quarta-feira, 20 de maio de 2015

240 - TIMES ARE CHANGING ....................................

            Quem comparar os tempos actuais com os anos 80 ou mesmo 70 do século passado, muitos motivos e pontos de contraste forçosamente encontrará. Meio século de vida deu-me já o discernimento e o distanciamento tão necessários a julgá-los, sem eles esse tipo de análise seria de todo improcedente.

Esta cidade, Ebora, Ebora Cerealis, Liberalitas Júlia, é há mais de 2.000 anos um verdadeiro tesouro, arqueológico, museológico, monumental, patrimonial, paroquial. Diria quase um tesouro inexplorado, ou ao abandono, sem proveito ou com proveito muito reduzido em relação às potencialidades que encerra e há mais de 40 anos o meu padrasto lhe augurava.

Autêntico burguês, esse meu padrasto, pessoa urbana de longa visão, terá sido dos primeiros a aproveitar os passeantes (poucos) que tal tesouro atraía (poucos mas bons) porque de resto, decorrida uma eternidade contam-se ainda pelos dedos quem daqui tire proveito que se veja. Digo proveito directo, palpável, visto, em contado.

Seguindo instruções (secretas) por ele dadas há mais de quatro décadas, tenho utilizado e aperfeiçoado o seu método. Cursei línguas, dramaturgia, documentei-me sobre representação em cena e maquilhagem artística, abracei uma parafernália de adereços e toda a temática subjacente, aprofundei seriamente a investigação, enfim, valorizei-me, profissionalizei-me, inseri-me em vectores mais altos e elaborados da cadeia de valor, especializei-me, e posso afirmar sem margem de erro, ou com uma mui pequena, ter-me tornado um activo (não tóxico) bastante interessante e valorizado, pelo menos para mim e no que aos meus interesses concerne. Claro que eram outros tempos e isso também me ajudou bastante, hoje nem a relva se pode pisar, quanto mais dormir num banco de jardim ou pedir uma esmola.

É certo que o ensino anda todo ele muito por baixo, inclusive o profissional, mas a verdade é que só não «somos o que queremos ser» se o não quisermos, e hoje, não fosse a extrema modéstia que me anima, poderia reclamar-me como exemplo para estas gerações tão desorientadas, tão à deriva, tâo desinteressantes, e sobre as quais ninguém manifestou ainda o mais pequeno interesse.

Tive a fatalidade de muito cedo ter ficado duplamente órfão, mas em contrapartida a felicidade de nascer pobre e necessitado, tive de, mui cedo fazer pela vidinha, mas também beneficiei da particularidade de tudo isso ter acontecido ou ocorrido numa época prenhe de solidariedade e de oportunidades, num país liberto das tricas partidárias e cujo timoneiro congregava sobre si as coesões de todo um povo, ao invés de hoje, ou de agora, em que as coesões são mais que as “mões” e se partem e repartem em redor de cada ideologia, ou de cada partido. Sobretudo tive a peculiaridade de ter nascido num país em crescimento e onde quase todos os sonhos eram possíveis.

Veiga Simão lançara no ensino a única reforma digna desse nome nos últimos 50 anos, mas curiosamente não beneficiei dela, a minha formação já tinha sido delineada e mesmo iniciada, estava a resultar pelo que nem eu nem o meu patrono (padrasto) vimos necessidade de a corrigir. Hoje, que as competências práticas assumiram no contexto económico e social do país uma preponderância inusitada, confirma-se a justeza da opção então tomada, e foi assim que, muito cedo me substitui à pobreza envergonhada de hoje e, com o respaldo da formação recebida e a receber, dei às alminhas carinhosas das paróquias de S. Francisco, S. Braz, Sé e Santo Antão, possibilidades de corporizarem a sua caridoza solidariedade.

Lembrai-vos que se vivia a época do escudo ($), uma moeda forte, e que o metal escuro raramente era dado numa dádiva (desculpem-me a redundância) pelo que ao fim do dia rejubilava com o peso e o brilho das moedas brancas de níquel.

Um quarto do pecúlio obtido era colocado de parte p’ra livros e materiais didácticos, mais tarde seria reduzido a um quinto, um sexto, valor abaixo do qual nunca desceu, a actividade não era reconhecida e, não estando sindicalizado jamais tive acesso a mordomias como ajudas de estudo ou outras, exclusivas a sócios. A prática, e os seus resultados, foram as balizas determinantes para afinar a minha formação e carreira, toda ela eivada de responsabilidade.

Foi assim que decorreu, pacatamente como tudo o resto nesta cidade, a minha vida, conforme as estações do ano ou da época estival e outras, deslocava-me de S. Francisco para S. Braz, daqui para a Sé, desta até Santo Antão, dali para o perímetro Jardim e Templo de Diana, Casas Pintadas, Museu, Pousada dos Lóios, no entretanto tomava pulso à fé dos crentes e à economia, quer nacional (sempre muito pobre) quer internacional, perdulária até mais ou menos ao ano 2000, por volta da introdução do euro, e data a partir da qual a minha vida mudou radicalmente e os meus rendimentos desceram substancialmente, pois enquanto anteriormente era bafejado com notas estrangeiras, supostamente de baixo valor mas que quando cambiadas aos balcões do Banco do Alentejo (no Banco Português do Atlântico o Delgado arranjava sempre modo de me surripiar uns trocos) se transformavam, como que tocadas por varinha mágica, numa considerável pipa de massa (livre de impostos).

Portanto, se alguém na cidade desde muito cedo se encontrava em condições de discutir macroeconomia seria eu um dos poucos felizardos. Não será de somenos importância frisar que nessa altura ninguém, mas absolutamente ninguém, se atrevia a deixar na minha mão uma simples moeda, em qualquer moeda, desculpai-me a redundância. Talvez fosse de mau gosto, talvez diminuísse o estatuto do dador, o que é certo era andar eu cogitando no fenómeno quando se deu a ascensão do euro e a coisa mudou completamente de figura.

A afluência às nossas riquezas patrimoniais aumentou de modo considerável, mas também inexplicavelmente passei a ser bafejado apenas e quase exclusivamente com moedas, moedas brancas é certo, mas contudo moedas. Porém o hábito de deixar cair moedas na mão que esmola arrastou outra tão imprevisível quão abominável consequência, e, heresia das heresias, de um dia para o outro eu era contemplado quase invariavelmente com moedas pretas ! Muito antes do colapso do Lehman Brothers Holdings Inc. Já eu sentia a pulsação da crise instalando-se sub-reptícia e maquiavelicamente na economia.

Inicialmente pensei estar o egoísmo crescendo entre nós, ou os crentes perdendo a fé e virando egotistas, na verdade chegou-se ao cumulo de serem concedidas esmolas com moedas de 10 e 20 cêntimos e até de menor valor ! A arte, se arte lhe podemos chamar, eu chamaria artimanha, consistia em, na igreja, deixá-las cair de alto na caixa das esmolas para que o tinir soasse alto. Astúcia, ou estultícia ainda hoje utilizada... Sem que fossem encontradas alternativas muita coisa nos tem sido limitada, direitos surripiados em nome ou proveito de quem, ninguém ignora.

A partir desse momento decidi continuar os estudos e acabar o mestrado, ilusão pura, nem vos conto como acabou essa parte da minha vida, somente que tanto detesto a máquina de corte do bacalhau como o seu cheiro secando, mas sobretudo o pivete que exalam as conservas de arenque Surströmming, o enlatado mais fedorento do mundo, nem sei como há quem consiga comer aquela merda de petisco...