quarta-feira, 13 de maio de 2015

UM FORMIGUEIRO NO QUINTAL * .........................

             
   
Há anos que observava o formigueiro. Olhando-o, meditava na condição das pobres formigas que, fadadas por anos de seca, se esfalfavam para garantir um mínimo de subsistência.

Levavam-se a sério, trabalhavam denodadamente, ainda que sem resultados visíveis, já que, mantendo a tradicional e rígida organização dos tempos de vacas gordas, se mostravam incapazes de enveredar por novas formas de comportamento, mais conformes com a escassez de meios agora ao dispor.

As mesmas, sempre as mesmas, teimando nos mesmos métodos, lá iam sofrendo as agruras da sua condição de obreiras e matando-se para prover, mal, o seu sustento e o da colónia.

Desta janela, onde por vezes em recato me ponho a olhá-las, entristece-me a sua vã e ignota azáfama, pois nem elas parecem dar-se conta da vacuidade do seu esforço, nem eu, por muito que o quisesse, algo poderei ou poderia fazer que tanto mal remediasse.

Obreiras que são, engordam e alimentam os vários níveis hierárquicos da colónia, colónia que por sua vez nem lhes minora a condição, não contribui para uma sua mais proveitosa e eficaz acção, nem lhes melhora a distribuição ou redistribuição da ração.

Quer as formigas guerreiras quer as rainhas parecem, nesta colónia, viver sem se darem conta nem das dificuldades das demais, nem do momento crítico que todo o formigueiro atravessa. Continuam vivendo à tripa forra, distribuindo entre si cargos, honrarias e benesses que só um vão sentimento de normalidade e estabilidade podem explicar.

Algumas obreiras, porventura mais cansadas, ou mais lúcidas, parecem-me, pelo revoltear das antenas, dar-se conta da ameaça que sobre todas paira e, inconformadas, reclamarem alterações urgentes ao seu modelo de organização. Aproximo, nestas ocasiões mais a cabeça da janela e, curiosa, tento desvendar-lhes os segredos. Não consigo dar-me conta de que sejam votadas a algo mais que um profundo desprezo, ou pelo menos assim me parece acontecer.

Calhando observar durante continuados e mais longos períodos este exemplo de mole humana, reduzido a dimensões liliputianas, deduzo, e talvez não ande longe da verdade, que a aparente normalidade tem contudo gerado enormes dissensões internas na colónia. Colónia de onde, num curto espaço de tempo, varias rainhas, apostava ter visto já debandado, incapazes de colocar a mão, ou as antenas, em atitudes reformistas e mobilizadoras de uma outra estratégia, capaz de lhes garantir mais que a subsistência a que estão condenadas, umas, ou alterar a soberba negligência e ofensiva opulência das outras.

Sonho já com as formigas e o seu exemplar formigueiro, cuja ebulição acompanho dia a dia e que, mau grado me estar a arrasar o quintal, e ter tido por mais que uma vez uma vontade incontida de lhe dar valente pontapé, me traz curiosamente decidida a, calmamente esperar, e ver até onde a sua capacidade ou incapacidade as conduzirá.

As obreiras trabalham, é inegável, cada vez menos, mas trabalham, mais mortas que vivas, mas trabalham, qualquer dia a troco de nada, mas trabalham, inconscientes do papel que desempenham, mas trabalham, há muito sem esperanças, mas trabalham, sem presente nem futuro, mas trabalham, sem que se apercebam para quem, mas trabalham, sem que lhes reconheçam qualquer mérito, mas trabalham, para minha estupefacção, ainda trabalham.

Na colónia, as mandantes mandam, mal, na maioria das vezes, mas mandam, sem qualquer capacidade para tal, mas mandam, afadigadas com problemas pessoais, mas mandam, assoberbadas por ambições desmedidas, mas mandam, nada preocupadas com as demais, mas mandam, para o bem ou para o mal, mandam, para mal dos nossos pecados, mandam.

Um dia uma formiguinha atrevida apresentou um projecto inovador, e, pela primeiríssima vez, logrou conseguir o consenso das mandantes que, iradas c'a ousadia, também pela primeira vez se puseram entre si em sintonia.

A formiguinha, essa, viu a morte anunciada nessa mesma hora, nesse mesmo dia.

" Moral exemplar, não ousar, não mudar, viver, mas pouco. "

* Texto escrito por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião há 10 anos ou mais.