terça-feira, 8 de outubro de 2013

167 - O CONTRABANDISTA DE SERVIÇO ...



Muitos desconhecem que a edição de um livro submete o seu autor às mais mirabolantes e rocambolescas submissões. E isto após a ultrapassagem do crivo, feita a triagem entre o que o editor está decidido a publicar e os cortes a que autor se dispõe a ceder.

Nem sempre será assim, Lobo Antunes e Saramago não terão esses problemas, ou terão tido no inicio das suas carreiras, mas eu, que nem escritor sou, apenas um simples escrevinhador, tive, e de que maneira. De tal forma que decidi jamais voltar a publicar fosse o que fosse, pois no negócio dos livros todo mundo ganha dinheiro menos o autor. Livrarias, editoras, gráficas e distribuidoras enriquecem e tecem impérios, os autores são os seus servos da gleba, não estou para tal, pois também tenho que pagar o pão que como.

Verdade que gostaria de ser desafiado a beneficiar das condições e a responder às exigências que me permitissem viver do escrever, a minha paixão e a minha vaidade. Nas circunstâncias que descrevi, os editores e livreiros que os escrevam.

Tudo isto porque quando publiquei o meu primeiro e único livro, fui “forçado” pelo editor, entre outras sugestões, a retirar cerca de cem páginas ao manuscrito, pois na ideia dele, encareceriam o meu trabalho, o livro, e se tratavam de estórias menores que nem por isso se revestiam de preponderante interesse. 

Anui a substituir em noventa por cento dos casos a palavra “americanos” por “invasor”, alteração quanto ao editor menos chocante ou desprestigiante para as tropas americanas no terreno, ao fim e ao cabo os maus da fita, do meu ponto de vista, que assisti impávido durante muito mais de trinta dias, e não trinta minutos, ao seu modo de actuar e ao desmesurado e desequilibrado poder de fogo, na proporção de dez para mil a seu favor.

Uma dessas histórias tinha que ver com um dos modos como nos defendemos do autêntico terror quotidianamente vivido, e que passou por várias estratégias que no livro relato.

Todavia esta que irei mencionar foi indubitavelmente cortada/censurada, pois não se pode admitir publicamente que quer as pessoas normais, como eu, quer as tropas do maior exército do mundo ao estratagema recorram.

A verdade é que quanto mais as tropas americanas se aproximavam de Bagdad mais se intensificava o contrabando entre civis iraquianos e a logística desse exército ! Tabaco Marlboro bom e barato, whisky de qualquer marca e do melhor, sempre com mais de doze anos anos, pilhas, CDS, aparelhagens de som, guitarras eléctricas, halteres e pesos para ginásios, (em Bagdad havia uma média de um por rua, para tal bastava uma garagem), calçado, óculos de sol, binóculos e toda e qualquer extravagância das melhores marcas e até o material de guerra que se quisesse, desde que pagássemos.

A droga é proibida nos países árabes e o Iraque não é excepção, embora alguns sejam grandes produtores mundiais, mas a droga era também um refúgio ao terror vivido, pelo que um belo dia, e tendo o “nosso contrabandista de serviço” sugerido, aceitámos, sem qualquer fé, relutantes duvidosos e desconfiados, a sugestão dele para nos fornecer uma tablete do melhor haxixe jamais visto.

E não foi que tinha razão !

Embora não seja um consumidor, nunca fui, mandei umas passas se tanto duas ou três vezes na vida para experimentar e saber como era, não tive contudo a menor duvida que estávamos, eu o Bruno, o Ângelo e o Jean Jaccques, (Cooker para os amigos, era luso-francês), perante o melhor que havia e sem a menor duvida de que os padrões de qualidade do exército americano continuavam elevados !

Quem leu o livro conhece a parcimónia com que eu e o Cooker, da varanda da janela do 14º andar do Sheraton, de calções, deitados numa espreguiçadeira, bebendo uma “Seven Up” fresquinha por uma palhinha, assistíamos à guerra em directo e que se desenrolava por baixo de nós, como se estivéssemos no balcão de um moderno cinema de reprise !

“Pedrados que nem cachos claro, aquilo era o pagode possível, num ambiente surrealista em que ninguém sabia se ia morrer de velho ou nos cinco minutos seguintes.

A pedra era da boa, e cada pedrada, por cada um de nós alimentada qual fogueira de antiga locomotiva, durou bem mais de uma semana !

Claro que não vos vou descrever o nosso elevado moral e coragem, nem os maravilhosos arco-íris e pôr de sóis que só naquele ponto do mundo foram visíveis, sim, até o luar visível ali onde o rio de águas tão agitadas passava não era visível noutro qualquer lado, e onde não vimos nem anjos nem querubins mas sim e só gente que apenas conhecia o desconsolo, mentiras, promessas, e que, por uma vez acreditava que, decididamente o paraíso não era ali.

Ventos trovejaram sem que moinhos acenassem aos peregrinos daqueles caminhos tortos, prenhes de pecados e pejados de emoções, que nada podiam contra e antes provocavam o pranto daquelas gentes, nunca vistas tão sozinhas todo dia ante a solidão e um céu donde somente trovões vinham e gemidos se ouviam no vaivém de destinos e fados, de mortos por desesperarem de viver batendo no peito enquanto inda vivos, por não haver outra estrada, outra saída, que não aquela mortandade sem fim ou aquela vida de desespero que ninguém pedira, toda ela sem respeito mas cultivando muito medo.

Por uma vez na vida eu senti-me tolo, completamente tolo e inútil, como não de outro modo se cada ponto negro no céu mais não era que uma flecha negra, a sombra do oculto e do maligno sob a forma de uma aeronave, a sombra da tecnologia com que nos inundavam e nos marcaram de sangue lágrimas e cada ponto negro nos céus era um mistério, um desígnio, um susto, uma flecha, uma bomba e se morrêssemos nem nos chegaríamos a aperceber, e esse terror repetia-se todo dia, todos os dias, a todas as horas, a qualquer hora, e talvez fosse tarde e eu talvez um cobarde com tão maltratado coração que me coroei a mim mesmo o rei da cobardia e me afundei em haxixe, um, e outro e outro dia para ver outros rastos que não sangue, e nunca vi ou senti algo mais que o mundo inteiro dormindo, alheio ao romper de tratados, às almas cativas e penadas, aos gritos, porque em cada um dos mais de trinta dias que ali passei, nenhum dia nasceu feliz, tudo era perda, desastre, miséria, horror, nuvens negras, e quase já nem lembro os dias em que dois deuses se chocaram e todos nos diziam loucos só porque nós, qual fogueira de locomotiva, alimentámos quando tudo ardia e todos se perdiam, vencidos, sem lugar para o amor, e por prevenção e sobrevivência da nossa saúde mental, o corpo com “pedradas” que nem cacho, no pagode possível daquele ambiente surrealista em que ninguém sabia se ia morrer de velho ou nos cinco minutos seguintes.

Tudo acontecia por um triz e até o sol desaparecia, envolto em nuvens negras, mortíferas, pestilentas, de crude ardendo, e, enquanto o mundo dormia feliz, toda esta gente se cruzou comigo, ou eu com ela, no vórtice da vida, tanta gente gritando, tanta gente abafando a dor, monstros alados pairando sobre nós, choros comovendo-nos, dormindo o sol tapado de negrume, todo mundo embriagado, arrebatado, mas ali havia gente assustada, clamando aos céus, implorando por ver ser destruído o construído, quem sabe os corações fervendo como caldeiras, nas bocas travos amargos de fel, não havia esperança, não havia nem se vislumbrava harmonia, todos os dias nos apanhavam desprevenidos, não havia surpresas, não havia milagres, tudo aquilo era dissonante e talvez o único sitio do mundo onde não havia, não podia haver coincidências.

E nós rindo deitados na relva da margem do Tigre, fumando.

Soldados passavam para lá e para cá, uns morrendo, outros matando e nós rindo continuamente fumando, continuando deitados na relva da margem do Tigre. Nem nos ligavam, olhavam espantados, surpreendidos, se calhava ouvirem as nossas gargalhadas.

Alguns imberbes ainda, mais ganzados que nós, tolhendo o cheiro fortíssimo no ar, despiram a farda e ficaram, uma manhã, ou uma tarde inteira, depois abalaram de novo, amigos para sempre, disseram.

Decididamente não era eu quem estava louco.


Humberto Baião – Bagdad, 8 de Abril de 2003.