segunda-feira, 29 de abril de 2019

600 - UNA FURTIVA LAGRIMA , by Luísa Baião * ...

             


Os anos tinham passado depressa. Como comummente dizia quando vários casais amigos se juntavam para farrar, “a vida fluía”. Raimundo, um estroina quando jovem assentara, ia já em três filhas e tornara-se “caseiro”. Família, trabalho, casa e outros encargos tomavam-lhe todo o tempo e orçamento do agregado. De vez em quando um convívio com amigos e respectivas proles enchiam-lhe o quintal mas não logravam esgotar-lhe a paciência.
 Dolores vivia feliz. Qualquer deles se realizara e concretizara sonhos de banco de escola. Exerciam profissões que lhes haviam preenchido as vocações. Amavam-se desde esse tempo longínquo, tinham três filhas adoráveis que lhes apagavam as agruras que uma tal situação acarretava, e alcançavam a custo os fins de meses esticando a corda. Era chapa batida chapa lambida, mas sobreviviam, sobretudo, se nada lhes sobrava também nada lhes faltava, e eram felizes, o mais importante.
 Vivendo um para o outro e para as filhas nem se davam conta da vida “cá fora”, já que as suas eram um rodopio de equilibrismo por cima de um arame demasiado esticado. A lufa-lufa era diária. Levantar cedo, prepararem-se e preparar as pequenas, pequenos-almoços que os gostos desiguais complicavam, enchendo a mesa de sumos, leite, café, papas, flocos, biberões, torradas, compotas, e que, como a qualquer outra refeição, enchiam a máquina da louça após o término.
 Dolores corria, de caminho prantava a mais pequena na creche para depois se fazer à estrada e percorrer trinta quilómetros até picar o ponto. Raimundo, que exercia na cidade, cuidava da “entrega” das duas restantes e da sua “recolha” ao fim da tarde. Uma na primária, outra na preparatória.
 As pequenas cresciam a olhos vistos, roupas e sapatos nunca lhes serviam muito tempo e eram alvo de reciclagem para passarem das mais velhas para as mais novas. Por enquanto não ofereciam resistência à manobra, era aproveitar enquanto dava, pois por certo não duraria sempre.
 Creche, livros, manutenção da família, despesas com os carros a que as circunstâncias obrigavam, deslocações e a prestação da casa deixavam-nos todo o tempo com o credo na boca e a língua de fora, contudo nunca se haviam queixado de que a felicidade de que desfrutavam lhes estivesse a sair cara. Nunca tal sequer lhes ocorrera e a bem da verdade só quando qualquer das meninas adoecia o semblante se lhes ensombrava.
 Naquele dia, mas não como sempre acontecera, enquanto distribuíam as crianças aproveitavam para escutar no auto-rádio as notícias da manhã. Morrera Pavarotti, anunciavam, e ambos experimentaram a dificuldade em ligar a cara do extinto a um dos três nomes que na televisão os tinham já divertido, Pavarotti, Carreras ou Plácido Domingo. À noite a Tv. desfaria a confusão. Lamentaram e lembraram o abraço dado numa noite em que um dos tenores nesse espectáculo, cantara “Una Furtiva Lágrima”, como se só a eles a canção fosse dedicada. Nessa noite e por mor dum abraço, tinham-se deitado como dois amantes, as meninas dormindo, a felicidade pairando, o amor surgindo pressuroso, explodindo libertinamente, como que contido por dias e dias de trabalho acumulado e rotinas cumpridas.
 Recordando esses pormenores Raimundo meditava igualmente na situação familiar que repentinamente se alterara e não entendia. Após anos de bom e efectivo serviço quer ele quer Dolores, incompreensivelmente, viam-se desempregados. Raimundo, obcecado e atormentado travou repentinamente e a custo evitou um embate. As crianças quase foram arrancadas dos seus lugares, valeu-lhes o cinto, que evitou o pior. Dolores pela primeira vez gritou para o marido, coisa que nunca fizera em quase quinze anos de casados, perdendo o controle de si mesma.
  A família ainda não sabe mas a pequenita, face ao corte brutal nos rendimentos do casal irá deixar a creche, agora caríssima ante a nova situação. Raimundo sabe-o, é nisso que pensa, este primeiro desentendimento é a ponta do iceberg. Sente-se frustrado profissionalmente e como homem. Que irá ser da família ? Irá perante tanta e imprevista adversidade desestruturar-se  ? E as crianças, como irão reagir ? E Dolores ? Não se queixara já ela da inutilidade, futilidade e trabalheira que o curso lhe dera a tirar ? Que iria fazer agora uma bióloga ? Dedicar-se a causas e projectos ambientais ? Tornar-se pacifista e ambientalista militante ?
  Rosália, a mais velha das três balbuciou para o pai estendendo-lhe ternamente um lenço de papel;
  - O que vai ser de nós ? Que vai acontecer ? E agora ?

 Raimundo nunca saberá se somente ele deu por aquela lágrima furtiva que deixou soltar. 


* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎20‎ de ‎setembro‎ de ‎2007 pelas ‏‎11:15h, não havendo certeza quanto a qualquer edição pública deste texto. Provavelmente inédito. 




quarta-feira, 17 de abril de 2019

599 - GANDA FESTA PÁ ! By Maria Luísa Baião * ...

Nós dois estivemos lá


Quando Abril chegou foi uma festa pá ! Na inocência dos meus dezassete anos não tinha precisamente consciência do que se festejava, mas como todo mundo estava em festa, como poderia eu ficar de parte ? E ainda por cima foi dia sem aulas ! Vocês imaginam a festa ?!

Sabia-se que no 16 de Março passado um bando de arruaceiros subversivos tinham feito uma tentativa de avanço sobre Lisboa no sentido de pôr em causa o governo “legitimo” da Nação, numa atitude clara de desestabilização da paz ordeira de que todo o povo comungava, tentativa aliás rapidamente controlada pelas forças da ordem.

Penso ter sido precisamente esse ênfase nas “forças da ordem” que veio colocar em desordem ou em desassossego o meu espírito. A confusão instalou-se em mim e então, como agora, enquanto não vejo as coisas deslindadas e claramente límpidas, não paro de questionar tudo e todos.

Desde quando os soldados foram considerados bando de arruaceiros subversivos ? Logo aí começaram as minhas dúvidas metódicas e depois achei imensa graça a uma palavra nova para mim, “subversivos”, motivo pelo qual de imediato simpatizei com eles.

Ninguém respeitou o recolher obrigatório em 25 de Abril, abandonámos alegremente as chatas aulas de lavoures dessa manhã e concentrámo-nos na escola em alarido, algumas de nós não percebendo de todo o que se passava. O simples facto de se ter transgredido a “ordem estabelecida” era motivo de regozijo para todas (os), mais a mais professoras e professores andavam numa roda-viva, até que nos concentrámos em volta de um rádio que alma anónima colocou alto e bom som no Polivalente da Gabriel Pereira.

Exemplo de campanha de alfabetização política

Vibrei, vibrámos pela primeira vez em uníssono ao som de Zeca Afonso. Alguém contou que a fanfarra percorria as ruas da cidade e todas ao molhe abandonámos a escola e procurámos a “festa”, mas não a encontrámos. E não a encontrámos porque a “festa” não tinha um lugar, a festa era em toda a parte e comungada por todos, a festa era a cidade inteira e quando pudemos ver as primeiras imagens da TV constatámos que a festa não era nossa, era de Portugal inteiro, c’a ganda festa pá ! E aprendi mais nesses dias que em tantos anos de vida ! Palavras novas como democracia, liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade. Vi lágrimas de emoção nos olhos das gentes e também eu cantei, gritei e chorei, pá ! De alegria pá ! Era a nossa festa pá !

E nos dias seguintes a festa continuou, chegou o Mário Soares, o Cunhal, Sérgio Godinho e George Moustaki, que estavam longe, para ajudarem à festa, todos cantaram “Avril au Portugal” e os cravos floriram na ponta das espingardas enquanto soldados deixavam de morrer longe na defesa do Portugal uno e pluricontinental que de um momento para o outro descobriu que não estava “orgulhosamente só”.

Fiquei rouca de tanta festa, sedenta de palavras, de significados novos, e não mais pararia a minha curiosidade, fiquei a saber ter direitos que até aí alguém guardara de mim, descobri ser gente e a minha opinião contava. Percebi que o certo estava errado e vice-versa, que Nixon e os americanos não eram os Anjos do Vietname, nem Israel o Santo do Médio Oriente. Conheci a opressão precisamente quando ma tiraram de cima, mas tomei consciência do modo e da forma como ela teimava em perseguir outros noutros cantos do mundo, no momento em que o sol começou a sorrir para todas nós.

E a imprensa! Que mudança ! Passou a dar gosto lê-la, posso dizer que foi aí que me viciei na leitura de jornais e revistas. Casei-me no ano seguinte ao da Revolução de Abril, claro que com o meu namorado, mentor e tutor para a área politica, casei-me portanto com o país ainda em festa, fiz do casamento uma partilha que já dura há vinte e seis anos e está longe de completada.

E como as interrogações não paravam de me assaltar e as dúvidas metódicas eram muitas, fui gradualmente resolvendo uma de cada vez, aplaquei a sede de saber procurando as respostas, estudando. Hoje assaltam-me outras, dizendo respeito a todas (os) nós e que em conjunto procuro resolver no seio desta sociedade democrática em que nos movemos e em que todos temos devemos contar com todos. Estou mais velha, a festa já me vai custando em certos aspectos, será por estarmos cansadas (os) que tudo se move agora tão devagar ?

Para mim continua, hoje e todos os dias enquanto Abril sorrir, serão para mim sempre dias de festa ! 
Nós dois estivemos na festa
* By Maria Luísa Baião, escrito terça-feira, ‎24‎ de ‎Abril‎ de ‎2001, ‏‎14:45h e publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER nos dias seguintes.

598 - HA RELÂMPAGOS NO CÉU, By Luísa Baião *




O mundo está preso à guerra, a televisão faz-nos chegar a um palco que até há pouco tempo nos era inacessível. Por mim nunca vi tanta televisão em tão pouco tempo, a guerra sempre me assustou, e sou contrária ao pensamento da mesma como medida higiénica. *

O meu marido foi para o Iraque como voluntário, assim uma parte de mim está no médio oriente. Adormeço a ver a guerra, acordo com a mesma e nos pequenos pedaços de noite em que consigo dormir, sonho com um país de calmo relevo, banhado por belos rios.

Contudo os senhores da guerra não dormem, e vão concebendo cenários esquecendo-se muitas vezes que as personagens são animadas por sentimentos. A guerra funciona para esses senhores como um prato apetitoso pelo qual se deixam deslumbrar. Ao longo dos tempos o homem preocupou-se em desenvolver as suas armas, procurando através do seu aperfeiçoamento a superioridade. Chegou agora no nosso tempo a preocupação, tanto aperfeiçoamento servirá para o seu extermínio. Para todos os que pensam que a guerra só pode acontecer por loucura, então o mundo está louco, sempre o pensei mais sensato.**

Contudo interesses mais altos se levantam, é a economia e o ouro negro falando mais alto que o amor entre os homens. O fim da guerra ainda não se adivinha, espero que os senhores da guerra não esqueçam ajudar quem resistir. A todos aqueles que tiverem alguém nesta hedionda guerra e que amem sem reservas os entes queridos, deixo o meu pranto inconsolável, por revolta contra a situação, não me apetece reprimir ninguém, tão grande é a dor, que me sinto como culpada.






* By Maria Luísa Baião, escrito e publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER em Março / Abril de 2003.



597 - EU FUI BER O RUI BELOSO, by Luísa Baião *




Fui à Feira de S. João e fiquei petrificada logo ali naquela entrada que dá para o nosso Íbis. Que feira mais arrumada ! Tinha até carreiros de água serpenteando ondulantes por onde antes sufocábamos e errando desesperábamos p’ra bencer os ambulantes.

Mais abante, surpresa ! Uma fonte, uma beleza refrescante, apaixonante, p’ra quem p’la feira se enleia em passeio mirabolante. Alegre e claro, bem disposta ao Jardim rumei então, pois foi para isso que bim, oubir nessa noite fresca e de uma boz que refresca, uma ou outra canção.

Habia já ao chegar luzes no ar  iluminando e fustigando a mole humana comprimida, p’ra ber e oubir bradando, o nosso homem do norte. Nem sempre nos calha tal sorte por isso lá fui esperançada de, ao cheiro de urzes cantando, ir mitigando saudades de outros tempos, outras eras, em que, bibendo em inocência não adibinhaba inda bir a ser lançada às feras.

Buscando alegria fui pois de sandálias e lebeza, com a certeira certeza de não me ir arrepender de uma bez, sem muis exemplos, deitar a noite a perder. E quando os primeiros acordes me puseram em alboroço, deixei o coração ficar louco e oubi-o a gritar-me:

- Hoje não dormes !

Tal e qual eu assim fiz, como quem traça com giz no negro que o céu mostraba, qu’essa noite me baldava a formalismos e outros trajos, já que não é por pôr andrajos uma bez por outra na bida que deixo de ser quem sou ou passo a andar perdida.

 

Ginguei as ancas para os lados, em debaneios estudados e gestos belhos de ensaiados, mas que deram resultado quando menina e moça era, e confesso, birei os olhos a namorados que tive até ficarem quadrados.

Saltaram notas e sons de banda bem afinada que depressa deram asas a toda aquela rapaziada. Desbairada também eu, me atirei mui exaltada para cima de um candeeiro, é que o parceiro que lebaba, estaba já c’um grão na asa e não oubiu o conbite que bradei para ali bailarmos. Com o candeeiro bailei e bem me saracoteei com o fluir de melodias, tão belhas quantos os dias que desde menina contei.

E as notas derrapabam loucas pr’a fora das pautas, bi muitas boando alegres por cima das copas altas de árbores que, ou eu me engano ou dançabam também elas, como outros moços imberbes que a meu lado abanabam os abanos.

Passaram por mim fantasmas que não bia há muito tempo, almas queridas de emoções que guardarei sempre cá dentro. Um Xico muito fininho, um génio de lamparina, um ingénuo de rubi, um Grão Bizir de Porto Cobo e um espertinho de aldeia a trabalhar na cidade. Boltei a ber com meus olhos o rapaz da Piedade, alentejano de gema. Pr'a não biber da caridade se fez ao mundo mundano mas que nunca negou a pena, a saudade e o prazer, se calhaba à mão ter farnel pr’a merendar, é qu’esta coisa da idade tem coisas que têm porras, como ter o belho hábito de beber café de borras.

E o pobo foi sereno, nem bateu no cantador, nem lhe jurou pela pele, antes mui pelo contrário, cantou com ele em binário e silencioso clamor. Sei que será para alguns motibo de perplexidade, mas a turba demonstrou possuir maioridade, nem hoube nexexidade, mesmo quando de ânimos em pleno e em sintonia berraram, de bradar p’lo PR, pois cantores e tocadores eram gente de respeito e ao respeito se deram.

Pulei e saltei contente como faz mui boa gente sem peias nem preconceitos e quando dali parti, disposta com o que oubi a secar sede tamanha, ufana enchi os meus peitos e fui direita à hortinha buer umas cervejinhas.

Calharam que nem pitéu digno de reis e princesas, frescas que estabam no copo e me custaram um guinéu, porque ainda por aqui bibe quem faça as contas ao mundo sabendo que tudo o que há, ou se dibide e reparte, ou se faz de um mar de enganos modo de biber sem arte.


* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎19‎ / 06 / 2003 pelas ‏‎19:09h, publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER nos dias seguintes.

596- LEVAR A CARTA A GARCIA...by Luísa Baião *


       Reza a história dos finais do século XIX ter existido pelo menos um homem que, se fosse hoje vivo, imenso nos ensinaria a todas, muito especialmente aos homens e mais concretamente a todos que, erigidos em maioria há décadas assumiram a (i) responsabilidade de nos governar.

       Não quero imaginar quantos corariam de vergonha, como não pretendo que considerem esta crónica um panfleto feminista, não é esse o caso, o assunto é bem mais grave.

       Reza a história que durante a guerra Hispano – Americana tendo rebentado revoltas separatistas em Cuba, nesses tempos (1867 – 1898),debaixo do domínio espanhol, os EUA, defendendo também já nesses tempos e preventivamente os seus próprios interesses, terão apoiado os rebeldes independentistas na sua sublevação contra Espanha.

Não dispondo essa época recuada, sobretudo esse remoto lugar, de meios de comunicação mais eficazes que os sinais de fumo e surgida a necessidade de um general americano articular apoios com os revoltosos chefiados por um rebelde de nome Garcia, chamou a si um dos oficiais em quem depositava maior confiança tendo-lhe entregue uma carta, ou mensagem provavelmente lacrada, com a singela menção de ser entregue a Garcia.

É neste ponto que a história nos lega a sua lição já que, desconhecido o paradeiro de Garcia, embrenhado nas montanhas e na selva que meio século mais tarde viria a dar cobertura a Fidel de Castro, recheada de carreiros labirínticos, povoados inlocalizáveis e com toda uma ilha para percorrer buscando o desconhecido paradeiro de Garcia, o nosso oficial não hesitou perante a incomensurável missão que lhe havia sido confiada. Não fez perguntas, não alardeou dificuldades, não alvitrou sequer a improbabilidade de ser nessas contingências mal sucedido.



Deve ter pensado para com os seus botões que o que é para fazer, faz-se e que o melhor seria começar de imediato. Partiu confiante de que por uma tarefa bem desempenhada só lhe caberia mérito, que do cumprimento dos objectivos determinados resultaria proveito para a sua nação, que por intermédio do seu general nele depositara o cumprimento da tarefa e a responsabilidade pelos resultados.

Não só hoje mas por cá, ministros, autarcas, médicos, vereadores, juristas, educadores, fiscalistas, estudantes, empresários, todos nós, políticos e apolíticos, vimos demonstrando uma incapacidade inata para levar a carta a Garcia.

Inspirou-me esta crónica o facto de sexta-feira passada, 31 de Outubro, ter decorrido no Garcia de Resende um debate sobre cidadania e civismo, de que nos arredámos orgulhosamente. Nem a presença do Dr. João Salgueiro, cidadão e reputado economista captou o interesse da cidade, dos seus empresários, das nossas elites (?), nem a presença do presidente da nossa autarquia arrastou os desinteressados munícipes para a curiosidade pela coisa pública, pela coisa deles, nossa, nem a presença do presidente da Associação de Estudantes da Universidade logrou conquistar a presença de um único estudante. Cem pessoas se tanto, ali se encontraram buscando resposta às perguntas que conduzissem ao caminho que leva a Garcia.

Moral da história? Perguntarão vocês, simples, se cada português se compenetrasse da importância do seu desempenho nos resultados por si obtidos na quota parte que lhe toca no desígnio nacional, talvez hoje não estivéssemos a vender o nosso património e, ainda que tenha demorado um pouco mais a imaginar, vendendo o impensável, as nossas próprias dívidas e a estrangeiros ! Verdadeiro reconhecimento das nossas naturais incapacidades.

Aliás pouco importará se é estrangeiro ou conterrâneo, já que na realidade quando se iniciar a cobrança dessas dívidas, por certo através de execuções em tribunal, a culpa será de novo dos outros, dos estrangeiros, bárbaros insensíveis perante o fecho de empresas, dos despedimentos que arrastarão, dos dramas que semearão.

Bem pode Jorge Sampaio bradar em Madrid, pois por aqui decerto nenhuma lhe ligariam. **

* By Maria Luísa Baião, escrito em ‎28/11/‎05, ‏‎pelas 21:57h e publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER provavelmente no mês seguinte.


Hermes
Hermes

segunda-feira, 15 de abril de 2019

595 - PALAVRAS, LEVA-AS O VENTO ... PAROLI ...

               

Ela era bonitinha, formosinha e alegre. Cobiçando-a ele mirou-a de alto a baixo pela enésima vez, medindo-lhe as palavras, os trejeitos, as formas, as expressões, os sorrisos e as gargalhadas, tentando adivinhar-lhe as intenções.

Havia na rebeldia dos seus cabelos, e nela, uma vontade disfarçada de se entregar, de se submeter a quem tomasse conta dela, seria uma rebeldia de trazer por casa e com a qual se enganava a ela mesma e à solidão vivida a que se acomodara. Talvez tivesse dado a si própria algum tempo até reencontrar o amor, até que a sua busca acusasse na conta corrente um saldo a favor, positivo, um saldo que lhe aliviasse o sofrimento e a consciência, um saldo que lhe devolvesse os sonhos e a inocência de outros tempos, um saldo que a resgatasse da desilusão em que se transformara a sua vida.

Ele sofria em silêncio, a vida roubara-lhe há bem pouco tempo sonhos e rebeldia. Tinham-no cercado nuvens negras carregadas de um desamor do mais escuro alguma vez visto, donde se desprendiam gota a gota e instilando em si quer a solidão quer a desilusão dos dias e das noites, como quem cientificamente aplica num condenado a tortura do sono.

Se o visse agora, de ombros caídos e olheiras fundas, o velho e sábio Azekel* um velho tucokwe, velho mui velho que meio século atrás viveu junto ao Cunene, na aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado perto de Calueque, sempre e pachorrentamente mirando com solene paciência e excelsa exactidão aqueles que passavam, teria dito deste desgraçado:

- A mordedura de um cão só se consegue curar com o pelo de outro cão.

O amor era portanto a solução, urgia encontrar outro amor, um grande amor que lhe enchesse sonhos, cama, dias, e lhe cortasse cerce sofrimento e desilusão, devolvendo ao desgraçado o direito a sonhar de novo, a rebeldia inata a si mesmo e natural nele, um amor que lhe transmutasse os dias negros a que tristemente se acomodara, o tornaram choroso e a quem unicamente uma solidão inocente alimentava, dias mais ditados e vividos pelo coração que pela consciência, todo ele incapaz de aceitar o carma, o fado, o destino a dor e a perda com que Deus o carregara.

Urgia portanto, quer a um quer a outro mudar-lhes a aura, buscar o amor, sacudir o desamor desses dias, sacudir dos ombros a desilusão que o tempo lhes atirara para cima e procurar de novo a inocência dos sonhos, o alívio da consciência que um abraço sempre traz como bónus.

Nele tal mantra teria que funcionar como o resgate que o arrancasse ao martírio a que voluntariamente se entregara e fruto de uma fidelidade absurda mas jurada mas, há sempre um mas, como se apaga o amor de um coração que, qual cofre, o guardou com devoção e ternura, como ? Como relembrar a letra do segredo e a chave esquecida, ambas deitadas fora depois de fechado o coração ?


E não buscava ela o mesmíssimo amor de que ele se mostrava tão necessitado ? Então como não via ele nela a paixão e a cura dos seus males, tão ridente ela se mostrava, tão empática, tão disponível, tão sempre à mão ? Que coisa seria que os travaria então levando-os a calar-se e a encolher-se apesar do calor, apesar do frio ? Certamente só Deus saberá, porque apesar da ternura os tentar e a vontade empurrar para os braços um do outro nunca sucumbiram ou cederam à mãe natureza.

Não me cabe nem posso falar por eles, sou um simples espectador e narrador, não devo nem posso mais que adivinhar-lhes o pensamento, os sentimentos, tomar-lhes o pulso ao sono, ou antes aos pesadelos, mas, entre uma alma em busca de marido e outra alma cujo amor e fidelidade se rendera e jurara fidelidade a uma ilusão, somente um choque ou uma desilusão acordarão.

Certamente evitando acender nela o fogo ele evita-a e, não querendo ela tomar a iniciativa por tal não lhe parecer correcto ou temendo lhe chamem oferecida, não o encoraja e então, ainda que de vez em quando almocem ou jantem juntos, como bons amigos, seria contudo caso para dizer que entre eles nem o pai morre nem a gente almoça, pois não se decidem...

A propósito, são quase horas de almoço, vamos a ele.




Manuscrito num guardanapo, Segunda-feira, dia 15 do mês de Abril de 2019 pelas 12:30h à mesa do New Concept Coffee & Shop - Urbanização da Cartuxa, em Évora.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

594 - NOVAS CRÓNICAS, OUTRAS CRÓNICAS, by Maria Luísa Baião *


Raramente recuso um desafio em especial se o mesmo constitui algo que me motive, agrade, e sobretudo seja por mim entendido como um desafio diversificado, como o serão estas crónicas, diferentes semana após semana, mas sempre viradas para os problemas do presente, sobretudo aqueles que nos digam directamente respeito, quer enquanto cidadãs (ãos) do mundo, quer acima de tudo como cidadãs (ãos) do Alentejo.

Há muito que o Director deste Jornal me lançara o convite, mais um repto que um convite, a que considerasse à minha disposição as páginas do seu prestigiado diário, assunto que mais que uma vez veio à baila, isto é, sempre que nos encontrávamos. Mal sabia que as suas palavras eram música para os meus ouvidos, ouro sobre azul, adorando como adoro, falar convosco escrevendo.

Aqui estarei todas as sextas-feiras, dando-vos conta das minhas impressões, mas acima de tudo expondo um olhar muito próprio, um olhar de mulher, numa perspectiva muito pessoal mas que certamente não deixará de se identificar com muitas (os) de vós.

Escrever é para mim uma forma de estar convosco, sabemos quanto o tempo é precioso por escasso, e na impossibilidade de com todos privar esta é uma, a única forma ainda que minorada de o fazer. Não será contudo a distância ou a ausência que impedirão que chegue até vós o meu testemunho, a intimidade dos meus pensamentos, que não receio repartir.

A cidadania tanto é um direito quanto um dever de todas (os) nós. Escrever, dividir convosco temores e apreensões, desejos e emoções, anseios e aspirações, será uma forma igualmente solidária de exercermos, praticarmos e cumprirmos essa cidadania.

O mundo é demasiado complexo para que o ignoremos, a cidadania e a democracia exigem a cada dia que passa a nossa participação mais ou menos empenhada, daremos se necessário um só passo de cada vez, mas faremos juntas (os) essa caminhada.

Para as (os) que já me conhecem tudo será mais fácil, para as (os) novas (os) leitoras (es) direi que é para mim um enorme prazer poder contar convosco, da mesma forma que poderão contar comigo, aqui neste espaço semana após semana buscando motivos para que todas nós, Diário do Sul incluído, possamos dizer que valeu a pena.


 Interrogar-se-ão porventura com o aparentemente absurdo título escolhido para estas crónicas, KOTA DE MULHER, surgiu por obra e graça do espaço político que se pretendeu conceder à mulher, como se não fosse por direito um espaço dela, a quem se alguma culpa podemos apontar é ao facto de “perder” tanto da sua vida a criar os filhos, esses filhos que numa atitude altruísta lhe pretendem dar agora o espaço, o tempo, a oportunidade, a dízima do que lhe devem.

E porquê com “K” ? porque nunca consegui esquecer a ironia, o sarcasmo, a sátira , implícita na frase “anarca” que no pós 25 de Abril imperava em tantas paredes; “ a porka da politika”. Ora sucede que eu não considero a política dessa forma, mas antes como uma causa nobre, (eventual e pontualmente servida, ou usada por gente menos nobre), ainda que não tenha evitado deixar escapar um irónico sorriso quando veio à tona o assunto das cotas.

Resultado, toma lá com um K, carregado evidentemente de toda a ironia, sarcasmo e sátira com que os “anarcas” pretenderam recheá-lo. Pelo menos um mérito teve em mim o assunto das cotas, levou-me a uma participação civica mais activa entre as quais se inscreve esta coluna que semanalmente com gosto e alegria escreverei a pensar em vós.

Feita a apresentação, com amizade me despeço de todas (os), com a garantia de que para a semana, todas as semanas, todas as sextas-feiras, aqui estarei convosco.


* By Maria Luísa Baião, escrito sexta-feira, ‎5‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2001, ‏‎23:04h e a primeira publicação no jornal DIÁRIO SUL dada à estampa nesse mesmo mês.



593 - O PORTINHO DO CANAL , by Luísa Baião *


Portugal afundar-se-á um dia dizem-no agora os números que há muito o bom senso conhecia. Há tanto quantos os anos que Milfontes eu não via e, enquanto a água para o mar corria, floresceu esta vila de tal maneira que se tornou um espanto. E tão harmoniosamente cresceu que vila já não me pareceu, antes trabalho laborioso bordado por cerzideira abnegada, animada e esperançada em mil amores.

Não é um malmequer que se nos oferece à chegada, antes um roseiral onde qualquer de nós se perderá endiabrada no meio de mil casinhas perfumadas, por caprichoso beiral rematadas e onde o desacerto dos homens ou bolsa endinheirada não logrou ainda erguer aos céus a sua ânsia ávida que, por todo o litoral se ergue como hirto falo da ganância.

Linda é ainda essa vila de mil fontes salpicada. E para tesouro lhe chamarmos só falta mesmo uma outra estrada que a ela nos conduza, que sereias cantem uma Ode a quem Mira sua beleza, a quem não escusa suas águas pois não são só elas que ao partir nos deixam mágoas.

Nem tão pouco as fráguas que delas afloram, tornando mais belas as viagens que nos oferecem miragens de corpos em oferenda a hélio, ilusão de verão de resultado méleo, fruto dos modernos valores que a muitas toldam a razão. Há bem mais de vinte anos que a ninguém lembra cuidar dum regaço de areal entre a marginal e a orla espumante, onde nem o suave rebentamento das ondas o pensamento nos salpica. Espaço de ciganos e ciganas, espaço nosso, fugitivas da rotina e dos enganos, espaço que a preguiça estica em evasivas de avestruz não consentidas. Que alguém a esse palmo de terra faça jus.

Frui esses curtos dias, vi fitas, ouvi melodias mil e mil frutos do mar quis devorar. E foi pelo pecado da gula que, não encontrando na vila onde me saciar, gentios astutos me alvitraram rumar ao Portinho do Canal. Descontente com esse tacanho modo de servir ou entender que felizmente já poucos teimam em manter, enfunei as velas e rumei ao sítio onde todas, mas todas, aconselho, desde o primeiro dia devem ir.

Uma cozinha com brio que nunca ofereceu fastio, suporta típica balaustrada sobre um mar onde nem uma barquinha se sentirá abandonada. Para as acolher o canal, para nos acolher esse beiral gastronómico, sem baixela de cristal mas com um menu em estrela e de sabor astronómico. E, enquanto em aleivosia as ondas da maresia formavam castelos de espuma, coisa alguma atormentava os meus manjares de rainha, inda que uma Tv em ladainha omnipresente, teimasse moer a gente.

 Num hemiciclo homens falavam, repetindo à exaustão um pesadelo, um quinhão que há muito a todos cansava, enquanto ali mais ao lado a serra ardia sem apelo. Há muito deixei de os ouvir, não vale a pena o flagelo. Será mais fácil um camelo carpir com desvelo sentido a perda de um qualquer bandido, que ouvir esses sonantes falar sem que nos tenham mentido.

Virei o olhar para o mar, onde reflexos raiados na crista de ondas montados lembravam lindas estrelícias, enquanto suave ondular trazia até mim sonhando, blandícias de encantar que me deixaram cismando.

Quão mais olhava e cismava melhor via sobre as águas, jardins, canteiros e arranjos, como se todos os arcanjos se tivessem combinado p'ra tornar o mar matizado de odores brejeiros emanados de jasmins nele bordados.

Barcos de todas as cores desfraldavam as bandeiras c’os nomes dos seus amores em cores azul-turquesa e rubi de amoras copiados, misturando corações em framboesa pintados, dando alma a cada mestre e a cada leme plantado. Dois cães, dois amores-perfeitos em correria por ali rematavam este quadro que vos conto porque vi, não por estar em esquadro armado ou cavalete empoleirado.

Vá ao Portinho por mim, que deixo recomendado, é apontar ao Cercal, o resto é caminho andado.
  

* By Maria Luísa Baião, texto inédito, escrito às 16:25 h duma sexta-feira, ‎22‎ de ‎Julho‎ de ‎2009 em Vila Nova de Mil Fontes, ‏‎após lauto almoço comigo, seu marido, e o nosso comum amigo Francisco Pândega, precisamente nesse restaurante.  



quinta-feira, 4 de abril de 2019

592 - ESPERANÇA NAS ESTRELAS ! texto inédito, by Luísa Baião, quarta-feira, 9 de Setembro de ‎2004 *

                



Quem sou eu que neste canto nasci, menina e moça me tornei, aqui cresci, meditei, sofri e deambulei. Me fiz mulher me fiz mãe, me impus um querer, e medrei ?

 Passei as passas dos infernos, praguejei contra os Invernos, nasci com a vida torta em casa de estreita porta, valeu-me uma alma rebelde e uma vontade indomável de endireitar esta vara cuja alma Deus alara.

 Passei essa estreita porta que alguém me quisera impor, como fluído em retorta, sublimei e, sem desdém, caminho altiva sem receio que em meu redor qualquer actor minimize o papel que com amor desempenhei, qual invectiva defensiva de quaisquer censores mundanos, contra labor que abracei com o furor de um marçano jurando morrer gerente e disso fazendo lei.

 Sem causar dano, só bem, também luto com primor e contra o mundo me bato, qual pretor que, com rigor, impõe a si mesma a grei, e, ao cabo dos trabalhos ainda me resta frescor, levo a vida com humor e, creiam-me, apesar do tanto que corro, não será disto que morro.

 Roguei pragas, rezei preces, sarei chagas. Lambi as benesses do meu ser exangue, sou hoje o resto do que paguei em sangue, em suor, em lágrimas de dor. E perguntarão vocês a que propósito hiperbólico vem esta história cismada, pois que se saiba trabalho não significa delito ou enxovalho, ainda que, sabem-no bem não é profecia, por vezes p'ra mais não chegue que barrigadas de nada. E não sendo assombradiça ou na magia fiando, revoltando-me ser submissa, resta-me no vaivém da vida esforçar-me por me ir lembrando de quem comigo porfia.

 Mania minha, dirão, fervor de crente alinhavo, pois não será qualquer paspalho que atrás desta orelhinha me jogará o cangalho. Meu amigo é quem me ajuda, quem me acode se sisuda nem me aceita carrancuda, aos outros direi – caluda ! - Só escutarei quem partilhar este meu porto de abrigo, inda que seja um mendigo.

 Alguém um dia pintou estrelas no firmamento, alguém deu asas ao vento, libertou o pensamento. Alguém agora impulsionou vendavais que, como novos ideais, inspiram arraiais e mobilizam no cogito forças tais que nem cem, mil, carnavais igualam. Ideais que já foram, que de novo cavalgam o nosso agir, pois há que assegurar o porvir, assinalar o devir. São velhos novos ideais, velhos novos faróis, sóis...

 Acendamos novamente esses faróis, esses modos de pensar, esses catassóis, altares, esses mares por explorar, que são vera protecção contra o calcanhar de Aquiles do egoísmo, do individualismo, esses tumores ablativos a expurgar. Ergamos alto um farol claríssimo, na claridade apostando, exigindo reflexão, no rigor teimando e da crítica e autocrítica religião fazendo.

 Quem foi que manifestou uma flagrante actualidade de pensamento, quem foi que nos deu forças para novo impulso ? Quem foi que nos lembrou a hipótese de negar o patíbulo ? O tormento ? Quem defendeu essa tese ? Quem foi o mandante ? Quem foi o caminhante ? Quem disse e redisse que o caminho se fará caminhando ? O aprender, fazendo ? O querer querendo ? Quem foi que ousou ?

 Quem plantou as estrelas no céu ? Quem foi que nos deu a esperança ? Quem foi que disse ser possível o pensar autónomo, o pensar por nós mesmas, não como autómato ? Quem foi que disse ?

 Por isso afirmo e reitero que se todas aqui estamos gozando da mesma esperança, em vez desta contradança a que o fado nos conduz, se com agrado e com esmero eu achasse quem um bolero lhe cantasse, sem exagero vos diria valer a pena a franquia e dar por bem gasto o dia.


 Imagem relacionada

  

* By Maria Luísa Baião, escrito quarta-feira, 9 de Setembro de ‎2004, ‏‎‏‎pelas 21:42h e somente publicado no Facebook em 10 de Outubro de 2011.  

quarta-feira, 3 de abril de 2019

591 - TUDO TEM UM FIM, By Maria Luísa Baião *

 

            Quando esta crónica vir a luz do dia serão vésperas do momento de reflexão que antecederá as eleições para a Presidência da República. Espero sinceramente que os portugueses não se demitam das suas responsabilidades e compareçam em força no dia das urnas, debitando o seu precioso voto nas mãos do candidato que melhor preencher as suas aspirações.

É que a nossa democracia não pode contar com mais ninguém que nós próprios, e se é verdade que através do voto elegemos os nossos representantes, é também verdade que não o fazemos para que eles venham a votar por nós. Não devemos aceitar ter passado cinquenta anos a exigir eleições livres para que agora nos venhamos a dar ao luxo de as menosprezar, Salazar daria certamente duas voltas na cova, morreria mesmo de riso se não estivesse já morto, ao constatar que afinal ele é que tinha razão e conhecia os portugueses melhor que qualquer um.

Abominemos portanto a abstenção, utilizemos o voto, que é a arma do povo, castiguemos com mão pesada todo o político que nos mereça indiferença, mas por amor de Deus não brinquemos ás democracias ! A menos que a nossa revolta seja tão grande e a indignação tão profunda que só pela força nos possamos ressarcir da desconsideração sofrida. Mas aí atenção, teremos que trilhar caminhos mais duros, porventura mais trabalhosos que o simples acto de votar, caminhos que nos poderão tragar, caminhos de revolta, de revolução, e é por demais sabido que os primeiros que uma revolução devora serão sempre os seus filhos mais dilectos.

Mas se não é esse o caminho escolhido, se a ETA ou o IRA, (para não citar outras fontes de luta e sublevação violenta) não seduzem, então leitora ou leitor aproveite, dê um passeio com o seu marido ou esposa, leve as crianças ao parque ou ao jardim, beba uma bica, converse com os amigos, e de caminho dê um saltinho ao local habitual e vote. Lá encontrará outras amigas e amigos com quem poderá carpir as mágoas desta tão pesarosa democracia. No entretanto terá cumprido o seu dever de eleitora, ou eleitor, terá colocado um ponto final nas suas apreensões, por agora o seu dever cívico está cumprido, não esgotado, tudo tem um fim, por esta vez a tarefa estará terminada. E bem vistas as coisas não custou nada e até foi agradável não foi ?

Na realidade tudo tem um fim, também irá deixar de contar com estas minhas crónicas que semana a semana tanto prazer me têm dado. Como bastas vezes afirmei, elas são, foram, o meu modo de estar consigo, de privar consigo, de superarmos o tempo que não temos para que possamos, pudéssemos desfrutar de alguns momentos de conversa, de intimidade, que em especial a mim tanta satisfação têm dado. Outros compromissos me obrigam a esta atitude, ponderada, reflectida, difícil, mas inadiável. A todas as leitoras e leitores deixo a minha consideração e o meu agradecimento pelo carinho e compreensão que sempre me demonstraram, creiam que não vos esquecerei.

A este semanário, que de forma tão desinteressada me abriu as suas portas muito tenho a agradecer, da disponibilidade à aceitação incondicional dos meus escritos, que nunca foram objecto da mais pequena observação, critica ou censura, até a alguma notoriedade e reconhecimento público que o IMENSO SUL me permitiu, tudo isso lhe devo, e respeitosamente agradeço.

Nunca esquecerei terem sido aqui as minhas iniciação e exposição pública de quanto de íntimo me ía na alma, uma aventura que se transformou numa necessidade e mais tarde num vício do qual tiro o maior prazer, o prazer de poder estar com todos vós. A este semanário, a todos os seus elementos e colaboradores, deixo o meu muito obrigado e os votos das maiores felicidades. O IMENSO SUL será para mim eternamente um ponto de referência, que, como habitualmente, não deixarei de acompanhar como leitora todas as sextas-feiras.

A todos vós um grande xi coração.


* By Luísa Baião, escrito domingo, ‎7‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2001, pelas 22:22h e a última publicação no semanário IMENSO SUL, ‏‎ tida lugar a 12 desse mês.