sexta-feira, 3 de outubro de 2014

USA BOTIM ... SMALL STORY, SHORT STORIES ...


Mesmo nos dias pouco soalheiros aquela rua mantém o arranjo, aprumo e arrumo, piso limpo, sem buracos e sem mais lixo que uma ou outra folha caída de uma ou das muitas árvores que a compõem. É uma rua catita, de prédios brancos debruados a amarelo ocre, um amarelo que no Alentejo casa com os malmequeres silvestres saltando à vista mal metemos o pé fora do burgo.

No meu bairro todos ou a maioria dos prédios mantêm um cuidado jardim entre si e o passeio largo, por ali podemos caminhar e descomprimir, o sufoco da cidade antiga não nos aperta aqui e, se por acaso assomamos à janela nem a vista nem as pálpebras baterão no prédio da frente e ruas e avenidas largas dão largas até à imaginação mais contrita.

Até eu ou sobretudo eu que sou extrovertido e expansivo aprecio e aproveito, inda que não necessite, o panorama de quaisquer das minhas janelas e, um destes dias, eu que sou um homem fiel a pessoas e compromissos, dei por mim num devaneio que nego e ao qual fui alheio, alheio mas espectador, tendo em mim sentido ter toda a rua ficado repentinamente mais viçosa, mais luminosa, como se a Primavera estivesse pressurosa de chegar e o dia ficado mais cintilante, mais radiante, mais iridescente, quente, pelo que corri primeiro o cortinado deixando-lhe somente uma nesga por onde olhar mas, de tão intensa e espectacular a imagem, corri ligeiramente o estore, que não baixei totalmente pois me fascinava o empedrado da rua e nele ela, de peito ufanado, alta, esbelta, madura, longas pernas levemente arcadas, arco, alvo, flecha, laço, senti-me enlaçado, preso àquela imagem, eu um homem íntegro, seguro, subitamente agarrado pelas circunstâncias, puxei o estore num esticão para que os buraquinhos ao menos mais largos, as calças em ganga, a coxa apertada nelas e bem desenhada, a camisa branca imaculada, justa, a cintura estreita, a anca larga, alta de ombros largos, não sei se já vos disse quão alta era ela, de braços compridos, pernas fortes altas e arqueadas, blusa cingida, colarinho aberto, um peito de musa debaixo da blusa apertada no punho, 

é Junho, não, não é ainda, sou eu que sufoco, que suspiro, que deliro, ela segura o saco, bate a porta do carro, quatro piscas piscam em simultâneo, eu assusto-me, estremeço e, leve como uma corça transpõe o quintal, abre a porta do prédio, some-se num agitar longo dos cabelos e, 

            puf !

        acorda parvalhão, acabou o encanto, o recreio, larga o avental ou o enxovalhas e vai acabar de descascar as batatas, cortar os carrapatos aos pedacitos, corta meio nabo, descasca a cebola, limpa e corta duas cenouras, mete já a água ao lume não te esqueças, vai adiantando, vai acordando, vai temperando, um nadinha de sal, um dente de alho, o caldo de galinha e só depois o fio d’azeite, prepara a varinha mágica, esquece o que viste, foi magia, agora é contigo a alquimia….