quarta-feira, 29 de agosto de 2012

123 - O AGNELO DO 203 ............................................



Somente o ar festivo e aquela maralha ululante dentro do carro tornavam menos tétrico o negro daquele antigo modelo, mal estimado, barulhento, de ar ameaçador e que, lançado a grande velocidade, excitava a atenção de todo o bairro.

Eu hesitava entre a partilha de júbilo do Sezídio e a surpresa condenatória de todo aquele escabeche, como se entre a criança que largava a pele e o jovem que a não vestira ainda. Contudo, apercebia-me perfeitamente da necessidade de mestre Agnelo em mostrar o carro, coisa que raríssimos possuíam, ainda que um desconjuntado modelo 203 da Peugeot, única prova provada do seu recente êxito em terras de França, onde, como por cá fizera a vida inteira sem qualquer proveito, pintava e caiava “maisons” a preço de ouro.

A desforra era pois compreensível, e as viagens festivas de toda a gente naquele carro que acelerava doido pelas ruas do bairro tornavam-se admissíveis. Até a senhora D. Leonor, mãe do Flávio, vizinha de portas meias de mestre Agnelo foi honrada com três ou quatro daquelas voltas, voltas e alegria que a uniram com D. Julieta, vizinha e mulher do mestre, e que por mor deste ou pela falta dele tantas vezes se tinham zangado e reconciliado as duas.

O Sezídio era por aqueles dias adulado por todos nós. Não só porque perderíamos para sempre a sua amizade, na esteira do sucesso de mestre Agnelo por aquelas terras da estranja, já que toda a família retornaria com ele, até o pequeno Valdemar que nada entendendo devido à tenra idade, havia quase uma semana que nem dormia nem fechava a boca de espanto devido a tanta traquitana que testemunhava, nem a limpava do castanho guloso do muito chocolate que o pai trouxera e o Sezídio perdulariamente distribuía por todos nós.

Mestre Agnelo orientava a vidinha. Na taberna do velho Gerardo não se cansava de apregoar aos quatro ventos o novo mundo, a riqueza ao alcance de todos, o trabalho em barda e bem pago, e, à sorrelfa, lá ia largando baixinho o alívio que seria livrar os filhos da guerra, que ele sofrera na Guiné e achava jamais teria fim.

Por causa dessas e de outras mestre Agnelo viu-se obrigado a regressar a França à pressa, mais de uma semana antes do premeditado, e nunca entendi se por isso, levou com ele a senhora D. Leonor, não fosse a necessidade assalta-lo lá.

Certamente o que sofrera vez nenhuma contaria a alguém, nem disso havia necessidade, os anos de miséria conhecidos cá ninguém estava interessado em lembrar, e eu apostava que muito menos ele, a quem agora o orgulho se estampara na face.

O Sezídio foi só o primeiro, depois dele os irmãos Espanhol, o Barreto, o Tita, o Januário, o Baltazar, o Balixa, o Altino. No espaço de um ano o bairro ficou reduzido a metade e a malta nem brincava, com saudades dos idos e falta de gente para animar as brincas e os jogos.

De vez em quando uma cara, um episódio, acodem-me furtivos à memória. Não os sei se vivos se mortos, rememoro o que a sua fuga evitou, sim, porque foi uma fuga, uma fuga para um lugar com futuro assegurado.


Sem que o queira comparo aqueles dias com os de hoje, então fazíamo-nos homens demasiado cedo, hoje nem deixam que o sejamos. A democracia, essa, continua como então, longe, muito longe...