domingo, 4 de novembro de 2018

544 - QUERIDA MARIA DE JESUS - by Luísa Baião*


Querida Maria De Jesus. Espero sinceramente que esta missiva a encontre de perfeita saúde, o que aliás torno extensível a toda a família.

Terá estranhado a minha demora, mas, para mim, toda a carta tem resposta (ou deveria ter se a disponibilidade mo permitisse) e só a falta de tempo me impediu de dar notícias mais cedo.

Não serei eu a dar execução ao pedido que me colocou, mas no mesmo dia envidei esforços para que lhe seja dada satisfação. Confio que tal se concretize, e como alguma responsabilidade me cabe, não descurarei umas passagens por aí que me permitam ajuizar dos resultados.

Sei que aprecia poesia, mas a minha disposição hoje não é de molde a inspirações, espero que compreenda e me desculpe o facto. Infelizmente quer a disposição quer a disponibilidade me tolhem cada vez mais a vida própria que gostaria de ter, pelo que os momentos de inspiração tenderão a reflectir progressiva e acentuadamente este estado de espirito. Não amo menos por isso a poesia, olhe ! A propósito! Li há tempos um pequeno livro da Maria Teresa Horta, “Só de Amor “, da Quetzal, cuja leitura teria adorado partilhar consigo.

O tempo disponível some-se-me entre os dedos como areia em ampulheta, fico sem saber para onde virar-me, a vida pode ser dura. Chego a pensar por vezes como me deixei enredar nesta teia de compromissos, que nem me deixa uma oportunidade para dedicar a mim mesma algumas horas de ócio. Estou com pouco mais de quarenta anos e, quando pensava ter oportunidade para gozar um pouco a vida, eis que me caiu o mundo em cima, precisamente quando menos esperava, e lá se foram sonhos acumulados há tanto tanto tempo.

Que o seu homem não veja esta carta, pensar-me-á uma piegas ou que estou para aqui com lamúrias, haverá poucos que conheçam e compreendam as mulheres, o que até pode ser o caso, mas quando lembro que a maior parte só se preocupa em colocar os cotovelos de modo que não nos carregue...

Queria inteirar-me sobre as filosofias orientais e falta-me o tempo, conhecer os segredos do yoga, da meditação transcendental, e falta-me o tempo, debruçar-me sobre técnicas de relaxamento, e falta-me o tempo, praticar ginástica, ou aeróbica, ler mais, viajar, descansar, estar com amigas (os) e falta-me o tempo, não ter já motivos na vida para me preocupar quando me sobram tempo e preocupações, pensar em mim, conhecer o futuro... Mas não tenho tempo. Não tenho um minuto, uma pausa sequer, que me permita aliviar estes calores que já foram segredos fisiológicos, ou biológicos... Quem entende uma mulher na meia idade ?

Corro de um lado para o outro que nem uma formiguinha porque há contas a pagar ao fim do mês, clamo por alívio, e a única resposta que me deram foi uma nega, à reforma e ao descanso por que anseio. Fez-me bem a sua carta, chegou no momento certo, por uma vez as oportunidades com que o destino se tem entretido a brincar comigo viram as voltas trocadas, pode acreditar que ajudou a levantar-me a moral.

Por cá vou indo no cumprimento fiel do meu serviço cívico, dando o melhor de mim e esforçando-me sempre para que não me acusem de baixa produtividade como agora está tão em voga. Mas quando se me deparam tantos braços sem trabalho... E sem que eu possa fazer nada que inverta a situação, questiono-me, quando para tal me chega o tempo, como podemos querer um país rico e produtivo, se não cuidamos deste exército de desempregados e precários que aumenta a cada dia que passa.

Já vai longa esta carta, calhando só lhe leva preocupações, não é essa a intenção, fico aguardando tempo para desfrutarmos uma bica, até lá receba beijos e abraços desta amiga que muito a estima.

Com as devidas considerações à restante família.      

Maria Luísa Baião

Modigliani  -  “Mulher Nua”

* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, ‎em 18-11-2002.