sábado, 25 de abril de 2015

TEMOS CIGANOS * por Maria Luísa Baião ................

                                                                                                                                                                   

            É madrugada. Acordei cedo e bem disposta. Os últimos tempos têm-me sido favoráveis. O meu “astral” anda alto, e horóscopos que nunca consultei são unânimes em predizer-me dias felizes, muita saúde e amor. Nada mau como perspectivas.

Uma cigana bonita tentara ler-me a sina na palma da mão, fechada, com que disfarçara o valor das moedas que lhe colocara no regaço. Contudo lá foi atirando mais que uma vez ser eu descendente da realeza, uma mulher com alma, que encontraria a fortuna e a quem não faltariam homens na vida, ricos e carinhosos, inteligentes e formosos. A magana abotoara-se com as moedas e ainda gozava! Valeu-me não me ter rogado uma praga, ou atirado para os braços de homens menos recomendáveis. Devia portanto estar-lhe agradecida.

Retomando o fio à meada. É madrugada, acordei cedo e bem disposta. Ligo a música e sento-me à secretária, o amigo Madeira Piçarra não me perdoaria se faltasse à pontualidade e à constância com que lhe remeto estes escritos, estou em cima da hora, devo, tenho que enviar-lhos ainda esta manhã. Estou portanto ouvindo música. Clarinetes, trombones, pianos, violinos, lançam odores a uma Primavera ainda longínqua no meu espírito. Espirais de sons enovelam-me os sentidos. Busco Vivaldi e “As Quatro Estações”, assim não sairei do carreiro, vou mete-las todas no mesmo saco para não trair a sina, já que ainda mal começou o Outono.   

Vivaldi, esse virtuoso, filho de um barbeiro violinista e talentoso. O mesmo Vivaldi que virou padre e a quem não sei porquê chamaram “o Padre Vermelho”. Adorava crianças e há quem diga terem sido elas a inspirá-lo. Embora nascido no séc XVII, só na segunda metade do séc XX viria a ser descoberto. Morreu pobre, vendeu baratas milhares de obras por si compostas para sobreviver. Tão virtuoso era, (foi o percursor do romantismo na música), que compunha uma melodia mais rápido que um copista demorava a copiá-la.   

Uma caixinha de CD’s que há muito o meu marido me oferecera faz-me as delícias destes momentos. Conhecem aquela estória de uma senhora que em toda a sua vida nunca comprou, em segunda mão, um carro que a não tivesse satisfeito plenamente enquanto lhe durava ? E parece que ao longo da vida muitos comprou e nenhum a desiludiu ! O segredo ? Não percebia nada de mecânica, mas sentava-se neles, ia ligando os respectivos rádios, e o que encontrasse sintonizado numa estação de música clássica era o que escolhia. Consta que nunca falhou ! Dá para pensar não dá ? O sistema não terá aplicação na hora de escolher um homem ? Calhando todo aquele que víssemos numa festa de amigas de avental ao peito daria pelo menos jeito !

Uma aura divina parece rodear a imagem do compositor, em destaque na capa do CD, eu sinto-me no céu. Volto a lembrar a cigana e interrogo-me sobre que fazer com o meu homem já que a julgar pelas palavras dela irei ter muitos, ricos e formosos. Não me preocupo, o futuro a Deus pertence e os horóscopos predizem-me dias felizes, saúde e amor. O dinheiro é com a cigana. Nada de razões para me preocupar. Cada português devia ter uma cigana à perna, talvez a auto-estima nacional se elevasse.

            Não temos ciganas mas temos ciganos, o mundo está cheio deles, não têm pátria, a sua pátria é o dinheiro, ou melhor, a sobrevivência com os tachos, a qualquer custo. Outros arranjam louça estalada, guarda-chuvas de varetas partidas ou fechos emperrados, enfim, sobrevivem trabalhando.

Temos ciganos, ainda há poucos dias passou um na minha rua. Dei por ele ao longe, fazia-se anunciar com alarido, de tal modo que ninguém no bairro poderá dizer em consciência que não o ouviu, que não deu por ele. A minha gata, a Shamira, curiosa, saltou do sofá e correu para a janela. Aquilo era novo para ela, o som, o pregão, e ali ficou até perdê-lo de vista.   

O assobio da sua flauta, aquele assobio, há quantos anos o não ouvia ! E como faz bem à alma ! Um amola-tesouras ! Há quanto tempo o (s) não ouvem ? Pensava ser espécie já sumida da terra, como o lince da Malcata. Que alegria foi ouvi-lo de novo. E não foi que dias depois choveu ? Sempre me disseram que eles adivinhavam chuva ! Procurei tesouras e facas por amolar e nada ! Tudo é novo ou quase na cozinha. Ciganos, está visto, à minha custa não sobrevivem. Mas sobrevivem ciganas, o que vai dar no mesmo.
  
Oxalá a cigana não se engane quanto ao dinheiro ! Bom jeito me daria ! Homens já me chegam os que tenho. Tal pai tal filho, estão iguaizinhos em tudo ! A música parece agora subir enorme escadaria, vai em crescendo. No fim uma grinalda de cores projecta raios fulminantes de arco-íris em todas as direcções.
  
Vivaldi enche-me a manhã de harmonia. Já sei ir passar o dia cantarolando-o, e como não sou egoísta aqui vos deixo a sugestão de que o ouçam, alto e bom som, acredito piamente que igualmente alegrará o vosso dia. Remato ouvindo Strauss e “Wine, Woman and Song”, como sempre radiosa e intrigante. Quanto daria para conhecer a história desta belíssima composição !

Cesso, como tantas vezes acontece, ao som de “Voices of Spring”, do mesmo compositor, e acabo atirando os papéis ao ar, qual bailarina, o pijama virando lindo vestido de organza, rodopiando pela sala e saindo, pois tenho que ir trabalhar !

* Escrito em Évora a 30 de Outubro de 2006 por Maria Luísa Baião e publicado por esses
  dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.