quarta-feira, 27 de julho de 2016

367 - DUAS CANECAS, PLEASE, S’IL VOUS PLAIT, FAZENDO O FAVOR, O OBSÉQUIO...


Eu tinha passado a noite no bairro alto e a cabeça ainda me andava à roda, mas lembro-me do artista, conheço o homem há muitos muitos anos, uma vez, uma vez há coisa de meia dúzia de anos talvez, e casuisticamente, encontrámo-nos no exterior do CCB, ou nos jardins da Gulbenkian, ou nos corredores do HESE, eu tinha ido ver uma qualquer exposição, ele não sei, estava acompanhado de um amigo comum ainda que desconhecendo esse facto, pelo que após nos cumprimentarmos me apresentou a esse seu nosso amigo e, tendo eu desabafado um:

- Ah ! Já nos conhecemos há muito !

lá ficou ele gerindo uma atrapalhação que lhe não cabendo nas mãos, e como quem não sabe o que fazer aos pinos ou às bolas de malabarismos se lhe atirarem inesperadamente tudo acima ao mesmo tempo, acabou ás tantas por, cabisbaixo, balbuciar para esse amigo:

- E nós também, somos amigos há muito tempo, somos amigos do Facebook. (nós eu e ele entendamo-nos)

Por alguma razão eu encornei que, entre um homem limitado e um artista que se evade pode haver uma gigantesca quinta dimensão, curioso que embora nos conheçamos há trinta anos tenham sido os últimos três que levamos de amizade no Facebook os que naquele momento foram por ele exibidos para me definir, ou descrever. Eu afinei logo. 

Ele há na vida momentos de grandiloquente inspiração e há momentos de inversa sublimação, aquele desabafo disse tudo, disse quanto eu pesaria na sua consideração e quanto me apreciava, já eu desejo ardentemente que ele cresça e consiga um dia calçar as botas que o pai lhe terá deixado. As botas do gato das sete léguas...

Com a cabeça andando ou não à roda detesto ligar o ar condicionado do carro, já por diversas vezes aquela porcaria me trouxe aborrecimentos, irritações na garganta, constipações e até gripes, pelo que aguentei todo o caminho de vidros abertos gozando a aragem, que de aragem só tinha o nome. Quando cheguei à cidade não rumei de imediato a casa, segui em frente, uma ou duas cervejinhas não cairiam mal depois de quase cento e cinquenta quilómetros de tortura, e sempre me refrescariam e acalmariam, evitando que batesse na mulher e nos gaiatos.

Estendi as pernas, refastelei-me e traguei de seguida três ou quatro que escorreram que nem ginjas goela abaixo. Com este calor a gente nem as sente, só sente mesmo é o corpo distendendo-se, descontraindo, e então é fazer como fazem os ciganos, se três ou quatro fazem bem, seis ou sete hão-de forçosamente fazer melhor…

Estava eu nisto quando ao erguer os olhos para ver o fundo à caneca a vista se distendeu sobre a praça e vi os bonecos, os bonecos é como quem diz, as figuras, e dei comigo a pensar quanta beleza e sentimento em cada uma, quanta paixão, quanta arte, quanta inspiração e quanto amor. 


E repentinamente ocorreu-me que tanta brutalidade, tanta boçalidade, tanta cegueira, tanta ignorância neste povo tão só porque nem tem tempo p'ra ser, para ler, para aprender, para conhecer, para se instruir, e as peças ali especadas, idealizadas com tanto carinho, feitas com tanta dedicação e primor, enterneceu-me a paixão por elas ou jamais teriam sido feitas, comoveu-me a entrega que exigiram, o sacrifício de horas em seu redor até que completadas. A consagração a causas nobres sempre me perturbou, e juntar grão a grão, bocadinho a bocadinho, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano, os materiais, é coisa que testemunha um estado de espirito que vai muito pra além da imaginação, quem assim procede é um sonhador, tem um sonho, e esse sonho ou essa causa que o move só pode ser uma enorme ânsia de evasão.

Ia eu começar a desenvolver mentalmente essa coisa da evasão quando a simpática Lídia me trouxe mais duas, detesto acabar uma e ter que esperar pela seguinte, sede é sede, calor é calor, e ali estava eu tentando fugir, ou evadir-me, tanto de uma como do outro. Quanto ao artista fugirá de si mesmo, incapaz dez se assumir e traçar aventureiramente um rumo sobre a frágil ponte do desfiladeiro e da confiança, sonha, sonha e evade-se, fugindo de si próprio tornando-se por momentos outro, e é esse outro que não ele quem nos oferece de bandeja a beleza da criação, o resultado desses momentos de desvario e inspiração, o resultado dessa ocasião de libertação e grandeza porque raramente o artista cabe no corpo terreno, mortal e limitado que tende a parasitá-lo como uma crisálida.

Conheço o artista, dócil, conheço o homem, submisso, admira-me como convivem, um voando inspirado nos céus das musas e onde vogam os deuses, o outro caminhando acabrunhado, cabisbaixo, circunscrito e circunscrevendo-se ao mundo pequenino e parecendo viver unicamente para os fim dos meses. Não é caso único, dessa ordem de grandeza tivemos Van Gogh, que se mutilou e endoidou, ou o contrário, e que depois se suicidou, mas tivémos também o nosso Soares dos Reis, que não suportou a realidade, ou Amadeu Modigliani, Frida Kahlo, e Jean Michel-Basquiat, para citar somente alguns do ramo… 

Mas nada temam, os grandes gestos Deus somente os concede aos grandes homens, e o nosso artista por enquanto vive dos favores d’outros, portanto a sua vida terá o perímetro que outros lhe conseguirem abrir, ou lhe concederem para ao trazerem pela trela, e como em terra de cegos todos se encolhem e refugiam no centro, para nosso gáudio e prazer iremos ter bonecos e artista durante muitos anos, até por ninguém se libertar do que, consciente ou inconscientemente lhe está na massa do sangue. Para se libertar o nosso homem teria que, por exemplo, ir a Belas Artes aprender alguma coisa sobre o mundo, eventualmente aceitar uma bolsa de uma dessas fundações capitalistas imperialistas que tanto abomina, a Fundação EDP, ou a Fundação Milénio, falo destas por saber que se promovem apoiando as artes e os artistas, logo o nosso homem teria que entrar em contradição consigo mesmo e, pelo menos uma vez na vida, seria obrigado a assumir-se. É que falar é fácil, falar, difamar, criticar, denegrir, comprometer, macular…

Ele que se vá entretendo com os bonecos e deixe a politica para os políticos, olhem, cá por mim se fosse rico comprar-lhe-ia os bonecos todos para meter no jardim, se fosse rico teria um jardim né ? Um jardim e um jardineiro, um carro e um carreiro, uma maison e um mordomeiro, e criadas para isto e para aquilo o dia inteiro ! Já tou a delirar, é do calor e das canecas …

C’um caneco ! Mais duas à saúde dele e da minha !