segunda-feira, 26 de outubro de 2015

283 - NEM OITO NEM OITENTA ...............................


Ela pousou a mão com cuidado, diria antes com delicada suavidade agarrando com firmeza. Limitou-se a fazer deslizar a mão, como quem toma consciência das coisas, não queria usar de força a mais, desnecessária até e contraproducente naquela situação, pelo que depois de agarrar firme mas escrupulosamente e de feição, rodou cuidadosamente a mão para um lado e para o outro a fim de lhe tomar o efeito e, encostando a perna apressou os movimentos que foram ganhando impetuosidade e persistência, ou cadência e, buscando mais confortável posição e que lhe permitisse aplicar essa força de modo mais prático e proveitoso encostou também o ombro e a cabeça, insistido nos gestos de modo que, ignorando a realidade mas sendo possível observá-la do exterior diríamos encontrar-se em desespero, por fim e numa cadência multiplicada, aplicando simultaneamente mais força na coxa que lhe encostava e no ombro com que empurrava logrou repentinamente o seu objectivo e, nesse preciso momento o sorriso de esgar se lhe transformou num radioso e rasgado sorriso de orelha a orelha, como se da satisfação obtida jorrasse uma luz, uma luz resplandecente, iridescente e maravilhosa que a banhou num jacto quando já desesperava de conseguir os seus intentos e colocava em si mesma a culpa de falta de força ou de jeito, ou de ambas as coisas, quando na realidade sabemos que não lhe cabia a ela a causa de tal imputação, pois toda se aplicara e dedicara afincadamente a uma situação que nem previra e com a qual nunca contara, enquanto nós sabemos quanto o imprevisto pode dar cabo das melhores intenções, e que a falta de planeamento ou de programação nos obrigam ao improviso, quantas vezes sem resultado positivo, proveitoso, ou sequer satisfatório ou aceitável, deixando tudo ao sabor do acaso, ao Deus dará, ao calhas, entregue à sorte, coisa que ela de todo não desejava, não queria, e temia até, como sabemos.

Gostava das coisas dentro de uma certa razoabilidade, nunca esperava nem desejava milagres embora em criança tivesse sido educada num colégio de freiras em Gurué, igualmente e com a mesma fé abjurava o desastre, o imprevisível, o irrealizado ou o objecivo não conseguido. O normal e expectável bastava-lhe, nem tanto ao mar nem tanto à terra, nem oito nem oitenta, a normalidade era a sua praia, era nela que se sentia bem e à vontade consigo mesma e com os outros, pelo que a cena que ora terminara a exasperara e deixara irritada, irritável e com uma compreensível má disposição.

Conhecera-o num congresso de bibliotecários, arquivistas e documentalistas, o seu ar jovial e o porte atlético em contraste com o balofo marasmo da profissão escolhida atiçara a curiosidade dela sobre ele ao ponto de ter dificuldade em o imaginar numa biblioteca, reino do silencio onde um gesto repentino ou inusual não tem lugar, nem sequer concebemos, muito menos ela o conceberia ali, lá, peado, mãos amarradas por um garrote, risos abafados, não andando mas deslizando os pés num sussurro, não, ela nunca o imaginaria assim, antes de mangas arregaçadas e colarinho desabotoado, fralda da camisa por fora, desbragado, cabelos ondulando ao vento e tocando-lhe na face, na dela, que já antevia o seu abraço, já se via nos seus braços musculados e morenos por isso lhe era cada vez mais incompreensível e penoso que ele tivesse escolhido uma profissão de maricas, se não de maricas pelo menos amaricada, e só aceitava sonhá-lo manobrando um veleiro, agarrando firmemente a roda do leme, ajustando as velas, retesando o cordame e cheirando a “Old Spice”.

Fora preponderante na compra daquela velha mansão o seu estilo clássico, claro que o preço também ajudara, os dois se encarregariam de, com tempo, procederem ao seu restauro com o mesmo cuidado que ele colocava nos palimpsestos que manobrava ou restaurava na biblioteca e lhe moldava o caracter, a têmpera, a calma e sobretudo a perseverança e a paciência. Começaria pelas divisões de maior premência, o quarto grande, a casa de banho mais próxima dele e a cozinha. Depois e gradualmente recuperariam o resto da casa, da chaminé às clássicas janelas e portas, as primeiras de vidros cristalinos e biselados. Foi assim que no quarto, de tecto alto, os cortinados que mais pareciam um panejão de palco foram casados com uma cama com dossel, de estrutura em baldaquino e colocada na parede oposta à lareira. Naquele ninho acolhedor ela sentir-se-ia uma rainha, e não fosse a desmesurada altura das janelas e das portas e o quarto de dormir, nupcial, seria o paraíso na terra. Talvez eu me tivesse esquecido de esclarecer, mas o ar extasiado e absorvente que ela apresentara sempre que a ele coubera discursar para a plateia tinha sido notado. Não por acaso ela escolhera os lugares da frente, e quando já se imaginava ficando para tia ei-la ali entregue àquele adónis cheirando a barro, a papiro e a pergaminho. Afinal não pedira nada mas desejara-o fervorosamente, e o milagre aconteceu.

Sentia-se uma rainha, e passara a prestar mais atenção a si mesma. O quarto, mau grado as dimensões majestáticas era um ninho acolhedor pelo que devia atribuir a si própria, e não ao quarto ou a ele a sensação de estranheza sentida, como se ainda duvidasse de tudo, em especial dele, ela que dificilmente deixava alguém chegar-lhe perto, para mais tratando-se de homens. Mas não, não fora ele que a desiludira ou iludira, fora ela que abrira uma excepção no modo e postura para com os outros, para com ele, para com os homens, a quem invariavelmente considerava alarves, engatatões, interesseiros e vezeiros, só lhes interessando a satisfação dos seus prazeres quando afinal este não era nada disso, não era nada assim, pelo menos quanto a este ela tinha-se enganado redondamente e ainda bem pois era feliz, sentia-se feliz, o sexo não era o papão assustador que ela julgara e agora apreciava tanto quanto ele. Custava-lhe admitir mas, no caso, ela é que o tinha engatado, a engatatona afinal tinha sido ela, e sinceramente sentia por vezes vergonha de si mesma. Não haveria afinal tantas razões para temer os homens, em especial este gentil bibliotecário.
     Em desespero e afogueada, juntou todas as forças e, fincando o pé na almofada da porta, agarrando o lindo puxador de cristal e porcelana afastou-se para ganhar balanço tanto quanto os seus braços lhe permitiram e aplicou, enquanto o pé empurrava e a mão torcia a maçaneta para fazer rodar o trinco, uma valente pancada com o ombro, orando mentalmente para que a manobra surtisse o efeito desejado, e assim foi. Ouviu-se um estalido, que ela sentiu na mão através da maçaneta e a alta e pesada porta finalmente abriu-se, diga-se que de rompante e, não fora ela ter dado um passo em frente no momento certo tendo-se apoiado no puxador e certamente teria caído estirada ao comprido no chão, fruto da sua própria força, vontade, ímpeto e impaciente desespero. Ele acordou sobressalto com a manobra e de um pulo estava junto dela, amparando-a, acarinhando-a, consolando-a, mimando-a e jurando-lhe que não passaria outro dia sem que oleasse o mecanismo da velha fechadura que, volta não volta teimava em não abrir e ameaçava encerrá-los no seu “castelo do amor”, como ele se referia ao quarto onde a tomava ternamente de assalto, ao deitar, ao acordar, ou nos mais imprevistos momentos, momentos em que ela, toda ela, muito delicada e docemente lhe chamava o seu gatinho ou, pasme-se, o seu engatatãozinho, e se deixava tomar, invariavelmente por trás como se fosse uma gata no cio, perdão, uma gatinha no cio, a quem ele mordiscava a nuca e beijava com carinho os cabelos platinados. 

Nunca digas nunca, nunca digas desta água não beberei, nem nunca duvides quanta ternura pode esconder um selvagem ou amargura um gentleman. A educação católica dela, adquirida desde tenra idade no Colégio de Gurué e vincada em moldes ainda mais conservadores no Liceu particular de Nampula tinha-lhe limitado os horizontes inerentes aos sentimentos, ao amor, ao carinho, à ternura, e ao sexo. Somente Coimbra onde se formara em economia a libertara parcialmente desses traumas e complexos. Verdade que nem todos os sonhos acabam em pesadelos, mas a liga de apoio às vítimas está cheia de histórias tristes, por vezes de final mórbido ou desgraçado. Nunca esqueças, nem oito nem oitenta, a virtude está no meio e, em caso de dúvida não hesites, confirma, apalpa….