segunda-feira, 11 de maio de 2015

239 - DO SER E DO ESTAR * por Maria Luísa Baião

                             

Caíram aguaceiros em vários locais. Trovões foram ouvidos para o lado sul. Valha-nos Stª Bárbara. Foi Páscoa, recordo o Degebe, onde, dantes, tanta gente aportava na ânsia do borrego, das águas límpidas, memórias sopradas aos meus ouvidos, coisas que pensava esquecidas.

 O céu é o mesmo, até as nuvens me parecem iguais. Regatos formados mostravam pedras redondas, suaves seixos que trazia para casa, coisas pequenas que me mudaram, que não me mudaram, nunca saberei. Os penedos cobertos de musgo, que é feito do musgo? O musgo que os tornava em simultâneo sedosos e agrestes já se foi, nem já nos presépios, nem já presépios.

Combatia-se então o tédio, como hoje, que coisa o tédio, que insuportável. Nem a lua é a mesma. Já não vejo nela um velho carregando feixes de lenha, nem promessas... Nada, nem a lua, me consola, nos consola. E compravam-se cordeiros no Rossio, rebanhos em bardos, um pequeno preso a uma estaca. Sangue no chão, as peles amontoadas. O sacrifício da morte como oferenda.

Névoa, chuva, lágrimas, cansaço, espera, angústia, solidão, medo, pobreza, mágoa. Não encontro já os cata-ventos da minha meninice, talvez daí não haver rumo, fascínio, encanto, paixão. O mundo é um espanto. Sobra-nos melancolia, inércia, impotência. Nunca mais desbravámos mares, ciências, ousadias, esperanças.

Inventam-se esquecimentos, entreténs, e no entretanto não temos nada, e cada vez menos. São uma violência os dias. Roubaram-nos o presente e o futuro. Podendo, destruía o tempo, esse tempo que nos corrói e penetra, defenestrando-nos ante a vida. Nada faz sentido, apenas a inconsequência se impõe, tudo o resto é vão. É falso o tempo que nos vendem. Nem é novo, nem é digno.

Coisas simples, marmelos, marmelada, doce de tomate, gostos e aromas que caíram no esquecimento, o odor das laranjeiras, lenha ardendo na lareira, café em borras, fervilhando.

Cantoneiros amando as estradas, as máquinas.
Já não há amores ao luar.
Não quero nem preciso ser, sermos, trágicos.
Viver é isso, a vida depara-se-nos como ficção.

O pior são os discursos. Sorriem ainda os lábios, sem saberem porquê, sem terem de quê. Não nos compreendo.

A cidade adormece, então todos comungam o momento único. A cidade cai na noite, e finalmente a empatia esconde a indiferença.

Uma a uma vão despontando flores nos campos primaveris, jasmim, malmequeres, alecrim, papoilas, lírios, rosmaninho, soubera eu chamá-las todas pelos nomes.

Quase não se ouvem outros murmúrios na cidade que não chilreios. Uma andorinha passa álacre rente ao chão. Não há nada para contar. Ah! As árvores enxamearam-se de folhas, e, de vez em quando, passam autocarros ronronando. O silêncio. A cidade emudecida. Subterrânea, o tempo sendo contado pelas horas que animam com ruído o deserto.

De dia, homens de mãos nos bolsos seguram as arcadas regurgitando bolas e touradas em palavras repetidas. De noite, esquecidas as salas de cinema, o convívio, esquece-se o tempo e o silêncio veste-se então de vozes, álcool.

Relógios parados inventam o ímpeto alentejano, buscando vencer as dúvidas eternas acoitadas em nuvens indolentes. Procuramos com torpor os mistérios de ontem, hoje esperamos um amanhã que parece não existir, e um sentido de abandono toma-nos no seu regaço.

A palavra, as palavras, são estórias, escritos longos, perdidas e eivadas de impaciente tédio que não tolera a alegria dos que esperam, vegetando sorrindo, aspirando a liberdade e um futuro cheirando a mofo e vazio, sem ao menos um desígnio.

Se pudesse, não teria nascido.

A existência é perversa e os anos não mais que saudade, esperança, tempo perdido e ansiedade. Esta é a minha cidade, a minha terra, que nos idos de seiscentos inventou quimeras, tinha sempre lindas moças às janelas, suspirando ais, e tecendo elogios tais a ela mesma, sim, a si mesma, que não caberiam nesta escrita. Coisa assim penso jamais ter sido dita.

Ouço os gatos miarem nos telhados. Pardais levantam-me as telhas num alardo, os cães, desassossegados, correm e ladram de lado para lado. A cidade tem vida, é animada, tão animada quanto o pode ser uma feira num largo. Vêem-se jograis, arlequins e saltimbancos e, espanto dos espantos, vê-se gente correndo e enchendo as novas catedrais.

A pressa, sempre a pressa, de chegar e partir levando cada vez mais. Sublimação de um vazio por preencher, um querer mais, mais e sempre mais. Não somos nada, não temos nada, não cremos em nada, queremos tudo sem saber o quê.

O sol espreita como que brincando, e assim nos vamos entretendo. Uns dias mais, outros menos. O vento é fraco, moderado, a temperatura amena, prevendo-se a sua continuação nos próximos dias. Deixemo-nos ficar. Deixemos.

* Escrito em Évora a 9 de Maio de 2006 por Maria Luísa Baião e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.