quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

313 - DEAMBULANDO NO PARAÍSO .......................


Saio de casa dou meia dúzia de passinhos e tomo a bica, não curta mas quente * e saio fazendo a língua estalar no palato para prolongar o sabor do café, dou os bons dias à Micas, compro os jornais do dia, troco com ela duas lérias de conversa e desando antes que ela me dê a entender que posso estar a atrasar-me, embora sabendo que tenho todo o tempo do mundo…

Rumo mais adiante uns passinhos e sou de imediato apanhado pelo cheiro do pão quente, de lenha de azinho queimada, e num reflexo condicionado meto a mão ao bolso do blusão e retiro o saco do pão, adoro aquela padeira, perdão, aquela padaria, o pão alentejano, os doces caseiros, o calor do forno, a sensação da cinza no chão se calho pisá-la.

A Micas é assim, não aprecia passarões à volta do quiosque, mas gosta de passarinhos e passarinhas, tem em casa um casal de periquitos, um de canarinhos e outro de rouxinóis, passarões dão mau nome ao negócio e afastam a clientela, diz ela que é espertalhona e sabidona como uma pardaloca…

Umas vezes sigo em frente, outras completo o triângulo e volto ao meu café / pastelaria preferidos, onde não por acaso muita gente pensa ter eu ali lugar cativo, não tenho, mas quase. Onde me sinto mesmo bem é na padaria, pena não haver mesas naquela, o calor aconchegante nestes dias invernosos e o cheirinho do pão inebriam-me, dias havendo em que esse olor me leva a esquecer o troco, ou sair sem pagar o pão, até já me tem acontecido abalar sem levar o saco do dito, nariz no ar, emproado e sonhador, atrasando o passo e julgando-me numa soirée do Éden Esplanada com a minha Luisinha, depois o passeio nocturno pela cidade que era nossa e cujos recantos conhecíamos como a palma da mão.

Abraçados deambulávamos por ruas e ruelas, eu encantado ouvindo-a e pendurado nas suas conversas, o futuro vai sorrir a todos, está tudo por fazer dizia ela, e a certeza e esperança naquela democracia tão nova e avassaladora que emergia cegava-nos, cegava-nos a todos

e por vezes a Micas:

- Areia para os olhos ! É só o que fazem é atirar-nos areia para os olhos ! São todos iguais !

E nós sonhando, deitados de costas ou estirados na relva fresca olhando as estrelas no céu e tentando adivinhar percursos e horizontes, a Luisinha falando, embora falando ainda muito pouco de economia,** e eu ouvindo-a, o que eu gostava ouvi-la falar de economia … ou de qualquer outra coisa, matemática, física, história, ou geografia… Estirado na relva inalando indolentemente um cigarro, ela falando, eu ouvindo, fosse história, ou geografia o que ela dizia, à pressa, como se o vagar pudesse acabar-se, ou eu, a quem a conversa seduzia, eu quem, como feitiço sobre mim caído, resolvesse numa inquietação obscena falar-lhe dos lugares exóticos onde ela e eu iríamos, e eu, nostálgico, em puritanos sonhos sorrindo, numa ternura impaciente, desatando-lhe os laços e lacinhos, por vezes com os dentes, enquanto pelo canto do olho me maravilhava com as mirificas e reluzentes bolas de sabão que da sua boca se soltavam, cada uma com uma nota musical, refulgentes, seguindo enfiadas uma nas outras, a mais pequenina atrás, a maior na frente, numa fileira ordenada e ondulante numa melodia que eu ouvia por um instante e, de repente, pof ! rebentavam num alarido estridente, numa gargalhada, num sorriso, num abraço, um beijo, uma volta, duas voltas até um qualquer arbusto nos parar e esconder na noite fresca, de olhares indiscretos, do senso comum e, inquietos, tomávamos em nós o cuidado pelo bem estar do outro e sossegávamo-nos, umas vezes apressados, em torvelinho, outras devagar, devagarinho, até que, exaustos, famintos e sedentos, cabelo e roupas em desalinho, nos erguíamos rindo, atarantados ainda, aparvalhados de felizes e, de braço dado ou abraçados descíamos rumando ao mercado em busca do cacau, da massa frita, do alarido dos pregoeiros, dos cheiros das frutas e hortaliças, do peixe fresco, do calor do forno na padaria da Tia Maria Benta onde logo pelas matinas e no meio dos molhes de lenha ganhava a azáfama no manejo da pá de cabo comprido, compridíssimo

- Sai mais uma cabazada ! Puxem os cestos para aqui !

e o pão com chouriço, e café quente em copos grandes, café forte, que aquecia e dava nova vida aos corações batendo de contentes.

E inda o sol não despontava apontávamos à Heróis do Ultramar Rossio, CAPLE, onde um leiteiro, sempre o mesmo, sempre alarve, invariavelmente nos gritava:

- Deixa-a acabar de criar !

E nós rindo apertávamos o abraço e estugávamos o passo, Bombeiros, Nau, mais dez minutos e estaremos lá, ela subindo as escadas do prédio, correndo e mostrando o rabo, eu montando a mota que ali deixara e desandando para casebres.

Uma manhã quando sorrateiramente entrava em casa, o meu saudoso paizinho:

- Sete da manhã, onde andaste ? Isto são horas de chegar a casa ?

E eu, matreiro, tendo-lhe virado as costas ainda antes que ele me tivesse visto:

- Estou de saída pai, não estou de chegada, tenho que fazer cedo hoje, até logo, beijinhos.

Saí, dei uma volta ao quarteirão para queimar tempo e, cansado e sonolento atirei-me para dentro da cama mesmo vestido.

Não foi a Luisinha quem me enganou ou desiludiu, foi antes esta democracia de merda da qual tanto nós esperávamos, esperávamos tudo, esperançados no melhor. 

             Fodeu-nos a magana, ou, como diria a Micas:

- Fodem as paredes todas com cartazes e cagam o pé todo cada vez que fazem alguma coisa ! …

exasperada com a colagem de cartazes nas paredes do quiosque cada vez que há eleições............................