domingo, 28 de dezembro de 2014

218 - D. CARMINHA UMA LATA DE QUEIJO, MUITA DEVOÇÃO E UM MUSTANG P 51...


Tremendo, D. Carminha gritava por mim apavorada e ferrada ao escadote. Larguei de imediato os brinquedos e pronto lhe acudi segurando-o firmemente, ao erguer a vista deparei-me com as suas pernas longas, brancas como o mármore do altar, de um branco leitoso, encimadas por umas cuecas mais brancas ainda de onde sobressaía o rendilhado em filigrana, igualzinho ao das irmãs Doroteias e que eu sabia o padre Tiago detestar, por uma vez o ter visto arrancar-lhas à força sem que a D. Carminha tivesse dado um pio sequer.

Empoleirada no escadote decorava a improvisada igreja do bairro onde eu vivia em criança, com folhas de palmeira, fitinhas coloridas e balões em papel. Estávamos na novena, D. Carminha capitaneava um grupo de bem-intencionadas benfeitoras, cuja beatitude as levava a dedicar muito do seu tempo às famílias pobres do bairro operário do Salvador, o único lugar da cidade que se poderia gabar de uma equipa de voluntariado assim, onde militavam num propósito comum as mais prendadas e caridosas senhoras.

Sorridentes e devotas organizavam e comandavam o exército de pobrezinhos da paróquia, especialmente em datas como esta, de festa, ou nos dias em que a caminheta da Legião Portuguesa vinha descarregar as ofertas dos United States of América, dias em que os homens eram escalados para descarregar e as mulheres se dedicavam a limpar e decorar a pequena e improvisada igreja a que o padre Tiago a D. Carminha e o seu exército de almas carinhosas davam vida.

Arrastando os meus carrinhos de lata e os modelos à escala da Corgi Toys e da Western Models pelos compridos bancos da igreja eu sentia e vivia todo este clima de festa e de emoção, atrevo-me até a dizer de competição. No dia da dádiva de bens alimentares era visível em todos nós o empenho e o orgulho em relação às outras paróquias e aos outros bairros. Hoje sorrio de ironia, na época achava que ninguém tinha tantas voluntárias da Cáritas, da Misericórdia, do Movimento Nacional Feminino, das Escravas de Maria, ou das Doroteias como nós, nem tão boas como as nossas, quero dizer tão bonitas, e perfumadas, e por essa ordem de ideias nem tantos pobres nem tão miseráveis quanto o éramos no bairro do Salvador.

Gosto de patê de sardinha, e antes de cada almoço só não me empanturro de o barrar no pão faltando na mesa. Vem desses tempos longínquos o meu gosto por ele que, pressionado contra o palato me deixa aquela impressão de granulado miudinho, um pouco como as ovas de peixe, e me recorda ao passar-lhe a língua, arrastando-o, esses tempos em que dos USA vinham como dádiva embalagens e embalagens de manteiga de cor neutra, um pouco sonsa, mas que barrada no pão me proporcionava essa sensação do patê e das ovas, como as ovas.

A modesta igreja tinha vários anexos, a sacristia, também ela improvisada, onde o padre Tiago me surpreendera ao vê-lo insurgir-se contra as rendas em filigrana da D. Carminha, que num ímpeto rasgara sem que ela largasse um pio que fosse, aflita com falta de ar, e uma sala enorme, decerto a divisão mais antiga, pois nela inda se via uma manjedoura, agora servindo de prateleira para arrumações, portanto devia ter sido em tempos a cocheira da quinta do Sacramento. Pelo chão de terra ali se passeavam as galinhas, tantas vezes abafadas pelos galos, contudo cacarejando e intentando livrar-se deles, já a D. Carminho,  de nada parecia desejosa de livrar-se, nem da apneia induzida pelo padre Tiago e se era asmática ou não nunca cheguei a sabê-lo, mas adiante, divisão enorme esta e que nos dias de distribuição alimentar custava a albergar todos quantos aflitos com a vida ali acorriam, solícitos.

Também eu, no meio dos outros estendia as mãos ao alto na ânsia de um pacote de manteiga de cacau ou de amendoim, não lembro já, o barulho era ensurdecedor e somente recordo as mãos, muitas mãos ao alto, e a D. Carminho, e cada uma das senhoras da equipa, cuidando dos seus pobres, atentas, pressurosas, enxotando os que lhes não pertencessem, altivas no seu desprendimento, sisudas na sua beatitude, felizes na sua entrega à causa, mirando pelo canto do olho o padre Tiago e diligentes da sua aprovação.

Repentinamente um clamor ! Os homens carregavam e traziam as latas de 5 quilos de queijo flamengo vindas dos EUA, uma bênção, quilos de queijo alaranjado oferecido pela Cáritas aos pobrezinhos das senhoras do bairro, saboroso, gracioso, nunca eu comera queijo assim, ainda recordo o seu sabor, o sabor e as letras azuis, uma estrela grande, a águia em vermelho, estrelinhas brancas, como mais tarde veria na bandeira, muitas estrelas, as latas de queijo brilhantes como prata, como os aviões nos filmes da guerra do pacifico no cinema, reluzentes, apetecia-me tocar-lhes, toquei-lhes, e quando os meus dedos escorregavam pelas latas resplandecentes numa caricia e o padre Tiago se preparava para lhes furar o fundo com um punção alguém gritou :

- Não as furem se faz favor ! Preciso delas, precisamos delas ! São boas para tirar água do poço !  Não as furem !

Demorei anos a perceber aquele homem, decerto até aos meus doze, ou treze, e a Dra. Escária Santos nos explicar a pressão atmosférica, o peso e a densidade do ar, a sua omnipresença, as pressões a as altitudes, a coluna de mercúrio e a experiencia de Torricelli, os barómetros, a adivinhação do tempo, as altas pressões e os anticiclones.

Só então percebi a irritação do padre Tiago e o porquê do queijo não querer sair das latas mesmo que abertas, mesmo que viradas ao contrário, não saindo apesar das pancadas e o milagre do furo que afinal ninguém lhes fez.

Até que um dia, sem aviso, tudo se acabou. Os homens falavam excitados ao balcão da taberna do senhor Saúl, tanques, cravos, mfa, espingardas, liberdade, eleições, o meu pai não saiu pra trabalhar nesse dia, solidariedade, soldados unidos jamais serão vencidos, pão paz habitação, pessoas aos magotes na rua, o senhor Saúl bebendo e brindando com os outros homens, nesse dia nem uma única vez puxou do chicote para enxotar os cães, nem para nos enxotar a nós.

Havia uma nova epifania na cidade. Sem aviso tudo acabou, as senhoras, a equipa, a manteiga, o queijo flamengo, o padre Tiago, o leite em pó que eu tanto adorava comer à guloseima e de boca cheia, às colheradas, até as novenas se acabaram, e o terço e as missas.

Passados poucos meses cruzei-me com a D. Carminho, carregava olheiras, os cabelos desalinhados, imagino que ainda tivesse a pele branquinha que tanto me impressionara e as rendinhas em filigrana como a minha mana feminista então se gabava de também usar, ainda que tirasse o sutiã, pra se libertar dizia ela.

Cresci, mudei o vocabulário, patronato, luta, greve, opressão, saneamento, ocupação, liberdade, povo, num ápice os heróis judeus passaram a vilões na guerra do médio oriente, e os americanos de combatentes da liberdade a fascistas capitalistas que tiveram que abandonar com o rabo entre as pernas o glorioso Vietname, fugindo das forças progressistas e libertadoras do vitorioso povo indochino que desferiu a machadada final no explorador ocupante e no opressor exército fascista capitalista dos EUA.

Acabei de ver há momentos pela 4ª ou 5ª vez o Império do Sol, de Steven Spielberg, deliro quando já perto do final do filme vejo passar frente aos olhos do jovem protagonista o Mustang P 51 com as cores dos States, as mesmas cores que vi há tantos anos nas latas reluzentes de queijo flamengo. O piloto acenando, sorrindo por trás da carlinga aberta, o motor rugindo, a fuselagem brilhando ao sol nascente daquela manhã libertadora.

Aqui, na terra aonde vivo, até das janelas e portas das casas em alumínio, apesar de proibidas na cidade eu gosto, e vocês ?