escola preparatória e nunca mais, casei com uma santa mas a mulher ideal nunca, ainda hoje sonho conhecê-la, não passa de um sonho, já nessa época a Europa só sonhos, e a única verdade que lembro é a mesma senhorinha linda que desde esse exame segurava  o leme ao balcão da loja, magra como um fuso e elegante que nem bailarina de can-can,

            Paris, loucura, anos vinte, “Casa phundada em 1927”, ta explicada a coisa, a coisa e o estilizado novecentista de uns lábios e de umas pernas no vidro da montra e cujo significado demorei  séculos a entender, os lábios retintos de vermelho da velhinha, 
teria sido bailarina ? aprumada, arranjada, linda, já não há velhinhas assim, um dia plof e a loja para trespasse, mais uma… 

Adiante o “Benjamim e Cª”, o Manuel das lãs, os manos “Silva & Irmãos Ldª” import export, o “Fernando dos Prazeres Filhos e Sucs Ldª“, e tantos a quem já nem a lembrança lhes vale. E podia passear-se pela cidade no meio de toda esta gente, falar-lhes, tratar com ela, argumentar e contra argumentar, ir-lhes à cara se necessário. Os dinheiros guardávamo-los no “Banco do Alentejo”, os seguros na mão da “Pátria, Cª Alentejana de Seguros”, e, em caso de reclamação tínhamos à nossa frente quem, e não um número verde, azul ou vermelho para onde ligar. 

Havia sempre um balcão onde nos encostarmos e bater o punho, e não um “sítio” indeterminado num ainda mais indeterminado e invisível lugar. Éramos enganados com uma palmadinha nas costas e um sorriso nos lábios por gente com quem nos cruzávamos todos os dias e não por tubarões petulantes e arrogantes, nem por empregados empertigados como o gerente bracarense do Santander, como hoje somos, porque dantes de Espanha só os caramelos de Badajoz, e empertigados só os “Fidalgos” e os “Janotas” por lhes ser apelido de família, ou os forcados, porque enfrentar uma fera lhes fazia e faz crescer um rei na barriga.

Hoje empresários invisíveis têm ao seu serviço rapariguinhas de shopping piores que as que Rui Veloso pintou há trinta anos, e capatazes, manageros ou lacaios como nunca houve, ignorantes mas convencidos, cuja soberba ou travamos logo à primeira investida ou vomitam todas as alarvidades que os cursos de formação e de gestão de desempenho lhes meteram no bucho sem lhes darem tempo para os ruminarem.  

Gosto da minha cidade, mas nunca mais as centenas de camionetas cheias de gente como quando o “Juventude” e o “Lusitano” defrontavam o “Benfica” e o “Sporting”. A seguir ao “Vingt-cinq de Avril” os tractores e “roulottes” da luta agrária ainda uns lamirés mas nada que se parecesse sequer...

Depois as pessoas foram abandonando a cidade que os políticos chamaram a si, e foi o desastre completo. Hoje, nem cidade nem pessoas nem políticos mas tão somente uma excelente cagada.

Nem já um vómito é.

E cegos teimam ver o que ninguém mais alvitra enxergar.

A cidade fechará para obras mais vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos, até que as moscas abalem e as pessoas regressem, repovoem o povoado, e então de novo os nomes nas fachadas, em Itálico, Courier New, Times New Roman, Gothic ou Garamond, novamente a cidade pululará de viço, as ruas dos mercadores, dos lagares, dos caldeireiros e da moeda regurgitarão de gentes e eu, satisfeito c’o meu oráculo, continuarei indolente, sete palmos de terra por cima, dormindo o sono dos justos no cemitério dos Remédios.

Sem remédio.


:P