Já vira
aquela cara em qualquer lado. Não como agora me aparecia, magra, macilenta e
mais cavada ainda pela falta de cabelo, rapado à escovinha, feições um
tudo-nada famintas, aliás comuns a tantos iraquianos que todos os dias me
passavam pela frente.
Por muito
que me esforçasse não lograva lembrar onde e em que condições vira já aquela
cara.
Karim Saleh,
assim se chamava, encontrava-se connosco ou deambulava entre nós a todo o
momento, sendo mais chegado ao grupo dos franceses, língua que melhor dominava
por certo, pois esse factor era muitas vezes determinante na nossa escolha do
lugar à mesa, do grupo de amigos, da zona da recepção do wall do hotel, em
cujos sofás perdíamos (?) tanto tempo, ou de quaisquer outras atitudes por nós
tomadas.
George, o
americano simpático, como lhe chamávamos, já me havia pedido camisolas, calças
ou ténis 41 que servissem a Karim, que só possuía a roupa em cima do corpo e
que tudo perdera no rolo compressor da guerra.
Por
qualquer razão que não lembro fiquei por saber o que quereria George dizer, ou
que fatalidade caíra sobre Karim privando-o dos seus bens. Muito ou pouco, naquela
situação todos tínhamos roupas em excesso para as necessidades, pois ali não
havia lugar para fazer valer as modas, nem tempo ou oportunidade para isso.
Muitas
vezes nos deitávamos vestidos, já que era habitual o sono resumir-se a muito
pouco tempo e termos que nos levantar de rompante, quer para assistir a
qualquer combate ou fogo de artifício, quer para nos abrigarmos se o caso a
isso aconselhasse.
As roupas,
o seu corte e colorido, ajudavam muitas vezes a que, no meio daquela babel, nos
identificássemos uns aos outros com maior facilidade, mesmo ao longe.
Jean
Jaqques viera um dia junto de mim com idêntico pedido, de modo que lhe disparei
logo as minhas interrogações. Sim, tinha motivos para recordar Karim,
respondeu-me com uma certeza certeira, viramo-lo na embaixada do Iraque em
Damasco, era tunisino, vivia em Paris, onde não por acaso tinha a família,
mulher e duas crianças pequenas, um casalinho. Deixara um bom emprego, era
licenciado em económicas, tinha uma boa vida e carreira promissora.
Karim, como
bom muçulmano, respondera aos apelos à guerra santa e apresentara-se como
voluntário para lutar pelo Iraque. Como ele, que me lembre, havia na embaixada
centenas de outros muçulmanos. Quinze dias depois Karim Saleh perdera tudo
e pedia, entre nós, quem lhe pudesse dar uma ou outra peça e um par de sapatos.
Nunca
privei com Karim, Jean Jaqques sim, e dele me dizia ser um indivíduo com uma
cultura acima da média, com quem gostava de falar, que não era nenhum fanático
da religião e cujas ideias filosóficas gostava de partilhar. Resumindo,
tratava-se de um bom homem, coerente e crente, racionalista quanto bastasse,
que precisamente por isso parecia ali deslocado, lutando por uma causa que nós
sabíamos não se coadunar nem com a sua honestidade nem com a sua coerência.
Todavia os
preceitos da religião islâmica falaram mais alto, Karim foi incapaz de negar
ajuda a um outro muçulmano que lha havia pedido.
Hoje mesmo
o vi em animada conversa com o Jean Jaqques na sala de refeições, a eles me
dirigi, curioso de observar as referências que sobre si o meu amigo tinha
tecido. Não tive tempo para isso, antes mesmo que eu me aproximasse Karim foi
chamado por dois homens que nunca ali vira, pediu desculpa a Jean Jaqques pelo
facto, alegou não demorar, logo acabariam a conversa e sumiu-se pela porta da
cozinha com os seus acompanhantes.
Jean
Jaqques contou-me então por que razão Karim nada tinha de seu, era um dos
sobreviventes de fortes combates que tinham tido lugar dias antes em Karbala e
opuseram o exército americano ao iraquiano, onde tinha sido incorporado com
mais duas centenas de “fedayn”, sem submissão a qualquer tipo de treino, e a
quem tinha sido dada somente uma farda e uma arma.
Karim
Saleh tinha sido por graça de Alá um dos dez únicos sobreviventes da ultima
batalha pelo controle daquela cidade santa, vira morrer ao seu lado quase todos
os companheiros voluntários nessa luta que nem era deles, vira coisas que
decerto não iria esquecer, por muito que se esforce nesse sentido, iria ficar
marcado para toda a vida.
Irá
interrogar-se e repreender-se infinitamente por esse esforço vão ?
Jean
Jaqques e eu esperámos igualmente em vão que Karim voltasse.
Jean J.
resolveu, após imenso tempo volvido, ir bater à porta por onde Karim tinha
levado sumiço, nada… apenas a ameaça de não ter nada que meter ali o nariz, e o
aviso de que com aqueles homens não se brincava.
Nada mais
era preciso para percebermos o que se tinha passado, os serviços secretos
iraquianos, por razões desconhecidas e com resultados imprevistos tinham tomado
conta de Karim Saleh.
Receámos
que acontecesse o pior ao nosso amigo, metemos as mãos nos bolsos e abalámos
cabisbaixos remoendo o raio da situação e como poderíamos interceder
positivamente nela.
Estávamos
no Iraque, estávamos em guerra, nada seria, ou deveria ser surpresa para nós,
ainda assim...
Ainda assim
Karim saiu vivo da desventura, encontrámo-lo no dia seguinte.
Algumas das
nossas impressões estavam correctas, os serviços secretos avisaram-no de que
não deveria falar com ninguém sobre o que lhe sucedera em Karbala, sobretudo
com estrangeiros, e, como o sabiam um homem culto, poliglota e com uma vivência
no mundo ocidental, fizeram-lhe sentir que uma derrota não é o fim de uma
guerra, a sua devoção à causa islâmica poderia ainda vir a ser posta à prova,
até lá, muito juízo e bico calado.
Quero
crer contudo que estas insinuações, mais que a batalha feroz a que sobreviveu
em Karbala, terão aberto os olhos ao nosso amigo Karim, cujas preocupações,
espelhadas no facto de mirar tudo em redor enquanto falava connosco, lhe
proporcionaram a certeza de estar envolvido numa engrenagem cuja grandeza e
contornos nunca terá imaginado, para a qual não estaria muito voltado e da qual
não veria maneira de se libertar.
Que Deus o
ajude.
Oxalá...
Inch allah
…
in Baião, Humberto - A Guerra no Iraque - Nossos Futuro - Évora - 2005
in Baião, Humberto - A Guerra no Iraque - Nossos Futuro - Évora - 2005