O Diogo
Lemos é um daqueles amigos que o infortúnio forja, não estranho por isso que me
inclua praticamente entre o número dos seus familiares, quando o não sou.
Devia
correr o ano de 75 ou 76, e sendo eu estagiária de Fisioterapia no Hospital do
Rêgo, ou Curry Cabral, calhou-me em sorte o Diogo Lemos, rapagão bem feito e
bem formado, um tudo nada mais velho que eu, e igualmente noivo. Quase havia
sucumbido num desastre de moto, um despiste, um flash, e a coluna de suporte do
“rail” protector decepara-lhe uma perna bem acima do joelho. Talvez hoje não a
tivesse perdido, mas naquele tempo a ciência era outra e ainda insuficiente
para os milagres actuais.
Certo é
que quer eu quer o Diogo, ambos demasiado jovens para as agruras que a vida nos
atira para cima dos ombros, ficámos bons amigos e vemo-nos muitas das vezes que
vou a Lisboa, onde reside, ou ele vem a Évora, geralmente para um bom almoço
alentejano, igualmente em família.
Eu, é
sabido, só tive um filho, o Diogo em contrapartida tem uma equipa de futebol de
cinco, todos bronzeados e tão lindos como a Cesária, uma cabo-verdiana
enfermeira no Santa Maria, com quem por um acaso tardio acabou por casar,
depois da falta da perna lhe ter quebrado o noivado, muitos namoros e enganos.
O Diogo
é hoje uma pessoa normal, aliás, para além da falta da perna, sempre o foi, mas
hoje, galhardo, é um cinquentão direito que conserva ainda o porte atlético de
antanho. Isto porque durante muitos anos o Diogo não conseguiu suportar uma
prótese e se arrastou de canadianas umas vezes, em cadeira de rodas outras. Por
este motivo o Diogo só utilizava o sapato ou bota do pé esquerdo, tendo-lhe ao
longo de anos sobrado o par direito, que ele, numa atitude de indiferença
perante o azar, guardou apesar de saber não poder utilizar.
Da última vez que em casa dele estive foi dia de festa, direito, já com uma prótese,
essa perna nova dobrando e tudo, livre de canadianas e cadeiras de rodas,
contente com uma aleatória mas simultânea promoção que lhe coubera em sorte, o
Diogo era Prof. de Matemática, colocado longe e depois tornou-se técnico de
informática numa empresa de Lisboa, sendo hoje especialista em sistemas de
informação, vingou-se, e bem, dos anos em que se arrastara nas suas limitações
e equívocos.
Fora à
dispensa buscar todos os pares de botas e sapatos direitos que lhe haviam
sobrado, enchera-os de terra, e neles plantara as mais lindas flores que alguma
vez vi enfeitando uma varanda. E havia para todos os gostos, malmequeres
brotando de caneleiras alentejanas, camélias sustentadas por delicado sapato de
cerimónia envernizado, manjericos sobrepondo-se e tapando mesmo um lindo
mocassim castanho de pala, não faltando uma árvore “Bom-Sai” cuidadosa e
conscientemente aparada a partir de uma colorida galocha de borracha.
A
varanda era já pequena para tanto aparato, e todo aquele calçado exigia-lhe
imenso tempo, a regar, a aparar, a proteger do sol, a evitar que lhe não
faltasse, a atar os sapatos que por vezes se desatavam, dar-lhes graxa, enfim,
cuidar da vidinha como o Diogo costuma dizer.
Fiquei
como é óbvio e numa primeira reacção estupefacta com tão curiosa quanto macabra
floreira, todavia, atendendo ao espírito cultivado pelo Diogo, que sempre gozou
com a adversidade não se deixando por ela envolver ou vitimar, acabei por
entender os seus propósitos e o seu jardim, jardim de que aliás toda a família
cuida e à volta do qual parece girar a vida dela, família feliz, corajosa,
trabalhadora e empreendedora, que faz, como vêem, um manguito aos desaires.
Claro que numa segunda reacção me solidarizei e compreendi perfeitamente o
porquê daquela aparente aberração.
O Diogo
e a família visitaram-me no fim-de-semana passado,* hoje sou a feliz possuidora
de um lindo par de botins de borracha, pintados a preceito, donde sobressaem,
garbosos e prometedores os rebentos de inesquecíveis bolbos de tulipa. Chorei
abraçada ao Diogo.
* by Maria Luísa
Baião, escrito num domingo, 4 de Dezembro de 2005, pelas 22:34h e
provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.