segunda-feira, 18 de junho de 2012

120 - SOBRE TU CARNE TRIGUEÑA *......................


 Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez

Dei com ele por mero acaso numa daquelas pesquisas aleatórias na net. Declaro-vos que já nem o recordava. Impressionou-me exactamente há dez anos quando, numa digressão mundial, honrou Évora com a sua presença e uma impressionante exposição. Foi oportunidade que não descurei, há que não perder ocasião de olhar uma outra panorâmica do mundo, coisa que a arte jamais deixará de nos propiciar. No caso, uma visão além Atlântico, de que deixei testemunho, como poderão ver nas linhas que se seguem e que foram publicadas no Diário do Sul em principios de 2002 .

Confesso que recebi um choque emocional, fui apanhado desprevenido pelo impacto projectado pelas belas imagens de um artista ímpar, suficientemente sabedor para com grande mestria ter agarrado perfidamente o visitante mais distraído. Apesar do tempo nessa manhã, que ainda recordo, chuvoso, a visita ao Palácio de D. Manuel para ver com os meus olhos a exposição “ Sobre tu carne trigueña “, de Àisar Jalil Martinez, valeu a pena.

Nascido em Cuba, o que me suscitou alguma desconfiança, Àisar, recordo, apresentou-me ou melhor, presenteou-me com cerca de quarenta telas, todas elas fortemente expressivas, provocatórias, e que na realidade me deram do “ homem “ uma visão muito redutora… Não contestei. Se esta sociedade não é matriarcal, tal sucederá porque a “ mulher “, as mulheres, não fazem ou não sabem fazer uso do seu potencial persuasivo e dissuasor.

Mas não as “ mulheres “ de Àisar, estas, não só dominavam toda a exposição, como todos os homens. Desnecessário dizer que cheguei ao fim do périplo com a emoção acumulada e a tensão altíssima, e, literalmente, insolentemente apanhado desprevenido por aquela alucinação. Vindas do Caribe, as cores não teriam podido deixar de ser calientes, com um contraste pictórico muito vivo e acentuado. Àisar atirou-me repentinamente á cara com uma sensibilidade levada ao extremo, tão trabalhada e polida que se convertia em espelhos que me interrogavam e incomodavam.

Latinos que somos, todos, machistas por inerência, em maior ou menor grau, senti-me mais que provocado pelo traço do artista, quiçá ofendido. No mínimo a tentação será para dizer que me senti despido… Lembro que uma critica colocada no folheto de apresentação sublinhava, ou colocava em relevo a relevância da teatralidade impregnada às mulheres interpretadas pelo pintor.

Teatralidade ? Quando em noventa por cento dos casos são elas a comandar o homem ? Abordagem da problemática feminina ? Não brinquem, lembro bem Caballo rojo !, Oh vida ! E ainda hoje afirmo que os títeres, comandados, quais marionetes, precisamente por belas mulheres, eram os homens ! Reparei especialmente em Eva, cujo símbolo do pecado repousava a seu lado, símbolo do pecado ou fruto da dominação feminina ? Recordo a mulata de carne trigueña que dava vida ao cartaz da exposição e se metamorfoseava em leopardo…

Arquétipos ou reais, as imagens de Àisar, parecendo ir contra toda a lógica, muito pelo contrário encerravam uma sabedoria pelo pintor demonstrada soberbamente. Ao entrar na exposição entrei num mundo surrealista, em que transgressão e tragédia tomavam sobre o real que entendemos, ou queremos entender, uma ascendência expressionista e marginal.

Se vi a cidade por detrás dos personagens ? Sim vi ! Tratava-se claramente de Habana, la vieja, o que para mim foi absolutamente secundário, mas me autorizou a fazer-me outra pergunta: E quem terá visto, reparado, na forma como o homem era retratado nessas telas ? De faunos a bestas, de exóticos a luxuriantes seres, em quase todas elas a imagem do homem era abordada na sua vertente animalesca, fossando entre ninfas e divas, numa promíscua sensibilidade liminarmente transbordante de erotismo.

Os nossos medos, mitos e tradições mais antigas, do lobisomem ao íncubo, estavam ali prostrados mas actuantes, fazendo-me, fazendo sentir ao visitante quanto de animal vive em nós (ainda?), e o quanto de grotesco marca a nossa libido. Sobre todos aqueles animalescos seres que representavam o homem, pairava a mulher, quer no plano geométrico quer no simbólico. Por certo Àisar deve muito às mulheres, via-se em todos os seus quadros que lhes estava reconhecido.

Com uma eficácia mais simbólica que linguística, a mulher era endeusada por aquele cubano cujo curriculum foi o melhor convite para que tivesse corrido a ver as suas telas. Por mim teria comprado Eva, outros certamente teriam feito outras opções, os preços, esses, estavam claramente acima da minha modesta bolsa…
Quem tivesse querido perder algo de muito valioso, bastar-lhe-ia não ter ido ver aquela maravilhosa magnífica e estulta exposição, foi a sensação que recordo ter de lá trazido. Quanto ao autor, hoje encontra-se na galeria dos meus amigos, e honra-me com a sua amizade. Obrigado Àisar Jalil Martinez !  

* Nota: este texto já fora publicado no início de 2002 nas páginas do Diário do Sul.

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.398281196874977.80203.100000792991962&

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10153400704078868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10154787699968868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez

Eva – Oleo / tela – 110x70 cm - Àisar Jalil Martinez
Bicitaxi encantado – Óleo / tela – 80x120 cm - Àisar Jalil Martinez
Caballo rojo – Óleo / tela 80x121 cm - Àisar Jalil Martinez
Oh vida ! Óleo / tela 69x49,8 cm - Àisar Jalil Martinez
Paz – Mista / papel 61x49,6 cm - Àisar Jalil Martinez
Onírica – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Uidaeysi – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Rámon y Julita – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez


domingo, 10 de junho de 2012

119 - S. JOÃO !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


Meu pai estugava o passo, minha mãe seguia-o, fielmente, tal qual um cachorro segue o dono, arrastando-me pela mão, apesar do meu interesse em chegar depressa aquele mundo que todos os anos me oferecia maravilhas, repetida e metodicamente, como as primaveras mecanicamente trazem andorinhas.

Havia já uns bons e longos dias que o circo se fizera anunciar. Um palhaço com pernas de dez metros percorrera o bairro arrastando nos seus passos um alarido vertido por bando de saltimbancos e anões, deixando-nos, aos miúdos, excitados, boquiabertos e impacientes pelo dia em que os pais nos levariam à feira. O S. João chegou pois como o dia prometido e, apesar de rebocado por minha mãe, eu corria, na vã esperança de chegar mais cedo uns minutos, pois naquela idade os minutos contavam. A feira extasiava-me e entusiasmava-me como se tivesse feitiço. Flâmulas e lanternas de papel esvoaçavam nos mastros que adornavam e nos arcos que estes por sua vez suportavam. Manjericos e cravos rivalizavam com balões, lanternas e bandeirolas. Tudo eram cores, sons, movimento luzes e maravilha !

E lembro a roda de algodão doce, cuja rapidez e efeito de teia de aranha me fazia esquecer o tempo, as grandes e vermelhas cerejas, em pacotes de papel pardo e que minha mãe pressurosamente guardava para, em casa, com o ferro de engomar tirar as nódoas das roupas. Lembro sobretudo as farturas (massa frita), o balão que me prendiam ao braço para que não o perdesse. As ruas de terra do recinto e o pó que o carro dos bombeiros diligentemente regava, precipitando um chuveiro em leque cujos repuxos admirava. O coreto do jardim. Os cisnes. A banda da GNR e por vezes da Armada. O “Bolero de Ravel” que jamais deixaria de amar. Os sons ressoando forte na minha caixa torácica e ao ritmo do coração. As pessoas silenciosas para não perderem pitada.

Ao longe os sons caóticos e abafados da feira. Perto de nós o carrinho dos gelados. Levantava-se a tampa e um alicate de bolas enchia os cones de cores e sabores. Tudo em silêncio. Somente se ouvia o tilintar dos trocos, a música no coreto, alguma folha que tombasse no chão ou o abrir de uma flor, o trinar de um pássaro.

S. João e S. Pedro eram maravilhamento, eram fantasia, eram sedução ! Carrosséis enormes, cavalgando montanhas, e toda a floresta neles ! Eu alvoroçado e, obstinadamente, de unhas e dentes ferrados no pescoço de um cavalo, de uma zebra, de um camelo !  E mais uma volta na " Selva " ! E mais um toque na bolinha do “Alverca“ !

E o “poço da morte” ! Que sorte !

Um ano houve que até a “esfera da morte” e uma motociclista nos vieram deslumbrar ! E no poço, os motociclistas de olhos vendados, as motas troando em escape aberto, as tábuas da estrutura vibrando assustadoramente, eu fechando os olhos cada vez que se aproximavam do rebordo do poço ! Os motociclistas desafiando a morte e terminando sentados à “amazona”, sorridentes, destemidos, valentes !

A noite caindo, o cansaço tomando conta de mim. Minha mãe comprando torrão doce para levar para casa. Nem a vozearia gritada nos alto-falantes me mantinha em pé…

Da ganadaria do Eng.º Joaquim Grave 6 bravos touros 6 !

Eram anunciados para a corrida de S. Pedro, os forcados seriam os de Évora ! Eu sonolento. Eu sedento. Lembro-me ainda de meu pai comprar a um aguadeiro copos de água para todos nós. O copo era giro, em plástico vermelho com bolinhas brancas. Para ele, meu pai feirou uma dúzia de esferas metálicas magnetizadas, para que, engolidas, assegurassem que os restos de arames dos fardos de palha não furassem os intestinos das vacas. Minha mãe umas sandálias de couro verdadeiro feitas à mão pela “casa Leão”. Eu uma caixa de lápis de cor.

A Móbil lançava a sua marca de garrafas de gás, azuis, as do célebre sistema click ! Como propaganda todo o mundo tinha uma latinha publicitária de estalinhos imitando o clik simples dessas garrafas, a feira inteira transformada numa zoada de cigarras… O sono tombou-me e, durante muitos anos nem recordo como o resto dessas noites terminaram. Jamais esqueci o colorido dos cartazes das feiras, os dias e noites nelas, o cosmopolitismo das gentes, o cheiro das sardinhas assadas e do frango no espeto, as marchas da fanfarra dos bombeiros, a arruada dos “Amadores”, o circo, as feras, a mulher serpente, o túnel do terror ...

Há muitos anos que não vou à feira, talvez perto de uma dezena, muitos…

Cansei-me de amadorismos…