segunda-feira, 1 de abril de 2019

590 - O REVIRALHO ... by Maria Luísa Baião*****


O meu avô Zé, por quem sempre nutri enorme carinho, contava-me, sentando-me quando menina nos seus joelhos, histórias da República que eu então não entendia, mas cuja sonoridade me tolhia, me prendia a atenção, curiosa dos finalmentes, sempre imbuídos de uma sabedoria que apurara no decurso da sua longa vida.

Recordo uma das suas histórias a propósito de um “cavalheiro de infantaria”, homem com longa experiência da derrota mas com um profundo conhecimento deste povo, o que lhe permitiu ver o que ninguém queria ver; que mais ninguém que não ele iria ganhar aquela prova. Só ele acreditava numa tão evidente verdade, tão evidente que nenhum outro nela queria acreditar.

De tão incrédula  essa verdade tornara-se absurda, pelo que enquanto uns esperavam que a vida passasse sentados nas soleiras das portas, outros entretinham-se perseguindo ilusões e ideias disparatadas.

Entre estas duas posições, tão opostas quanto antagónicas, flutuava no centro um numeroso e volúvel grupo de indecisos, sonhando carreiras e contando cadeiras para curar insónias, gente a quem o mau dormir aconselhava esperar um messias que se perfilasse no horizonte como vencedor, para nele então votarem.

Alguém gritou que como de outras vezes as eleições seriam uma palhaçada e qualquer que fosse o palhaço o circo seria sempre o mesmo. Uns não quiseram acreditar, outros houve que não acreditaram porque não quiseram, sendo que os mais cépticos logo trataram provar através de dogmas e axiomas quanta mentira havia escondida em tamanha verdade.

Pelo sim pelo não e não fosse a verdade provar estar errada, mandaram-se vir da estranja especialistas solenemente importados com esse fim, e que projectaram metódica e arbitrariamente os ganhos e as derrotas de cada parte para gáudio dos incréus.

Assim, enquanto uns se posicionavam à direita e outros à esquerda, os crentes na vitória de que todos duvidavam, foram, por razões que só a eles convinham advertindo o povinho e o povão do caos em que a Pátria cairia no caso de outros triunfarem, pelo que o seu próprio triunfo se celebrou com semanas de antecedência. Contudo, e porque no fundo nem eles acreditavam na verdade com que nos mentiam, foi consultado um oráculo, figura que não tendo vingado no caldo das meias verdades, se vingou tornando-se vidente, evidente que se tornou não ser sua especialidade a isenção, nem ser essa a intenção. Ditando pragas do alto do pedestal ajudou a cerzir o destino que é de todos nós, coisa que todavia muitos só iriam descobrir mais tarde. Adiantando-se dessa forma ao triunfo logo ali quebrou o jejum e o luto por vitória a que nunca conhecera o sabor, mas que reconhecia noutros a quem recomendava como quem receita um sonífero.

 Uma vez solta aos quatro ventos a profecia uns morreram logo ali, outros quedaram-se estáticos frente aos televisores fingindo uma surpresa que já não o era e tentando com esforço e gestos desesperados afastar de si o céu que lhe caíra em cima. Tal desiderato foi, para a menor maioria que a história alguma vez registou, um alívio. Para quem esperava se perdesse ser mandado para a Sibéria despojado dos bens ou despedaçado pelos esquerdistas, foi na realidade o acordar de um pesadelo que os atormentava.

Assim se salvou a Pátria, assim se evitou que os bancos fossem assaltados por avaros receosos que lhes confiscassem o dinheiro, e mesmo sem fronteiras, terminou para muitos a trabalheira de colocarem o dito a bom recato lá fora. Os aeroportos não se lotaram de fugitivos tementes pela própria vida. O país estava salvo, não houve necessidade de jantares secretos, de reuniões politicas nem do traçar de planos de desestabilização económica ou derrube de governos.

Não deixaram de fazer o habitual e patriótico brinde pela esperança na nação, aliviados que ficaram todos por não terem que empenhar os seus pecúlios p’la restauração da ordem e da autoridade. Um último recurso, em que até mesmo os vencedores tinham pensado num assomo de coragem, o golpe militar, estava literalmente de parte por desnecessário e fora de moda.

Haviam conseguido o que eles mesmos julgavam impossível, levar a esquerda a morrer por ela própria enredada em atribulações e questiúnculas de quem não tem grandes interesses a defender nem rasgos de inspiração ou imaginação quando no poder.

A sua ambição era grande, já possuíam os meios de comunicação mas faltava-lhes o que agora obtiveram, poder. O meu avô Zé não conheceu Andy Arnhol, a quem teria dado razão, provou-se mais uma vez que até o mais desvalido tem na vida os seus cinco minutos de fama. 


‎***** By Maria Luísa Baião,‎ publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" a 22-03-2002. Alusão à vitória de Durão Barroso nas eleições de 2002 após a fuga de António Guterres que abdicara.  

589 - VISADO PELA CENSURA by Luísa Baião *


Naquela manhã cinzenta que o nevoeiro teimou em colocar-me à frente, outra opção não tive que contrariando-o, virar à esquerda e enfrentar recordações que fizera há muito por esquecer mas que não deixam de estar entre as mais marcantes dos meus tempos de menina e moça.

Virei à esquerda para Sines, terra ditosa que há mais de trinta anos colocara fora dos meus roteiros, terra que me traíra na sua caminhada cega para o progresso. Sines foi sempre para mim a cidade mártir das incongruentes e inconsequentes políticas do estado novo, foi de todas a que maior descaracterização sofreu às mãos de uma oligarquia perdida no tempo e no espaço, cujos sonhos labregos de grandeza vieram a fazer dela o maior dos nossos elefantes brancos.

De qualquer modo não me intimidou aquele nevoeiro, nevoeiro que, sabem-no os deuses, tantas e tão gratas recordações esconde no seu seio. Rapariga, maria-rapaz, ali passei imensas vezes as minhas férias cujas manhãs nebuladas aproveitava para tudo que não fossem os mergulhos regulamentares e a que as educadoras nos obrigavam pacientemente.

Era pois nessas manhãs que me escapulia, que nos escapulia-mos para a lota, ver o pescado e a faina tão diferentes das ceifas e debulhas do nosso Alentejo interior, ou para a “praia do norte” e para o Farol, revolvendo as rochas na mira das conchas esféricas de ouriços-do-mar mortos ou de estrelas-do-mar que depois colocávamos a secar até perderem o cheiro nauseabundo e ficarem duras, hirtas, braços bem separados, que trazíamos como recordação para este mar seco da terra em que vivemos.


No regresso sempre em cima da hora do almoço, buscávamos ainda à pressa, descortinar o invisível campo de nudistas que se dizia haver na praia do norte, reservado exclusivamente a estrangeiros mas com o qual nunca fomos capazes de dar, como se o mesmo envolto na bruma, com ela se dissipasse como se dissipavam os nossos desejos de espreitar os nus, acelerando o passo, por vezes carregadas de conchas e conchinhas com que teceríamos os colares de pérolas da nossa imaginação.

Adorei Sines, também porque gostava de cavalgar pelas ameias do castelo sobranceiro à praia e depois descer correndo em tropelia e desafio o labirinto que era aquela estrada com curvas e contra-curvas levando-nos da vila à marginal a perder de vista a qual, bordejando o mar dava ao lugar toda a intimidade e aconchego que noutras praias nunca senti. Hoje nada disso é visível, a praia deformou-se, a montanha que a aconchegava a sul dando-lhe aquela característica de anfiteatro virado ao mar desapareceu há muito devido às obras do porto, como desapareceram os cruzeiros que víamos passar ao longe na linha do horizonte e cujas rotas mentalmente acompanhávamos em jogos de geografia e fantasia a que nunca faltou um príncipe encantado.


Hoje damos de caras com petroleiros enormes, usurpando cenários que lhes não pertencem, dilatando a afectividade do lugar até ao impossível, conspurcando as águas com a sua baba de crude. E se voltarmos a cara num repente, enojadas, revoltadas ou desiludidas, damos de caras com centrais termoeléctricas e fumarentas, pirâmides de carvão com toneladas, dúzias de depósitos de refinados e sobretudo com um nevoeiro ácido, proveniente de nuvens filhas de chaminés violando tudo, até a nossa memória.

Adorei Sines porque maria-rapaz podia dar-me ao luxo de escolher um dos dois cinemas que ela tinha, um salão e uma esplanada, esplanada que aos fins-de-semana se transformava em alegre lugar de baile e fantasia, onde despedacei corações ao mesmo ritmo com que me calhava chorar baba e ranho. Ali encontrei os meus primeiros amores, esquecidos uns, inesquecíveis outros.

Sines a terra do Gama, já não cheira a peixe e a mar, mas sim a bóstia de alcatrão, sendo que a dor e o sangue estão também gravados na recordação que dela tenho. Corria Agosto do ano anterior àquele em que máquinas medonhas transformariam a paisagem naquilo que ela é agora. Era o mês da procissão que eu vira tantas e tantas vezes e que percorria não a terra mas o mar, benzendo barco atrás de barco até nenhum ficar esquecido e a Senhora pisar terra, no que era acompanhada por foguetes. Nesse ano não se ouviram foguetes mas tiros, pescadores foram sovados na praia, pisados por cavalos e mordidos por cães para tal treinados, o vermelho das colchas foi trocado pelo vermelho do sangue, e tudo tão só porque as bandeiras que os pescadores ousaram erguer nesse dia eram negras.

Ninguém soube, ninguém mais que aqueles que nesse domingo faziam praia. Nem jornais, rádio ou televisão deram notícia dos factos, o poder calava-se, e enquanto se calava eu abria os olhos. Hoje, por cá, também o poder se cala como se não nos devesse satisfação alguma, como pensam vocês que me sinto ?

‎* By Maria Luísa Baião,‎ escrito segunda-feira, ‎6‎ de ‎agosto‎ de ‎2001, ‏‎pelas 20:09h 
e publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.