domingo, 17 de dezembro de 2017

481 - O OBSERVADOR QUANDO OBSERVADO .....


  Claro que gosto de encontrar e de me encontrar com os bons amigos, de confraternizar, de falar, largar umas larachas, beber uns copos, petiscar umas coisas, mordiscar outras. Quem diz amigos diz amigas, não faço discriminação de géneros, nem sequer ao Apolinário que é todo não me toques, e eu não lhe toco, desde que fiquemos por aí tudo bem, não perde o malmequer as pétalas nem eu fico menos macho por isso.

  Por isso ou por isto, ou por aquilo, de vez em quando lá vem à baila o estranho facto de eu gostar de ler no café, e realmente gosto, e muito, é no meio do bulício que encontro a paz e provavelmente a coisa terá muito a ver com o facto de há mais de quarenta anos o meu sítio predilecto ter sido o Café Portugal, uma colmeia, um enxame, um mundo, cosmopolita como nunca mais tivemos outro, uma tertúlia, aliás dezenas de tertúlias, uma por mesa e dentro de cujo burburinho, zum zum, zoada, fumo de tabaco e cheiro a café, banhado num estável e constante murmúrio me sentia como peixe na água, ou melhor num aquário.
      
  Ali conseguia o milagre da evasão, da descontracção, do relaxamento tibetano de que me falou anos mais tarde a Constança, toda ela prenhe das influências do yoga, do flower power e de dois livros que lera na altura e estiveram na berra, “Viagem ao Mundo da Droga” e poucos anos mais tarde “Os Filhos da Droga” duas obras de referência para gente passada, gente de quem diríamos hoje cobras e lagartos, gente para quem a loja dos Porfírios, ou dos Por-fi-ri-os na baixa pombalina era o supra sumo da modernidade.

  Não vejo o que possa haver de estranho no facto de ler no café, dantes estudava, já que o silêncio me perturba imenso e nem me permite concentrar-me, como se o organismo ficasse alerta, tenso, pronto a disparar como uma mola ao mais pequeno ruído e contudo esse mesmo ruido envolve-me, embala-me, consegue que o ignore e dele me isole numa bolha, relaxe, pois bastará que todo ele se suma repentinamente para que eu então levante os olhos curioso do calar dos pássaros, todos eles emudecidos ao mesmo tempo.
  Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Existe portanto uma gigantesca diferença ou poderá existir, entre o que alguns de nós acham estranho e a opinião de muitos outros, os quais advogam parecer completamente contrário. É possível, e acontece, o modo de pensar, de ver, de observar, variar de pessoa para pessoa de acordo com a sua visão da coisas, do mundo, de acordo com os seus interesses, variando até de acordo com deformações profissionais cujos reflexos induzem a ver ou a olhar só, ou sobretudo, numa determinada perspectiva. O mesmo em relação a qualquer quadro numa exposição de pintura. Aliás a própria pintura não evoluiu por fases ao acaso, o naturalismo, impressionismo, o expressionismo, o surrealismo, o abstraccionismo, o cubismo, o construtivismo e tutti quanti mais não são ke diferentes formas de ver a realidade, e de a mostrar claro…

  Não esqueçamos espécimes como o meu amigo Morais, provocador, extrapolador, nem além destas tipologias o visionário, nem o sonhador. É aqui que torna a entrar o meu amigo Apolinário, por procurar ver e mostrar precisamente o que não está à vista, no que é o oposto da Constança. O meu amigo Apolinário escreve epitáfios, uma ocupação senão curiosa pelo menos caricata mas que leva muito a sério. Ele busca, escava nas biografias dos defuntos não para garimpar o que toda a gente sabe mas o que neles seja nobre, sendo essa pepita que nos dá a ver, nos mostra, uma faceta do morto até ali ignorada ou desconhecida, o lado bom dessa alma, quantas vezes causa de espanto e de estranheza.
                         Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

Porém a Constança, fotógrafa amadora com algum jeitinho para a coisa, é mais prosaica na busca desse mesmo espanto ou estranheza com que nos possa cutucar a curiosidade, ela busca e mete em destaque, exacerba o que possa ficar escondido arrancando o banal à sua quieta banalidade. Ela engrandece, ou glorifica, destaca, põe em evidência o que de outro modo ficaria esquecido, ignorado, desprezado numa perspectiva da qual ficaríamos alheados.

 À sua maneira ambos me espantam, a ele convidá-lo-ei enquanto é tempo a que me escreva o obituário, ela que me fotografe em grande plano esta carinha laroca, em especial o sinalzinho catita, herança familiar, pois é sempre por ele, é sempre por aqui que os avanços da Benedita começam, mais madura e impaciente, e outra amante genuína da fotografia cuja insistência não trava enquanto não pousa a máquina e contrariado lhe mostro um outro sinal, a operar e remover em breve por tropeçar nele a fivela do cinto e me atormentar de dores quantas vezes nem sei já, só sei que mal sinto a sua mão junto ao umbigo lhe adivinho o costumeiro pedido:
                             Foto: Helena Margarida de Sousa - Évora

- Deixa tirar uma fotinha para o meu álbum da ciência, deixas fofinho ?

  E eu, impaciente, disparando e repetindo eternamente a mesma ladainha:

  - OK Benedita, depois tiras, agora manda lá vir as caracoletas na chapa quente e umas cervejas bem frescas…
   
  E enquanto chupava e mastigava as caracoletas numa tasca catita ali ao Largo de Alcântara, fui-lhe confessando serem com ela os meus melhores pensamentos, aliás fazia-me sentir borboletas no estômago, ao que ela não ficou de todo indiferente tendo retrucado:
  
 - Mas afinal quais são esses pensamentos se é que os podes dizer pois nunca chegaste a dizer-me o que pensas, ou sequer quando me pensas.

  Eu quedei-me pensando, depois de muito pensar, que o melhor seria calar-me pois se começo posso cair no exagero, e mal por mal antes o desespero, mas ela, matreira, adivinhando-me o cogito;

  - Deixa-te de tretas já me conheces.

  Eu, a medo, baixinho; - Quando te sonho até te cheiro.

  - E a que cheiro eu dizes-mi ?
  
 A flores de rosa, a maçãs verdes, jasmim, e já me tens cheirado a mel, cheiros que adoro e aos quais associo sabores, a flores de rosa se sonho beijar-te o peito, a maçãs verdes se atrevido ajoelho abraçando-te p’los joelhos, lambendo-te as coxas, encostando a testa ao teu ventre quente, a jasmim se tu sim, dizes que sim e te metes a jeito, a mel porque só o mel chama as abelhas e é o principio de tudo…
   
          - És tão intenso no que dizes. Quase o sinto ao dizeres-me isso, és um homem sábio Leonardo.

         Se não houver beleza no que somos, no que fazemos e dizemos, seremos bichos, quase te sinto agarrando-me com força os cabelos quando te sonho
  
- E eu faria isso mesmo fonix.
   
E eu adoraria fazê-lo, e que o fizesses, seria por aí que adoraria começar-te, pelo cheiro, p'lo sabor acre de maçãs verdes, por esse mel da natureza, saborear-te as coxas primeiro e dar tempo a que uma flor abrisse na floreira do beiral... E gostarias ? Será que desabrocharias como uma flor matinal ?
   
           - Qual a dúvida?
   
Não é dúvida, temos que dar tempo ao desejo, torná-lo urgente, imparável enquanto, paciente, espero que prometas e cumpras,
  
 - Não sou de promessas mas se as faço cumpro.

 Abriria então docemente as pétalas para as beijar se e quando as tuas mãos, carregando o vaso, exigissem aflitas que o fizesse pois amo ser um querido e de me saber querido ao saborear-te, abrir a flor da manhã com dois dedos e beijá-la, lambê-la, sugá-la porque, como canta Ney Mato Grosso,

No fundo do tacho um gosto de fel

Mas um dia as abeias se vortam todinha

No milagre da lida, ai, o amor vira mel

E no milagre da lida, ai, o amor vira mel  *


 - És muito bom com as palavras e não precisas de Ney Mato Grosso para te ajudar. Eu não consigo competir com isso.

  
 Mas amo a música e gosto de mel como as abelhas. E não quereria uma competição, querer-te-ia a ti, beijar a tua pele branca de mármore, o mel e tu e eu…
  
 - Tu deixas - me sem palavras.
  
 - Tu inspiras-mas Benedita.

 - Ai Leonardo ai ai, tu lixas -me a cabeça.

  Talvez agora entendas por que me "furto" a ti, vida é beleza, ensinou-me a Rosa Silva.

  - Inteligente isso sim.
   
E a beleza, se não se frui, respeita-se, não se conspurca, claro que eu podia sonhar com a beleza, e até excitar-me com ela mas quem senão eu tem obrigação de estimar o objecto do meu amor ? Respect, és um rochedo.
   
- Rochedo ?

- Sim, rochedo, não percebes nada de filosofia pá, és um rochedo.
                                    Foto: Aldeia da Terra - Évora
Tu és como um penedo, falas pouco, nunca dizes nada, pouco ou nada dizes, mesmo assim sonhei contigo, eras uma fada e eu, acabrunhado, tive porém ainda tacto para, envergonhado, te soprar os cabelos da testa quadrada e nela depositar um beijo matreiro, depois nos olhos, roçando na tua face a minha face, os lábios nos teus lábios e, ruborescendo, qual aventureiro, tocar c’a ponta da língua a tua língua o que, despertando aberto o apetite, viu despertar também um seio a descoberto, oferecido coroado por doce auréola, então, toldada a minha mente, endoidecida p’la névoa, desatou-se-me a língua enlouquecida que, passeando-se nele, tornada anónima pelo denso nevoeiro dessa praia, ousou poisar com doçura no mamilo, sugado com filial ternura sim mas, abruptamente arrependida, recolheu ao palato atrapalhada quando, gizando-me na mente uma guinada, levou-me a genuflexão acalorada, pelo que me persignei e, sinceramente acanhado, aflito e embaraçado, mergulhei em ti desvairado, ébrio do teu olor, ávido do teu sabor, tendo sido então que, receoso do Senhor, arrependido acordei desse sonho lindo que tudo daria para não dar por terminado chamando-te minha.