quarta-feira, 30 de setembro de 2020

663 - PINTANDO A MANTA PRONTA P'RA PINTAR.


 

          PINTANDO A MANTA PRONTA P'RA PINTAR ... 

            Sabia melhor de manhã, todas as manhãs,

quaisquer manhãs,

sobretudo primaveris,

prenhes de cor e promessas,

ou outonais, cheirando a terra,

às primeiras chuvas, 

madrigais requebrando

a magia duma luz morna.


Nas manhãs soalheiras,

o sol como casulo,

nós crisálidas,

o apelo da espécie,

o mecanismo inato,

a sobrevivência,

a multiplicação,

amai-vos uns aos outros,

reflexo Pavloviano,

abraços como de urso,

braços, pernas, mãos,

joelho, coxa, coração...

 

Mão na mão,

coração com coração,

mão naquilo,

aquilo na mão,

confusão,

amor gritante,

angustiante, ofegante,

o calor do momento...

 

Corpos arfando,

suando,

instante, climax, flash…

 

Vidas pujantes, vida,

vivos ambos,

valentes, ambivalentes,

precipitação, pressa,

tempestade, bonança…


Cª de Seguros Bonança,

era de confiança,

daí gostar de sair com ela, até que,

a felicidade escorrendo

           p’los cantos da boca babada,              

E agora senhor Semião ?

               são quase três horas,

              não quero chegar tarde,

 

agora é pirarmo-nos,

antes que alguém nos veja,

ou nos apanhe c’a boca na botija…

 

Passou a época da apanha da azeitona,

das vindimas,

e nós trabalhando,

manobrando o lagar,

é hora,

agora é largar,

pirarmo-nos,

hora de separação…

 

Hora de assumpção,

hora de desopilar,

limpa-te,

adoro-te,

                                 beijosssssssssssssssssss <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3                                                                                                                                                                                                            By Humberto Baião, Évora, 1 de Outubro de 2020                                 



terça-feira, 22 de setembro de 2020

661 - DERRIBAR OS MUROS DA INDIFERENÇA ...

 


         DERRIBAR OS MUROS DA INDIFERENÇA ...               

Sim, penso ter sido a um domingo e lembro-me bem quanto o dia começara radiante, como se nas margens de um rio a beleza das cores, a frescura e fragrância dos dias felizes igualasse a cadência deste coração cansado mas enorme que albergo. Nem a memória de outras cadências, de outros dias felizes, deste mesmo ou doutros rios, das mesmas cores, não esfumadas mas intensas, fulgurantes, me fez esquecer ou antes me fez lembrar a repetição dum inexorável e incansável ritual de celebração da vida, qual hino à coerência ante esta provação esta prisão e a fuga dela, hino à sublimação do meu ser, da consciência em mim a qual sempre me redimiu do pior que pudesse e possa haver no meu íntimo.

 Esse dia não começou diferente dos demais, começou como sempre começam, como um sonho em que estou na luz e diviso vagamente um vulto fugidio ao qual sinto o perfume e a quem, num gesto delicado tento segurar serenamente. Essa pressentida presença, da qual primeiro apenas uma sombra mas depois o perfil dum desejo de cores claras e, o mundo repentinamente todo ele luz, eu uma sombra saindo da escuridão, o corpo tolhido antecipando delírios e paixões, o olhar nascendo renovado destes mesmos sentidos, tal qual noutros dias e noutros sonhos os mesmos rodopios e devaneios, o mesmo degelo da alma, o corpo bamboleando-se-me, a volúpia das palavras primeiro, o aroma das flores depois e, quando nem em mim cria, já não sonho, deliro, repentinamente abraçando-te, repentinamente beijando-te, saboreando nos teus lábios champanhe, agora o delírio e a volúpia sim, mas dos sentidos, lascivos, ébrios, sedentos da boémia testemunhada p’los copos e garrafas abandonados ao deus dará por toda a sala.

 É noite, mergulho na sombra do astro e já nem sei se arlequim se querubim, e o teu corpo parecendo mexer-se, e nem sei se estes cabelos são meus se teus, afago-me, afago-te a pele morena, a silhueta, depois as tuas curvas. O pecado tramado é este sonho em escalada contínua, estas sombras que me cobrem, promessas figuradas que tingem meus olhos, e, perante mim, qual milagre, vagamente tomando forma uma mulher que amo e de imediato tornada vício, carência, imagem debruada na luz mergulhando no esplendor da minha alma.

 Pareço em ti ter tropeçado mas não, depois de ti não mais a melancolia, nem a solidão, agora sei não querer habituar-me à tua ausência, tudo que sou também és, tudo que és também sou, agora sei, o mundo somos tu e eu e mais ninguém, palpitas em mim, nem durmo pois este sonho me leva a perder-me, persegue-me como silício vivo e eu, incapaz de fugir ao meu fado, de alma sobressaltada, o fogo alimentando-me os sentidos, o lume no peito, imagino-te, imagino carícias ingénuas, o coração batendo como não batia e eu fremente de desejo, já sem destino nem rota, fugindo ao presente, ansiando o futuro, os sentidos girando e a abóbada celeste um carrossel, girando, girando e eu que morreria se não te contasse este anseio, corações mais não são que cinzas e paixões, vejo claramente na penumbra desses dias com luz flâmulas e pendões multicores engalanando um mar de rosas e a alegria imensa de todo o meu bem querer-te.

 Disse-to por agora a ponte que nos une ser a ausência, nem de casa posso sair praticamente quanto mais tomar um comboio ascendente que me leve até ao Porto, então deixo-me levar pelos sonhos e invento desejos embriagando-me com bacantes, acumulando coragem para conquistar de novo o teu corpo, matar as saudades em nós e cobrir-te de abraços, de beijos, saciar estes olhos, vaga-lumes tilintando numa festa nascida deste sonho, desta inquietude dando largas à loucura que me grita ter o nada que acabar-se e deixar correr o meu sangue pulsando nas veias, dizendo-me não haver regras nem limites, só a verdade de mim, homem sincero, e pergunto-me, quando será que poderei gritar tudo isto ? Quando terminará esta contenção ? Este confinamento, esta aberração ?


 - Onde, quando posso sorrir-te de novo sem parecer louco ?

 - Onde e quando poderei gritar-te a verdade e rir-me de tudo e de todos ?

 - Onde e quando de novo só nós dois e mais ninguém ?

 - Sim quando, pois agora sei, o mundo somos tu e eu, e mais ninguém !


 Não, não foi Deus nem o destino quem nos separou, foi o COVID e a CP que suprimiu comboios deixando-nos inadvertidamente a milhas um do outro. Bem sei que descurei os avisos mas sempre fiz orelhas moucas a tudo que me cheire a repetições e tentativas de manipulação. Errar é humano e desta vez errei mesmo, ou errámos, dou o braço a torcer, já que era eu quem deveria ir para cima e não tu tomares um qualquer comboio descendente.

 Provavelmente o que aconteceu foi ela ter estranhado a minha ausência e ter-se esquecido de mim, ter tomado a minha falta por desinteresse, arrependimento ou desprendimento já que as coisas ainda não estão sólidas, a relação está nos primórdios e o desconhecimento mútuo é a normalidade. Foi isso, ou deve ter sido isso e então caprichou no orgulho próprio, cicuta que algumas vezes também eu já engoli. É isso, ou foi isso certamente. Ou uma questão de confiança e espera que me justifique.

 E nem no intervalo deste maldito jogo !

 Esqueceu-me. Admito dadas as circunstâncias alguma desconfiança e racionalismo na sua atitude, esqueceu-me, pura e simplesmente esqueceu-me. Ou me esqueceu ou me ignora. Poderia simplesmente ter-me enviado um “sms”, rápido, apenas um ”bjs”, eu saberia que estava pensando em mim, que não me esquecera, que não me ignorava. Mas não. Nada. Já consultei o telemóvel mais de cem vezes nos últimos sessenta minutos, e nada. E teria sido tão fácil, tão simples. Um só "bonequinho amarelinho" que fosse, qualquer outro bonequinho ou símbolo simples, acciona-se com um simples teclar, e não, nada, eu teria sabido, ela nem imagina quanta coisa um simples bonequinho pode dizer, ou saberá ?

 Claro que sabe ! Quem não sabe ? Ignora-me. Pura e simplesmente ignora-me. Põe-me à prova. E eu para aqui inquieto. Do telemóvel para o PC, do PC para o telemóvel e nada, e se não me esqueceu o que significa o seu silêncio ? Sei como adora o futebol, mas o intervalo já passou e nada, e um "sms" ou um bonequinho não custam nada a enviar, porque não o faz ? Bem sei que não há entre nós mada mais que um qualquer descomprometido compromisso, na verdade nem estou certo de ela ter percebido quanto a adoro, com certeza percebeu, que mulher não percebe essas coisas ? O carinho com que a mimoseio nas minhas mensagens, as respostas prontas e a disponibilidade que lhe concedo, será que ela não percebe isso ? Admito que me precipitei um pouco ao dar-lhe o meu número de telemóvel, mas para quê interrogar-me, se ela nunca me ligou, nunca uma única chamada, nunca um simples "sms". O parvo devo ser eu, que me empenhei nesta amizade, nela coloquei todo o meu ânimo, a minha esperança, e nem isso ela perceberá ? Esta constância, a assiduidade com que visito a sua página, os corações que lhe mando, é impossível não ter percebido o quanto gosto dela.

 Estará a servir-se do vírus e do confinamento para se afastar de mim, para me afastar ? Então porque nada me diz ? Nem um "sms", nem um bonequinho, um sorriso, eu ficaria tão feliz ! Será que não sabe isso ? Ou simplesmente não me percebeu ? Ou não quis perceber-me ? Corresponder-me ? Comprometer-se para além do que avançámos ? Só pode ser isso, foge a um compromisso, ou foge ou tem medo, teme os compromissos, teme-me, e não imagina nem sonha quanto lhe quero, quanto a sonho, quanto a desejo. Bastar-lhe-ia dizer uma palavra, uma palavra só, e a minha alma seria dela, minha alma e eu, todo eu, e não consigo ficar parado, salto do PC para o telemóvel, do telemóvel para o PC, e ela nada, nem um beijo, um bonequinho, nada, esqueceu-me, esqueceu-me ou ignora-me. Não suporto, porra p’ra mim, hoje não suporto isto !

E o jogo já acabou. Que andará ela fazendo? Onde ? Com quem ? Que nem me liga, que nem me liga nem manda ao menos um "amarelinho" a estúpida ! Podia ter-me se o quisesse, adoro-a, amo-a loucamente ! Mas não, nada diz, nada faz, esqueceu-me, ignora-me, não o suporto ! Já não posso nem vê-la ! A arrogante ! A convencida ! Já vais ver ! Onde está a tecla DEL ?

 Pim pam pum ! Já está ! Fora !

 Ai de mim que alívio, foste um sonho mau que tive, uma coisa que passou por mim, já eras, pois isso, era uma vez, já foi… Deixa-me acalmar, deixa-me sentar, olha !

 Quem será esta ? Que gira !

 Deixa-me ver, que original ! “BLUE DREAM”, que engraçada ! Que espirituosa ! Quem será? Vamos ver! Pim pam pum ! Já está ! Que linda ! Que querida ! O que não faltam são amigas à mão de semear !

 Eu estava habituado a acompanhá-la no ginásio e observava-lhe os gestos, após a reconciliação pareciam-me estudados, exagerados, parecendo assépticos. Calhou-lhe um dia e mesmo na minha frente, fazer uma tripla tentativa para colocar a toalha em sítio que nunca lembrara a ninguém o que me chamou a atenção. Os modos cerimoniosos, quase teatrais, o nojo em tocar c’os cabelos onde toda a gente toca, a repugnância em apalpar com as mãos as pegas dos instrumentos tocadas por todos nós. Esta coisa do vírus muda-nos ou expõe-nos, e imaginei-lhe a náusea sentida pelo suor dos outros, como suportaria ela respirar o mesmo ar ainda que todos de máscara ? E já fora pior, graças ao condicionamento actual o ginásio agora nem metade da lotação habitual permitia, que pensaria, como reagiria ela por ter que pisar o mesmo chão ? Nem me atrevi a perguntar-lhe. Normalmente não reparo nas mulheres cuja prática é simultânea com a minha, quer por serem tantas e a atenção se dispersar, quer por ser gente normal, fazendo como eu a sua manutenção,    quer por ser gente igualmente cuidando da sua saúde e beleza. Não haja facto invulgar e nunca será despertada a mínima curiosidade.

 Claro que não posso dizer o mesmo de uma calcinha de cor impressionante ou impressionista estrategicamente deixada à vista precisamente para não nos deixar indiferentes, (aqui as opiniões do meu grupo de ginastas dividiram-se e ainda não chegámos a um consenso), ou de um corpinho divinal deixado mais destapado que tapado num mais que propositadamente escolhido fatinho de treino, ou de um fio dental que mais depressa nos lembra o hálito que possamos ter naquele momento do que ter começado a Primavera. São factos a que uma pessoa não consegue ficar alheia, indiferente, tal a impressão que causam precisamente por pretenderem causá-la.

 Não era o caso.

 Mas a minha senhora, chamemos-lhe por enquanto assim, agia motivada por um excesso de medo de ser contagiada ou por manifesto repúdio na partilha de um espaço que é de todos e cujo asseio jamais ocorrera a alguém colocar em causa. Havia ali ou antes havia nela uma nada aparente anormalidade. Uma vez em casa abordaria com ela e cuidadosamente o assunto, por saber serem precisamente extremos destes que, no “cantinho do suor” põem a malta a falar, cochichar, eu explico melhor, são estes casos de realce e dignos de nota que, no espaço predominantemente ocupado pelos aparelhos de musculação num canto do ginásio onde o pessoal maioritariamente masculino nas pausas a que o esforço da prática forçosamente obriga, são estes casos dizia, que debatem à exaustão e por vezes com algum gáudio e sátira à mistura. Apesar das máscaras abafarem o som eu ouvi-os e corrigi-os, porém sem resultado, debalde as minhas constantes tentativas para elevarem a qualidade dos diálogos, limitaram-se a improvisar anedotas sobre outro tema e outra personagem e já aconteceu, por mais que uma vez ter que os moderar com base na minha idade, musculatura e inerente autoridade, pois o riso não parava havendo quem se babasse alarve e copiosamente.

 Não podemos consentir tal, a nossa integridade posta em causa. Mas a minha senhora decididamente não saberia o que era um piolho, nunca teria apanhado uma pulga, muito menos uma carraça ou um chato e então um homem nem pensar ! Por certo nunca tivera as canelas arranhadas pelas unhacas de um macho menos atento a esses pormenores ! Contudo saibam ser eu cuidadoso com elas, elas as minhas unhas. À volta dos cinquenta anos, peitinho cheio e ainda firme e redondo, as ancas levemente descaídas, mas não por defeito, sim por feitio, só os pés de galinha emergindo dos cantos dos olhos e a flacidez das carnes pendendo ameaçadora dos braços lhe traíam a jovialidade aparente ou simulada há muito perdida e naquele momento provavelmente vítima de apostas dos presentes, precisamente aquilo a que a queria furtar.

Virgem, não virgem, tia não tia, alguém um destes dias apostaria. Bem os ouvi, fingi que não para evitar dissabores. Não sei se a minha senhora terá irmãos ou irmãs, sobrinhos ou sobrinhas, que ali estava uma verdadeira tia anui, de mim para mim concordei... A minha bela senhora alguma vez terá cheirado homem ou acordado ao lado de uma boca sabendo a pautas musicais e ressacada, certamente nunca, nem deve ter segurado a testa de um amor ébrio, esparramado no chão e vomitando a casa de banho toda, incapaz de acertar na sanita. Talvez, não sei, sabê-lo-ei com o tempo, quando ela entender abrir-se.

 Estaria eu perante um “casus rarus” cuja observação dissimulada nunca mais deixaria ao acaso, a verdade é que aquele corpinho tão bem desenhado e em acelerada queda merecia ser aproveitado enquanto vale a pena, ou enquanto é possível. Não nutro contra as rugas qualquer preconceito, também já as tenho, registem. Possuía realmente umas mãos e unhas extremamente cuidadas, uns modos afectados de quem nunca na vida buliu a valer, uma boca denunciando imperceptíveis rugas provocadas por quem, qual peixe, a esteja sempre abrindo e fechando, portanto mais habituada a dar ordens e falar que a servir para outras coisas como a minha mente perversa logo me sugeriu. A minha senhora já foi extraordinariamente bonita, e, além de ainda o ser, tem um corpinho e uma postura que o atestam e ainda não a deixam ficar mal, o que me envaidece um pouco e consola muito. Recordo-vos que nem o Covid congregou por aqueles dias tantas atenções quanto aquele dilema em que inesperadamente me vi envolvido, beleza versus inteligência, ela era excelente nas duas, ganhei eu, marquei bingo ! Ela que continue praticando exercícios físicos !  E que insista !

 Ainda hoje lembro o ginásio e a lembro a ela. Aliás alguns meses mais tarde ela voltaria a entrar na minha vida e desta vez de modo mais sério e intempestivo. Uma vez mais e tal como o povo costuma dizer, nunca digas desta água não beberei. Mas já devem ter percebido que a coisa não acabara no ginásio, calma que já lá iremos. Como não a lembrar se ela corporiza uma das minhas recordações que viriam a demonstrar ter sido das mais felizes ? Mas momentos felizes todos temos para recordar, e momentos, felizes ou não são isso mesmo, momentos, aos quais há que juntar também compreensíveis frustrações e arrependimentos, e as minhas foram muitas. E essas tantas foram ou são, que nada mesmo ganho em as relembrar. Mas lembro, feliz ou infelizmente lembro, e já que as não esqueço, relembro-as com saudade pois em relação a algumas delas ainda gosto de o fazer. Ou por terem sido lições de vida ou porque me marcaram positiva ou negativamente.

 Uma dessas estórias conta-se em poucas penadas, e como estamos em maré de confinamento e a prisão me concita a abrir o bar, este por sua vez induz-me a abrir o baú de recordações e consequentemente as goelas, que é como quem diz, a boca. Já vos estou a ver palpitantes de curiosidade, espreitando avidamente este íntimo e este passado recheados de desilusões, frustrações e arrependimentos, vos garanto. E de erros, tantos erros que quaisquer de vós com a minha idade não somará nem metade, mas não eu que errei, erro e hei-de continuar errando. Errar não é humano ?

 Somente quem não me conhecer não desconfiou já do meu ar seguro, da minha faceta extrovertida, do meu carácter prá-frentex, é tudo fingimento, artifícios para disfarçar as minhas debilidades e limitações. Tudo para esconder insuficiências, incapacidades, anos de erros acumulados, de arrependimentos sentidos, de desilusões que são chagas, de frustrações que me revoltam e põem de mal comigo mesmo. Nunca o confesso, nunca o confessei, e jamais o admitirei, muito menos aqui que esta merda dos contos acabará sendo mais pública que julgamos e terá montes de gente espreitando, gente que nunca dá sinal de si, cobardemente resguardada por consciências comezinhas e que, se tivessem a ponta de um corno de vergonha, já se tinham apagado a si mesmas do próprio mundo, da vida ! Pois nem farão a mínima falta nem consta que façam algo que me interesse minimamente, isto porque posso ser um falhado mas sou respeitador, quando não, imaginem só a desgraça ou praga que lhes rogaria.

 Os concursos, quaisquer concursos, têm geralmente uma fauna muito “sui generis” cujo estudo empírico, agora que tenho tempo e me sobra vagar, viver o distanciamento social exigido pelo Covid-19 está dando comigo em maluco e fazendo com que só me apeteça trepar pelas paredes pelo que, antes que tal aconteça o melhor é passar já à estória. Estudo que ando desenvolvendo há algum tempo dizia eu e de que vos darei conta na altura certa embora não garantindo tal. Talvez mais adiante logo veremos. Mas ia eu dizendo, o melhor será começar a contar a estória e não arriscar mais não venha a levar por descuido alguma dentada de impaciência.

 Chamava-se Lucília.   

 Eu fora colocado nessa época como professor numa escola secundária, sempre dado ao progressismo e à esquerda, os mesmos movimentos que agora tanto abomino, e guardara desde o 25 de Abril um espólio desse movimento de idealistas, espólio de que me orgulhava e me servira anos a fio para, em cada escola e em cada efeméride, promover exposições sobre esse acto histórico. Gradualmente fui-me vendo despojado dessas memórias, em cada um dos eventos não terá faltado cabrão ou filha de puta que não me tivesse roubado um cartaz ou qualquer outro exemplar desse rico e único conjunto, a ponto de me ver quase sem nada.

 Acudiu-me à ideia nesse ano remoto, solicitar a colaboração do Centro de Recursos, nessa altura a designação era menos prosaica, como Biblioteca por exemplo. Diga-se também que nessa altura era ela quem estava à frente desse departamento, não foi no ginásio que a conheci, éramos aliás velhos conhecidos, por isso logo me prometera colaboração desmedida e quanta eu necessitasse:

 - Primeiro está o 25 de Abril camarada !

 estou a contar-vos a coisa tal qual ela o afirmou ! Fiquei banzado ! Não tanto pela inusitada disponibilidade e colaboração da Lucília, mal nos conhecíamos, mas pela sua beleza madura, pormenor que nem o seu permanente ar meditativo lograva esconder. Cabelo liso e então dum negro de azeviche que só visto, aliás toda ela por esses tempos sempre de negro, o mesmo rosto oval, lindo, por baixo de uma nova franja parecendo o pano subido de um cenário, sorriso daqueles que nos derretem, sempre encavalitado nuns lábios carnudos, sequiosos, suscitando desejos, olhos fundos de amêndoa, escuros, rasgados e pestanudos, que mais que uma vez me fizeram vacilar as pernas já que não aguentava olhá-los se pestanejassem duas vezes seguidas. Todos estes atributos tinham como base um peito farto que certamente as horas de ginásio ajudaram depois a suster e confesso-vos, mais uma fraqueza minha, sempre adorei mamas grandes, não me perguntem porquê. A verdade é que o peito dela sempre me cambalhotara as órbitas se calhava fixá-lo, montado numas pernas altas, monumentais, nas quais por tudo e por nada, até por dá cá aquela palha, em sonhos ou acordado me via envolvido, apertado, submergido ou enlaçado. 

Nem sei por que não me converti à sua doutrina de imediato e perante tais argumentos, ou sei, pois por essa época nada mais recordava nem via que a Lucília, toda irreverente e sorridente no seu blusão de cabedal preto e cheio de fivelas, imagem de marca que nunca abandonava. Concedo que sou bonito, e há quase vinte anos atrás ainda o era mais, perdoem-me a modéstia, a Lucília também não deve ter resistido à minha beleza, tanto que se eu suspirava por ela, ela suspirava por mim, e, claro, acabámos várias vezes por nos encontrarmos bebendo umas bejecas e comendo uns caracóis, delirando e suspirando com a presença um do outro. Era da Afurada, separada, e nem ela me sugeriu ir para a Afurada nem eu que ficasse em Coimbra. Víamo-nos quando calhava, até calhar quase todos os dias. Lembrem-se, eu era prof nessa altura, o mesmo é dizer que não fazia nada, trabalhava poucas horas por semana, não ganhava mal, entrava tarde e saía cedo. O “ser humano” não foi feito para trabalhar mas para se dedicar à contemplação, à retórica, à oratória, à filosofia, e ao sexo oposto, esta deve ser a verdade. A maçã tragada no paraíso saiu-nos cara.

 Um belo dia, eu e a Lucília, já fartos de chupar os dentes por neles se terem metido os nossos olhares gulosos, mas também de repartir o mesmo caracol, combinámos sair, o que fizemos numa calma noite de verão. Escolhemos um recanto abrigado do luar por baixo do choupal e ali ficámos falando de nós e da vida umas boas horas. Eu, não querendo ser malcriado, atrevido ou alarve, e, embora com toda a vontade de a amar e tomar toda ali mesmo sem deixar uma migalha que fosse, fui ficando quieto. Ela, ou por pudor ou porque esperasse um avanço meu, ia-se ficando sem me dar o mínimo sinal de abertura, consentimento ou encorajamento.

 Eu népia só conversa, e ela mais conversa. Ficámos conversados !

 Talvez a minha incapacidade para aproveitar uma oportunidade tivesse contado, não sei, não posso jurar, o que sei é que nunca fui oportunista até hoje nem penso sê-lo, o que terá pesado na minha hesitação e reflectido na atitude dela. Não sei se a Lucília me terá julgado ou ficado chamando maricas, a verdade é que aquela noite foi uma frustração para ambos e o facto de não termos voltado a ver-nos nem nos termos procurado durante uns bons anos, até ao reencontro casual no ginásio, é um indicativo dessa desilusão. É com os erros que infelizmente tantas e tantas vezes aprendemos. Nunca aquela noite devia ter acontecido. Uma coisa aprendi, nunca mais voltou a acontecer-me. Por quê ? Porque nunca mais saí com uma mulher ? Porque deixei de ser inexperiente ? Por outra qualquer razão ? Conhecendo-vos como penso conhecer, prefiro deixar esse critério às vossas mórbidas curiosidade e especulação, crente que uma dissecação destas incógnitas nunca será despiciente para ninguém sobretudo agora que, confinados, todos os motivos serão bons p’ra vos ocupar o tempo, até porque de outra forma qualquer dia saberiam mais da minha vida que eu próprio, o que não me posso dar ao luxo de permitir.

 O distanciamento social tem tido aspectos positivos, tem-me, aproximado de mim, estou mais introspectivo, vejo o mundo de outra maneira, confio menos nos noticiários e avisos catastróficos ou catastrofistas, não se pode confiar naquela gente do governo, mentem com todos os dentes que têm na boca e saturam-nos, e eu vingo-me neles fugindo para os canais por cabo, para o visqui, para as aguardentes velhas que não se ficam atrás de um bom Porto ou de um Moscatel de Palmela, puxo dum bom charuto e relaxo até entorpecer, até anoitecer, por vezes pego a noite com o dia e vice-versa por isso acontece vulgarmente não saber às quantas ando, mas ando, divagando ou vogando em bem-aventurança por mares e oceanos, cada vez mais convencido que ventos felizes e arcanjos perspicazes se uniram para, em harmónica simbiose darem corpo às linhas que, na palma da mão, desde a nascença, nelas marcaram um rumo que, durante anos se mostrara para mim e para toda a gente uma incógnita insondável.

 O mistério ter-me-ia sido desvendado quando uma noite destas, numa noite de insónia me senti levado por prazenteiros sonhos em canoa aparentemente imprópria para tão inesperadas viagens mas, à qual incompreensivelmente os Deuses concederam os desígnios com que há séculos teriam prendado Ulisses. Desta forma inesperada e peculiar marinhei incólume p’lo mar da fantasia e pelo oceano mágico do encantamento, sem que uma vaga sequer ou um salpico ao menos, me tivesse marcado o rosto tisnado por tanta felicidade que recebi e aceitei mais incrédulo que extasiado por tão inusitada prebenda. E foram meses atento às vagas, às correntes, aos sóis e às luas de cada noite, tantos quantos o confinamento durou, numa perdição completa de mim mesmo e numa entrega messiânica e devotada a tão feliz sorte e incontável felicidade. Aborrecidas só as filas nos híperes e o facto de nem sempre encontrar as garrafas correctas, isto é as que trazem encantamentos dentro.

 Há momentos, poucos, que em tudo isto jamais teria acreditado, não fosse o sucedido, o vivido, testemunhado e visto, ou não tivessem sido os cânticos por mim ouvidos oriundos da beleza indizível de uma sereia baixinha que por artes mágicas me foi atraindo e chamando a si. Alucinado por este belo sonho me quedei em ilha mirífica onde o tempo não tinha fim nem principio, o espaço nem alto nem baixo, direita ou esquerda, e cada dia mais cônscio ser ali que desejaria viver e morrer, inda que os dias não tivessem fim, apesar de recordar auroras indizíveis a oriente e um pôr-do-sol permanente e risonho a ocidente. Vivo tempos imemoráveis que nem sei a que devo a razão de não esquecer, antes crê-los vivamente irrepetíveis, tal a felicidade fruída e que, por insuspeitas razões julgo eterna. Compreender-me-ão.

 O inimaginável infinito é contudo prenhe de mistérios que o homem não desvendará nunca e, quando tudo julgava perene e imortal a ilusão, senti levantar-se um vento medonho vindo das profundezas da minha alma já entregue e devotada, o céu escurecer por arte de negras e ameaçadoras arrastando montanhas de carregadas nuvens, as vagas ergueram-se em castelos terríficos que me agitaram o corpo e o ser numa inusitada cadeia de emoções a que os sentidos se mostraram incapazes de responder.

 Exausto, vencido, quedei-me petrificado de terror no fundo da singela canoa não compreendendo por que pecado estaria condenado, visto nem a mínima indulgência me ser concedida e, interrogando-me perante tão desgraçada quão breve morte a que a fúria dos elementos parecia destinar-me, já que mais que numa serena canoa me parecia navegar ora numa montanha-russa, atirado, batido, e a cada vaga mais perto do fim, até que outra vaga maior ainda me acometesse, ora boiando num esquife malfadado que ao Adamastor tivesse tido a impertinência de acordar. Incrédulo, cansado, suado e assustado com a minha sorte e previsível morte, adormeci ou perdi os sentidos ante aquele terror mais vero que imaginado. Recuperei os sentidos noite alta, mar chão, iluminado p’lo que me pareceu ser o Cruzeiro do Sul, e que apreendi como o sinal maligno de um fim próximo. Uma vez mais me enganaria, tão depressa se fez dia que, vendo nos céus monstros de papel e aves plásticas sob várias formas e cores, me mirei e remirei duvidando da vida em mim, coberto de um suor frio, pingando em gotículas que os raios de sol transformavam em miríades de cores, tão admiráveis quanto as que a bela sereia reflectia quando, na praia maravilhosa para que me arrastara, as suas escamas sob o astro aquecia.

 Então tomei consciência de que a minha hora ainda não chegara, pois aquilo mais não podia ser que um presságio benigno dos venturosos dias vividos, cuja lembrança me acalmou a par da bonança instalada, como que para recordar o valor prodigioso da felicidade gozada, pelo que por uma vez acreditei não ter sido em vão tanta meiguice, tanta doçura e ternura, tanto o amor e a ventura encontrada em cada garrafa vinda até mim, não com um mapa do tesouro mas trazendo engarrafado um indiscutível truísmo, que só depois de perdidas as coisas nos mostram o seu verdadeiro valor e o alcance ou dimensão da perda. Então logo acreditei que tamanho susto mais não era que uma partida dos deuses para que jamais esquecesse a fortuna dos dias vividos ou a quem a devia, devendo encarar o futuro com bonomia e ocorreu-me depois do almoço passar a servir-me de sangria, mais leve, mais fresca e carregando em si muito menos encantamentos.

 Acordei em sobressalto, entre a noite alta e a madrugada. Curiosamente chorava, contudo jamais saberei por quê. Pelo sonho? Pelo susto? Pela perda da consciência ? Dos sentidos ?

 Esta prisão, o condicionamento ou o distanciamento social ou lá o que seja ou o caralho anda a tirar-me a paciência e ela, mal habituada a mim, nem tempo para se encher disso teve, tenta consolar-me quando pode e quanto pode, fazendo das tripas coração e esquecendo o fardo de resignação que ela própria carrega sobre os ombros tendo sido em atenção a isso que calmamente lhe respondi, não a sacudi, não a recusei nem melindrei mas tentei fazê-la compreender que também ela a ela mesma terá que se conceder alguma atenção se quiser sobreviver a esta merda que nos está a foder o juízo a todos, então saquei do meu arsenal de psicologia barata e fui-o estendendo na sua frente, logo veria o que aquilo daria, preparei-me para dançar conforme a música e atirei-lhe:


 - Mas tu não achas que já pesa sobre ti um céu demasiado pesado ?

 - Talvez, mas por certo carrego também a esperança.

 

Não foi desacertada de todo a sua resposta não, bem vejo quão atenta ela fica aos dias perdidos, aos dias passados, parecendo-lhe terem sido sempre iguais, eternos, símbolos de uma vida frustrada. Isto dito e afirmado por ela entendam.

 - Mas… e no centro da tua frustração, dos teus anseios, eles sim a mais linda promessa de amor vogando num mar de temores e incertezas, qual céu ao teu alcance e cujos horizontes segundo dizes te parecem inacessíveis, num contexto desses não te vês a ti mesma como reflectida num espelho mágico, vendo as cores tisnadas ou esbatidas, crês apesar disso e da revolta, da solidão e do vazio interior que sentes que essa cara e o sorriso alegre, confiante e perene que passeias não mostram nem deixam transparecer esse temor secreto que carregas ? Ou os julgas e enraivecida os alimentas como fruto da frustração que não dominas mas escondes ?

 

- E que tens tu com isso, agora passaste a médico de família meu doido ?

 

- Calma querida, só pretendo ajudar-te, conhecer-te e ajudar-te, eu não creio que te deixes dominar por esses sentimentos ou pensamentos, antes os vejo como um detonador accionando uma sensualidade que te é muito própria me cative e envolva, me prometa carícias, meiguices e ternuras sem fim, até que te sonhe, encostando ao teu o meu rosto e o coração, palpitando, excitando-se ao mínimo pestanejar desses olhos que, na tua cara, sempre sorridentes, me enleiam os sentidos, despoletam emoções e confundem o espírito.

 

- Filho, andas sempre de braços abertos, buscando, tacteando a libertação, rastreando onde suprir carências, não és livre querido ? Claro que não, ninguém é !

 

- Não temas amor, esquece as cores apesar de carregadas desses traumas querida, dessas frustrações. Tem sido esse pormenor, essa secreta tristeza o motivo da perturbação escondida em ti ? Pois se como bem dizes a liberdade mais não é que um estado de espírito ! Alguma vez ponderaste ser a tua mente a culpada dos teus próprios medos ?

 Por que acumulas então em ti mesma conscienciosa e deliberadamente tantos receios ? Vejo em ti tudo quanto te recusas a mostrar, és de uma transparência impensável e desnudada te vejo, e vejo claramente recalcados nesse íntimo os teus temores e os teus traumas, agigantando-se para fora desse subconsciente que, sem que o saibas, diz mais sobre ti que um cartaz gigante à beira-mar plantado ! Cuidas tu que te resguardas ? Talvez, talvez creias que sim, mas não de mim para quem o maior de todos os perigos para ti mesma és tu. E de que te podes acusar ? Desse teu casamento estiolado ? Dos teus sonhos frustrados ?

 Que exijas dedicação, mimos há tanto esquecidos que só a mente já tos permita obter não é novidade para mim, não, nunca foi, mos contou gritando o teu silêncio, esse mesmo silêncio que te engana quando te diz que os anos já pesam, que a tua vez já foi, que as oportunidades te estão vedadas. Então, nada me admira que te fiques sonhando, entregue a ti mesma, sonhando novelas, almejando outras vidas que gostarias viver ou ter vivido. Garante-me que não é essa a razão pela qual ansiosa aqui vens e aqui estás, espreitando o único mundo a que podes aceder para fugir dessa prisão em que te encerraste. Sedenta de atenção te vejo e, crê, terás que libertar-te desse refúgio dessa recusa a ti mesma. Procura a esperança, faz com que as rugas, o peso e o corpo, os medos e receios, tu, acreditem que ainda existe vida e esperança. Não temas a tentação, o sonho, a ilusão, o amor, a paixão, a entrega, a dádiva ! Deita ao chão as barreiras que ergueste em teu redor, em tua mente, liberta-te desse mundo que temes e será cada vez mais temível se não ousares, no qual inadvertidamente te fechaste, ou deixaste te fechassem. E não sabes agora como derrubar essas grades, esses traumas e temores ? Desaprendeste de viver, viver de novo, viver, tão enleada nos teus medos ficaste ?

 Leio em ti, sempre li tudo quanto tentas esconder. Quanto mais escondes mais transparente te tornas. Acredita, não imaginas nem sonhas quanta tralha vejo recalcada no teu íntimo, rodeada de teias de aranha e ferrugem, como antigas peças espalhadas pelo chão terroso de um qualquer antiquário, cujos passados adquire para vender como futuros, futuros de que nem te apercebes mas não serão teus, nunca serão, o futuro faz-se, não se compra, por isso vês o teu como se um peso, um estorvo, uma impossibilidade, e tentas nesse mercado de velharias encontrar outro, mais promissor, mais liberto, mais conforme, mais teu, mais tu. Todavia, ainda que não creias, foste tu a obreira da prisão contra a qual agora te debates, e eu, sim, dar-te-ei a mão, ajudar-te-ei a saltar. Quem pretendes enganar quando comigo falas ? A ti certamente. A verdade é que não encontras modo de te libertar não é ? Não és única, quem me dera contigo em cada momento, ter tido ocasião de abraçar-te, envolver-te em meus braços, beijar-te ardentemente, longamente e, porque não, amar-te mesmo nesse momento, nesses momentos, amar-te não com a violência que em mim provocas, mas devagar, somente com esta vontade que em mim encerra a urgência de desejos reprimidos, calados, contidos, num delírio que nos elevasse bem mais alto que os sonhos que partilhamos. Provar-te que te quero, te desejo, que és mulher, que és bonita e gostosa. Que são no caso as tantas e tantas diferenças e obstáculos que nos separam ? Como não lembrar-te se te desejo ? E é grande o desejo, agora que pressenti o lacrimejar dos teus olhos, que neles me enleei, que por eles perdi os sentidos, a noção de espaço e de tempo, recolhe-te nestes braços abertos para ti, vê a esperança, a liberdade, poderás ser de novo livre, de novo senhora de ti, não temas, vem a mim, afasta para longe traumas e receios, isto não é um sonho, nem ilusão, é a minha resposta aos teus medos, vem, deixa que te ame, deixa que te abrace, ainda é possível, tem coragem, crê.

 Amo-a sinceramente, não posso beber tanto se quero que confie em mim, contudo um ou outro copo dão-me a coragem para tocar em temas tabus que de outro modo não tereia coragem de abordar e agora sou eu que piegas lacrimejo ao lado dela, mão na mão, vou sorrir para a animar e lembrá-la da hora do almoço e que comprei para sobremesa um melão, sim está no frigorifico a refrescar, coisa que tanto ela como eu adoramos acompanhado duma fatia de presunto. É isso mesmo, um branco de Colares geladinho, pão, melão e presunto.

 

Zabora Machel que se faz tarde.

 

Bem disposto como estou, bem comido e bem bebido, o sol radiante e o campo um paraíso, penso não vos ter dito ainda que ele, ele o campo começa nas traseiras da minha casa, do bairro ou urbanização onde vivo, a da Cartuxa, por aqui ter sido esfolado vivo no tempo do Marquês de Pombal um monge. Não vou cansar-vos com a história desse frade ou abade, nem sei se a abadia já estaria erguida ou se o foi depois da morte dele, mártir da ignorância da impetuosidade e boa vontade da populaça, é coisa que não interessa à matéria deste conto, adianto-vos somente que a turba deu-se conta demasiado tarde que o bom homem estava inocente, todavia já era tarde para travagens e arrependimentos pelo que o homenagearam com o dito convento ou abadia ou igreja, assente logo ali e sobre a cova onde o enterraram.

 Um dia belíssimo para me evadir desta prisão, do condicionamento, do distanciamento social ou o diabo que os carregue, pegar na mota e fazer um crossezinho por estes campos sem o transtorno das operações de segurança na estrada que não serão animadoras nem encorajadoras nestas voltinhas, bem pelo contrário como estão sempre mostrando na televisão metendo as estatísticas por tudo e por nada para assustar ou impressionar os papalvos. Agora como dantes e depois destas trevas continuaremos morrendo alegremente nas estradas, ainda que nunca tenha percebido qual a nossa mórbida preferência pelo Verão, Natal e Ano Novo. Por mim o período que atravessamos não será o mais agradável mas no campo sê-lo-á certamente mais correcto, pois porquanto nem haverá contactos pessoais ou interpessoais nem forças de segurança nem bombeiros, pois é primavera e não têm ainda que se haver com a praga dos fogos. E gostos não se discutem, o que vale a pena discutir são os “cavalos” das nossas máquinas, cada vez mais potentes e seguras, pois não queremos ser envergonhados por qualquer artola, ou morrer ao volante de um veículo infame, mais para burro que para Ferrari, o que em nada dignificaria uma morte tão digna como a que todos certamente ambicionamos. Por mim estou bem servido, esta máquina é uma cabrita dos diabos e para mim como para os demais pelo menos nesse momento, só o melhor. Mas o tempo não está para paleio macabro, vou mas é aproveitar esta tarde de sol e dar um passeio. Tenho já saudades da sensação que a adrenalina provoca em mim, e não são os cigarros nem o atravessar das passadeiras que me fazem vibrar. Tiro a mota da garagem, acciono o start com o pé, uma patada seca, forte e deixo-a ronronar enquanto o motor aquece. Parece-me bela ainda, tal como no dia em que, apaixonado, a fui buscar ao stand. Há algo de subtil nas suas linhas que me cativa, e a silhueta dá-lhe um ar bravio de cabra montês.

 Experimentem observá-la do posto de pilotagem, tem algo de feminino que não sei explicar, as medidas são as de uma modelo de topo, magrinha, anorética, não brinco, o depósito, comprido e estreito esconde um motor potentíssimo, alma que a anima, que me anima, o banco ou selim, estreito e delgado, para que me possa cingir bem nela como quem enlaça uma mulher com as pernas, a traseira de ancas escorreitas, albergando um pneu de medidas soberbas e base de muita tracção e segurança neste tipo de veículo. Fato desportivo e colorido vestido, ajusto o capacete e parto sem destino. Como é diferente de um carro, um carro é um sofá com rodas, bem pensado esteve aquele anúncio na TV que assim os retratou, efectivamente nunca um carro me seduziu, nem o porte nem a velocidade. Sou aliás condutor cauteloso, respeitador, cortês, nunca buzino nem faço gestos menos próprios a quem quer que seja, e lembro-me que atrás de uma bola vem sempre uma criança. Respeito religiosamente o código e os limites de velocidade, sou mesmo um condutor exemplar, mas como é diferente a mota, como todo eu fico diferente, há quem vá para o rio pescar, ou quem vá ao futebol, ao cinema, ou beber uns copos para libertar o stress da semana, eu gosto de andar de mota, sem destino tantas vezes, sentir o campo, o vento, a velocidade, a vertigem. Instintivamente busco as veredas ou as estradas de terra batida, trilhos entre rochedos, ravinas, riachos, açudes, penhascos, tenho mais motor que estrada, mais velocidade que o necessário. Outras vezes rolo pacatamente em velocidade de cruzeiro, a mota quase parecendo somente embalada, parada e eu apreciando a paisagem.

 Tudo que seja menos de 50 quilómetros por dia não dá para aquecer, só a partir dos 20 o corpo se altera, fica mais tenso, mais vivo, mais rastilho, mais detonador, mais explosivo, nervos à flor da pele, depois o cansaço, o corpo doído, mole, moído, concita-me a pensar em fazer o caminho de volta. Após  percorridos vinte, trinta, é aí que está o paraíso, é a partir daí que as sensações valem a pena, é a partir daí que a adrenalina entra em ebulição, é aí o limite mínimo das sensações que se procuram, é nessa faixa estreita entre os 20 e os 30 quilómetros feitos que o milagre acontece. Que o expliquem psicólogos e psiquiatras, que o perceba ou entenda quem saiba ou for capaz, eu não sei, não compreendo, não entendo, que torna o homem-máquina uma cabra, um monstro ? O risco ? A vertigem ? O desafio ? A inconsciência ? Mas se eu até sou um cidadão exemplar ! Acelero quanto posso, curvo e travo nos limites, travar a estas velocidades pode ser um erro crasso, a bota a raspar o chão, abro a perna dobrada para o lado em que curvo, o corpo tombado sobre a mota equilibra as forças em presença e contraria a força centrifuga, o tronco manobra o centro de gravidade e o depósito estreitíssimo diminui a resistência ao vento, os sentidos alerta, os olhos, como um radar, perscrutam a estrada muitos metros adiante observando minuciosamente tudo, os reflexos apurados antecipando tudo. Homem e máquina são um só, nem uma mulher consegue tal simbiose, nem prolonga no tempo e no espaço tal comunhão. É uma sensação medonha, avassaladora, viciosa, viciante, a dependência é total. Porque somente o tabaco, o álcool, as drogas, são socialmente condenados? Quem acode ao monstro que por vezes vive em mim ? Em nós ? Nem eu nem tantos outros nos lembrámos ainda de ir escrevendo o epitáfio, mas seria bom que não fossemos apanhados desprevenidos, como tantas vezes acontece, apesar de cautelosamente anteciparmos tudo.

 Depois desta evasão e do cansaço inerente a calma volta a mim sem necessidade dos cigarros da cerveja ou de outros quaisquer consoladores destes tempos de cólera, não de cólera mas p’lo menos de epidemia de pandemia. Nem charutos, nem sequer um baseado, depois de tantos quilómetros a bater o stress foi dissipado e eu, que nunca fui capaz de dizer amo-te, que nunca fui capaz de dizer amo-te querida, amo-te. Apesar de tão simples, aparentemente tão simples nunca fui capaz de o dizer directamente quanto mais de o repetir. E devia tê-lo dito, tantas e tantas vezes, e não fui capaz. E como se diz a uma mulher com quem ainda não haja um compromisso sério que a amamos ? Como o compreenderá ela se o disser ? Pensará que minto, que finjo ? Melhor que o cale antes que ela pense que só lhe desejo o corpo fino, esbelto, apetitoso, há que dar tempo ao tempo. Melhor nada dizer até porque ninguém abordou este tema para além do seu valor factual, nem ela nem eu, nenhum de nós o fez, o abordou, nem meramente a título de curiosidade ou informativo, geralmente escondemos um do outro o nosso passado, os nossos dramas, aspirações, sonhos por realizar, e não devíamos. Hoje, tal como ontem, perante esta realidade que nos confina e ainda continuará a condicionar-nos por algum tempo, a responsabilidade nestes assuntos exige abertura, confissão, catarse, mas ambos continuamos contemporizando e nunca será assim que ganharemos a confiança um do outro, é uma questão de confiança mútua. Estou a falhar, tenho consciência de tal e isso revolta-me !

 Quantos de nós apesar de atingida esta idade, apesar da maturidade não nos realizámos ainda ? Quantos de nós se desviaram ou foram desviados das suas aspirações ? Quantos fomos incapazes de sublimar aquela força íntima que teria feito de nós sei lá, um Prémio Nobel por exemplo. Quantos de nós fomos privados de uma oportunidade ou de seguir estudos por governos que há quarenta anos falham sucessivamente, que de há quarenta anos para cá falharam rotundamente ? Quantos de nós graças a eles hoje varrem ruas ? Quantos hoje são “caixas” em supermercados ? Quantos fazem turnos na AutoEuropa ? Quantos portageiros ? Portageiros não que já nem isso há, mas quantos emigraram ? Quantos rumaram a Badajoz e Salamanca, ou outras cidades espanholas, para cursar, com médias irrisórias, médias de gente normal, e não médias que só anormais alcançavam, o curso de medicina que aqui lhes foi negado ? Quantos de nós fomos fodidos com a nossa permissividade e a ausência de responsabilidade e competência de quem nos governou e governa ? Que futuro tem um país que assim fode as aspirações dos seus filhos ? Olhemo-nos, vivemos uma crise dentro de outra crise, a crise é nossa, está em nós, erigimos um Serviço Nacional de Saúde que a Cuba de Fidel envergonha todos os dias, temos listas de espera a perder de vista e com tendência a piorar, temos a medicina mais cara do mundo, consome rios de dinheiro do orçamento de estado e não nos serve, graças à nossa ignorância e incapacidade instaurámos a medicina privada como a nova galinha dos ovos de ouro num país de miséria cuja miséria está a tornar-se galopante. No oeste selvagem, na velha América, ou naqueles países onde hoje a liberdade e os direitos dos cidadãos são coisa palpável e um bem seriamente defendido, no oeste selvagem dizia eu, por menos, por muito menos, puxavam do colt 45, “o justiceiro”, ou penduravam pessoas nas árvores. A crise somos nós. E eu que nunca fui capaz de lhe dizer abertamente quanto a amava, quanto a amo ! Eu que nunca fui capaz de lhe dizer amo-te ! E devia ter dito ! Teria sido tão simples, contudo nunca fui capaz de o dizer, de o escrever em letras garrafais numa qualquer parede e devia tê-lo feito. Mas juro-vos que o farei !

Tantas e tantas vezes penso nisso agora, não ter sido capaz. Porque agora sei como se diz a uma mulher madura que não é mera boneca ou Barbie o que nela amamos ! Estando com ela ! Ao lado dela ! Por certo ela compreenderá se eu o fizer! Pior se o calar. Hoje sei por que abandonei a carreira docente, porque fui incapaz de lho dizer, calei, calei-me. Esse gesto pesar-me-á na consciência a vida inteira. Será que poderei fazer algo que emende o resultado do meu silêncio além deste tardio arrependimento, além desta aparentemente irredutível defesa. Posso, pedir responsabilidades e satisfações a mim mesmo, abandonar a postura sinistra e velar pelos nossos interesses comuns, pelo nosso bem-estar, pela nossa saúde mental, pelo nosso futuro. Afinal vivemos juntos e juntos buscamos um compromisso mais sério, mais duradouro.

Meditei seriamente nestas minhas últimas palavras, procurei conhecer-lhes o alcance, talvez então me prodigalize alguma razão, porque todavia os factos que vos narrei contra mim estão, mas isso era dantes e feito com desconhecimento das linhas que pisava, terei que mudar, mudar e enfrentar a verdade e a realidade com coragem, com sentido do dever, da ética, com humanismo, se é que quero apostar numa relação séria e duradoura. Tudo isto é triste. Foi. Acabou-se. Vida nova doravante, assim o vírus me poupe e fica aqui a jura feita.

Já devem ter calculado que depois daquela noite passada debaixo do choupal só voltei a encontrá-la, no ginásio, passados muitos anos. Tantos que eu era outro e não o mesmo que então claudicara perante o seu ar de jovial ingenuidade e extrema hesitação, minhas também, tendo guardado dela a lembrança da proverbial e irradiante simpatia, que difundia a partir de um rosto espelhando meiguice em catadupas tais que me submergiram e em simultâneo calaram, como agora voltaram a calar inda que tenha jurado a mim mesmo abrir este coração empedernido sob pena de me condenar a perdê-la de novo. Terão entendido que a revi agora passados alguns anos e que em mim voltei a calar, apesar da mesma hesitação, da mesma simpatia e meiguice, o que calei então. Não que me sinta outro, apesar de o ser, nem que me sinta o mesmo, que o não sou, todavia os anos ensinaram-me a cultivar uma humildade que nessa época nem era uma marca minha nem estava perto de alcançar. Contudo, agora, a mesma contenção de outrora, porque o cavalheirismo, a educação, o civismo, mas sobretudo as convenções ou conveniências assim o exigiam e exigem. Calei ontem como hoje o que tenho neste momento vontade de gritar, mau grado as dores passadas, mau grado a vontade e o desejo, mau grado o ensejo, cousas que não quero ver mal interpretadas.

Revi-a agora neste ginásio confinado, condicionado, condenado a metade da lotação habitual ou nem teria dado por ela e, como então à sua passagem voltou a lembrança, imagem e odor que nunca olvidei, a graça do andar, a altivez honesta do porte, a simplicidade da presença, o sorriso, o mesmo sorriso, simples, sincero, leal, franco, autêntico e afectuoso que julgo ostentará sempre, porque há coisas que não mudam com a beleza, ou com a idade, mas sobretudo porque há coisas que algumas mulheres não sabem, como a vitalidade e capacidade inata de nos transmitirem, mesmo que o não sintam, mesmo que o não saibam, o poder de conquistar o mundo por elas e para elas.

Lembrem D. Pedro e Inês de Castro, Napoleão e Josefina, César e Cleópatra, Heloísa e Abelardo, Romeu e Julieta, Hitler e Eva Braun, para que vejam a força construtiva ou destrutiva que a influência de uma mulher poderá ter na vida de um homem, pois como disse há coisas que algumas mulheres não sabem, como seja a vitalidade e capacidade inata de nos transmitirem, mesmo que o não sintam, mesmo que o não saibam ou desejem, o poder de conquistar o mundo por elas e para elas. Por isso voltei a calar, o que calei então. Compreender-me-ão, o mundo não me perdoará o avanço, ou a sinceridade, a mágoa ou o amor se não forem sinceros.

Perdoar-me-á ela ? Merecerei eu esse perdão ? Será melhor calar de novo o que então calei, melhor conformar-me agora como então me conformei, ou não ? E é isto a vida, é esta complexidade que em nosso redor criamos, é nesta complexidade que avançamos, ou soçobramos se incapazes de libertar o que nos vai na alma mas capazes de infligir a nós mesmos e aos outros, a imposição e continuidade, pela força, do desígnio, das convenções que nos tolhem e agrilhoam, como se a vida não fosse uma só, não fosse nossa, e acredito que não seja, por isso digo para mim e a toda a gente que, embora tarde, descobri da pior forma como a vida é curta.

E como será ela agora ? Agora que a jovialidade se foi, ainda que a hesitação e sinceridade se mantenham ? Agora que a rotina dos dias sempre iguais lhe terão desfeito os sonhos dos dias felizes que a agnosia permite ? Calará também ela como eu fiz, os sonhos que em segredo foi acalentando mas a que, para mal dos seus pecados, jamais deu corpo ? Por certo calará como eu calo o que a alma grita e, como eu, talvez um dia demasiado tarde descubra como eu descobri que a vida é curta, tão curta, demasiado curta.

E agora acabaram-se os dias longos e rotineiros. Quando ela passa, cada vez mais tenho a certeza do turbilhão calado e contido que em mim provoca, sem que se dê conta, como com tantas mulheres acontece, elas como nós gizando um mundo tão distante da realidade quanto da ficção em que vivemos, porque a tal nos condenamos, porque para tal contribuímos e, calados, calamos o que nos vai na alma, o que só não fez uma única mulher que eu saiba, Isabel Allende, ao escrever “Inês da Minha Alma” ou Gabriel Garcia Márquez com “O Amor em Tempo de Cólera”.

Quem porventura tenha lido estas obras compreender-me-á melhor que ninguém por isso é hora de me abrir, de ganhar a sua total confiança, de lhe dar conta dos meus projectos e do caminho que sonho venhamos a partilhar juntos. Leram aquelas obras, suponho que leram, e quem não leu só terá a ganhar se o fizer. 

É que eu tenho uma vida sabem ? E adoro-a, a ela e à vida, e adoro-me desmesuradamente mercê desta autoconfiança, deste amor-próprio, desta auto-estima e do ego, que tenho inflado quanto baste e nem um bar a mais nem um grama a menos, e tanto que me falta, e tanto que não tenho, nem invejo, nem procuro. Sou espartano no ter, estóico no ser, vivo feliz, saciado, tenho uma vida sabem ? Vivo ! E não me chega o tempo, e sobra-me disponibilidade, como o Cristo-Rei, braços abertos, sim, sou eu esse ! Verdade que sempre cicatrizando feridas, verdade que sempre sorrindo à vida, e os olhos ? Ah ! Os meus olhos ! São tudo para ti os meus olhos ? Mas nada mais para mim que não um espelho opaco desta alma em permanente agitação. Vivo de agitação, vivo para a agitação, não consigo viver sem ela ! Sabias ? Então imagina agora quão me custa manter-me confinado dentro destas quatro paredes, não fosses tu, não fosse a tua presença e maior seria o martírio.

Mas OK, está bem, olhaste, e nada viste ? Ao menos a cor ? A pupila dilatada ? Retraída ? E nada mais viste ? Que pena, que lamento, que ironia estas janelas do mundo fecharem-se quando as olhas ! Mas viste o cansaço, a impaciência ? Notaste o cansaço, a saturação ? Bastou-te ? E então ? Contente ? Feliz ? E conclusões ? Posso sabê-las ? Saber quanto ficaste longe da verdade, ou saber quão afastada estás da roda da vida…

Olhaste e só viste uns olhos vermelhos, carregados, inchados, só o cansaço te foi visível ? E o peso acumulado de sonhos desfeitos ? Traídos ? De frustrações assumidas mas dissimuladas ? O cansaço de tantos fardos carregados não lograste alcançar ? Então o que te mostraram os meus olhos ? Mais é o que escondem que aquilo que mostram não é ? Mas tu não sabes, e por eles tentas descortinar-me a verdade olhando-os ? Medindo o grau da cor que carregam, como quem numa feira esquadrinha cautelosamente os dentes de uma mula que qualquer cigano venda ? E eu feliz, escondido nestas olheiras mas feliz, rindo do mundo, desse mundo que aprendi a não tomar a sério mas para o qual me faço parecer ou não me perdoariam a ousadia, sei-o, não me perdoarão o desprendimento das coisas terrenas, o alheamento aos pormenores comezinhos que prendem, prenderão mesmo ?

E é pelos olhos que me perscrutas ? Que coisa mais tola, abre-me antes o peito, olha-me, vê como sou, ficarás maravilhada, assombrada, talvez siderada. Não presa, não estupefacta por o coração me bater ainda neste ritmo certo, rimado, mas surpreendida com a sua grandeza, generosidade. Apesar dos remendos, o seu acolhimento e magnanimidade, a sua invariável batida, o modo repentino como bateu acelerado ao teu olhar, ao teu toque, à tua observação, tudo isso nada te disse ?

E, fora as marcas, as cicatrizes que observaste acredita, não recordo já os maus momentos, nem me lembro de esquecer os bons por um segundo que seja. Ah ! E que dizes da sobriedade ? Do tino ? Do juízo ? E de tantas dessas merdas com que durante anos te encheram a cabeça ! Aposto as não viste nos meus olhos pois não ? Ah ! Ah ! Ah ! Há quantos anos alijei essa carga ! E crê em mim, só então o sol ! A luz ! A claridade ! A vida ! A plenitude ! Eu !

Munida de meras palavras, falaste-me um dia da vida e da morte, da eutanásia, do livre arbítrio, do conflito entre o Id o Ego e o Superego, da necessidade que tinhas desse equilíbrio entre o sujeito que eras e o social em que te movias, lembro-me como se fosse agora, lembro-me que nunca mais no meu espírito houve paz, condescendi e calei-me, no final e retocando o rímel disseste-me com um sorriso:


- A vida é um palco, sê.


Tornei-me egoísta, e desde aí vivo no medo, de ficar só, de perder-te embora sabendo que me convidavas para entrar em cena, na tua cena, no teu guião, no teu cartaz, mas fiquei feliz, felicíssimo. Ainda lembro esse dia de júbilo e, em minha mente estalaram foguetes festivos, petardos, embora tenha sido a queda ocasional mas simultânea de estrelas cadentes que me fizeram pressentir, através do instinto, no momento em que te conheci, a iminência do destino impondo ao meu fado outros rumos, imprevisíveis, pois foi como se alguém tivesse acendido lustres no caminho que para casa piso, ou como se festejando estivesse toda a vila em que vivia.

 Tão intrigado fiquei quando te revelaste que duvidei de uma linha nunca vista na palma da minha mão, e tantas vezes mesmo em sonhos ou através de uma simples imagem a contemplei, sem coragem para algo te pedir, que se me acabaram nesse instante os dias de apodrecida felicidade, mas, e foi particularmente ao ver as borboletas que acusam de provocar com um bater de asas furacões no outro lado do mundo, que me senti como que invadido no meu ser, no meu íntimo, tendo sido como entrar numa outra dimensão e ter ficado outro, fiquei outro.

Repetidamente e com prazer revivo esse momento único, contemplo de quando em vez o céu e acodem-me essas lembranças de ti, de nós, em tantas das quais fui levado a pensar se não estaria perante uma visão de espanto em que não mais o meu coração até aí aturdido, adormecido, teve um instante de sossego porque passei a cumprir um destino exclusivamente ditado pelo capricho da rosa-dos-ventos, diariamente dedicado à exaltação da tua glória e em que o silêncio passou a incomodar-me mais que o alvoroço em que dantes vivia.

Quantas vezes tropeço agora nas minhas palavras dantes tão ordeiras, e agora me enleiam ou fazem que a realidade se enrede em mim, de tal modo que ouço gaitas trinando como celebrando esta minha alegria incessante não havendo dia sem que tempestades de flores me ensopem da cabeça aos pés, a mim que passei a ouvir as rosas abrindo silenciosamente pela manhã, a ver meninas virgens fazendo renda nas soleiras das portas quando marcho pelas mesmas ruas às quais dantes nem um minuto de atenção me prendia e agora impossível não lembrar-te, formosa como sempre, num hábito de noviça do mais puro linho, tu oferecendo-te numa inimaginável cama cuidadosamente decorada para os desaforos do amor e num gesto em que, curiosamente, jamais deixas de te persignar antes de para ela subir, pelo que deixei de suportar a nostalgia dos tempos passados, visto durante aqueles ter morrido em mim a razão ultima da minha ansiedade e hoje estar pronto a jurar e garantir que te quero tanto que morreria por ti. Será caso para dizer andar-me o pensamento flutuando na luz cristalina da esperança e me perguntar se não será pequeno o mundo ? É não é ? Ignoro se sempre assim foi, mas sei que é assim agora, assim o vejo neste instante e no meu constante fluir, tão manso quanto o pode ser um rio.

E tu ? E por que não me falas de ti ? Conta-me de ti, que pensas de ti ? Como te vês a ti mesma ? Como te consideras ? Que vês quando te olhas no espelho ? Terás de ti mesma a imagem que eu colhi ? Sim porque ao longo dos anos te tenho construído e reconstruido como um puzzle, como um jogo de Lego sem jamais te ter entendido. Creio conhecer-te mas falta-me o teu ámen, a tua confirmação, a tua assumpção.

Sim, olha-te ao espelho, olha em frente… Que vês no espelho que não a inocência e ingenuidade de um anjo ? Diz-me, que vês nesse espelho ? Esse rigor auto-imposto fica-te mal, exagerado. Onde iria o mundo com a bitola de um rigor assim ? Quanta gente condenarias aos infernos ? Quanta com pecados bem maiores ? Mas qual o teu ? Que pecado afinal que não entendo ? Que exagero não achas ? Que sabes da vida ? De tentativas e erros ? Que moral em ti que te condena dessa forma ? Experiências não são erros, são dores de crescimento, são partos de maturidade. Não te pergunto se boas ou más, apenas digo que erros desses são os rebites duma mulher em construção, em assumpção. Deus distraiu-se um momento, foi isso e apenas isso, e enquanto tal o teu anjo salvador caminhava neste mundo deslumbrado c’o pecado de que te devia resguardar. Apenas isso crê, creio.

Dir-te-ei seres doida por assim pensares, que serás mesmo muito doida. Doidinha. Porque não pensas em ser feliz ? E isso sim, chamares louco a quem te vê assim ? Assume esses pecados que o não são, liberta essa alma cativa de conceitos que te marcam o peito, maltratam o coração, não sejas tola, isso nem é pecado nem segredo, é retrato a branco e preto, nem mata nem consola, importante é não seres vencida, condenada ao degredo, esquece, foi feitiço, foi encanto, foi pedra no caminho, foi instante, que as tuas escolhas não sejam distraídas, que nenhum homem te olhe com indiferença e, jamais esqueças, vive-se mais quando se sente. Não te condenes a uma vida sossegada, sem sentimentos, sem sentido, foge do que não sentires, foge de não existires e não queiras como certa gente, estar morta sem o saberes, ou viva sem dares por isso.

Cura essa chaga que abriste c’a inocência que brandiste quando o coração, ébrio, em alvoroço no teu peito se batia. Esquece, nem saudades nem ciúmes, esquece, porque é assim que as cicatrizes se vão, aos poucos, sem que marcas deixem, que desapareçam e pronto, o que foi passado passou-se, o futuro há-de chegar trazendo o amor, sonhos correndo como rio impetuoso cavado em leito entre vales varrendo na passagem pesadelos e desgostos, culpas sem fundo, pecados imaginados, vinganças inflamadas e lágrimas desperdiçadas. Ressurgirás então pura e inocente como sempre foste, aos dias suceder-se-ão as noites, e, como sempre, sol e lua brincarão de novo perseguindo-se através de continentes, de oceanos e, no entretanto os teus prantos ficarão comigo, ficarão esquecidos para que o teu coração possa arder de novo, de novo largando chamas e alimentando esperanças, e estrelas, e tu, mulher madura, soltarás um sorriso irónico e, prenhe de consciência, concordarás que na vida não há coincidências e na milagrosa e elíptica espiral que é por vezes nos apanha desprevenidos e, nem que apenas por um momento seja, ai de nós se esquecemos amor, meiguice, carinho, doçura, paixão, no fundo tudo que dá sentido e cor a esse furacão, a esse vulcão e a tudo que te preenche, da paleta à tela em que o nosso destino desde muito cedo foi esboçado.

Estás de partida, a meninice já foi, na estação azulejos, neles um anjo e um querubim, não sabes, como ninguém sabe ainda qual o caminho, sabes apenas como cada um de nós que terás que ir até ao fim, que o destino se cumprirá. Haverá quem te ame, e ame tanto que te achará a mais linda, então sorrirás de novo e chorarás de alegria, borrarás o rímel e, por um momento tão pequeno que só tu entenderás, só tu perceberás, olharás o infinito soltando um sorriso, concordando que na vida não há coincidências e que por algum motivo nos encontrámos numa das encruzilhadas que o fado cantou, canta e cantará, sempre.


Então, só então, te darás conta do quanto vale um amor assim.


Por mim posso agora afirmar com propriedade ter sido a tua exuberância, sensibilidade e beleza, faculdades que só a verdade engendra e testemunham a tua alma em permanente mutação as primeiras a conquistar-me, mutação no sentido da renovação, da criação, da metamorfose da vida, o que somente o natural comporta, por isso me prometi a ti e desde esse momento profetizei que havias de ser minha e eu teu, sem que a menor dúvida me tivesse beliscado. De nada portanto valeram no caso sofismas, retóricas, malabarismos, artifícios, fórmulas, teorias e teoremas, conjuntos lógico matemáticos ou racionalismo puro. Analisei-te desde o primeiro instante com uma objectiva frieza e um calculismo que, tendo-me convencido, me levaram a baixar a guarda e abriram em mim o baú da esperança, qual caixa de Pandora que me será impossível conter, aberta que foi, e activada ou executada a profecia.

Juro-vos ter sido esse o preciso momento em que ela me deslumbrou pela primeira vez, pois desde essa ocasião em diante não recordo dia algum que ela não me tenha surgido como uma aparição. Essa impressão incomum cativou-me primeiro e encantou depois, para sempre.

Por isso te lembro e relembro, te sonho e desejo, te imagino num altar, tu em pé, altiva e hirta, eu de joelhos, abraçado a ti, mirando-te, olhando-te de baixo para cima, admirando-te as colunas de Hércules, o olho de Ciclope, o olhar trespassando-te dum desejo latente, permanente e, ante ti eu, qual lactente sedento, olhando o Paraíso, a maçã, o fruto apetecido e eu, de novo eu, sempre, homem amadurecido, sucumbindo à tentação, ao fruto proibido, trepando p’las marmóreas colunas acima, agora abertas, agora convidativas, dando passagem a minha nau, acolhendo o meu rumo, e eu sedento, e tu o sumo. Além, o Farol de Alexandria assinalando a noite, marcando o ritmo, o dia, policiando as águas agitadas como dois lençóis em desalinho e, entre sedas e linho, o cálice ! O cálice ! Quero-o ! A cicuta, a cicuta, a mim ! A mim ! Anseio matar esta sede, este desejo, fantasia, ambição, sonho, melodia, delírio.

Tremem as colunas de Hércules ante o meu gatinhar sôfrego e, de tão fortes oscilam sob tensão, tangem, vibram como cordas, viola, violinha, violão, fado, destino, vibram hesitantes, dissonantes, cunha cravada entre querer e não querer, entre o dar e o haver, saldo, preço, conta, sacrifício, razão e emoção, quem vence ? O coração, que tacteias com a mão enquanto abres como pétalas em flor c’os dedos teus, e evolando-se no ar o néctar, o cheiro a néctar, agora meu, e tu, e eu, e nós, e em minhas faces o mármore gelado das colunas quentes, ardentes, a cicuta bebida num trago, avidamente, o Farol no máximo. A luz omnipotente, as estrelas, sobre nós somente estrelas, tudo estrelas, estrelinhas, estrelícias, as colunas fechando-se e o meu abraço cingindo-as, enlaçando-te, e tu, qual Ciclope, tacteando-me os cabelos, puxando-me, empurrando-me contra ti.

O olho do Ciclope dado, dando-se, abrindo-se, extasiado, surpreendido, estupefacto, e finalmente fechando-se, sossegando, dormindo e eu num abraço arrebanho contra mim o mar Mediterrâneo, velando as tuas águas, o teu descanso até ver em meu redor mar chão, ouvir o canto das sereias e divisar ao longe o galeão onde dessedentados partiremos gizando um novo rumo, construindo um novo mundo, redescobrindo arquipélagos, enseadas, portos, abrigos, e de novo o amor, o mesmo outrora tão temido, ora perdido, ora encontrado, agora o passadiço, passado é passado, subimos ambos, devagar, tu à direita eu à esquerda, a espada balançando na cintura, o galeão ondulando na bonança, o espartilho, corpete dando-te forma, um camarote real, baldaquino, dossel, o amor, o amor, o galeão avançando, navegando, balançando como um  carrossel…


                                         F I M    


By Humberto Ventura Palma Baião, em 22 fde Abril de 2020