Pintura de João Magalhães. |
Tentei amá-la sempre mais e mais, por muito que ela me
amasse a mim pois há vinte anos sabia que, mais dia menos dia este amor acabaria
assim. Assim como um inesperado sobressalto apesar de há muito ser coisa sabida
e, nem o saber isso me minguou o pesar ou diminuiu em mim a perda perdida, nem esta
dor sentida e muda.
Dor que dói, dor que corta, me acelera o coração e, nele,
fervendo como numa retorta, esta raiva enraivecida contra nem sei quem dirigida
e me alimenta, sustem e projecta contra tudo e todos como boca de fornalha, essa
coisa que me queima até a alma e não se cala, ruge, arranha-me e consome-me
todo, tudo, as noites, os dias, o mais íntimo de mim e todos culpo, até a Ele
porque mesmo quando menos o esperava te perdi.
Deambulo por aí perdido eu por ter-te perdido a ti,
vogando erradamente entre o sul e o norte desta vida agora sem sentido e, o
pica, comedido, temendo o raiar vermelho dos meus olhos, este olhar luciferino,
diz-me a medo:
- Subiu na linha errada, vai em sentido contrário, irei
ignorar a sua confusão, mas terá que mudar de comboio na próxima estação, lá
chegaremos dentro de momentos.
E eu, confuso, confundido, viro e reviro entre os dedos
este bilhete com que, fugindo, julgava achar-te quando me encontrasse e
finalmente o destino se condoesse e nos juntasse.
Com a mão sobre os olhos desço no Porto mas busco-te em Portimão,
perdido, encandeado, olhando mas não vendo, procurando, buscando e não encontrando,
não te sabendo onde, se em Leça da Palmeira se em Vila do Conde, se em
Albufeira, se em Quarteira ou na foz do Arade, o fogo avançando, este calor
queimando seja noite, manhã ou tarde, protegendo os olhos, ardendo, sufocado
por esta saudade que me dobra e consome, tudo em meu redor enegrecido, tudo é
nada, tudo arde.
Perdido e esperançado salto enlouquecido de fornalha em
fornalha e em todas elas palha, nada, zero, nem uma agulha entre as cinzas
deste palheiro que agora sou, cheio, grande, atafulhado de alto a baixo duma
raiva enfardada, atada, contida com o pranto que abafo, pelo grito que calo,
mas que ameaça rebentar-me no peito, saltando em enxurrada todo este amor que
inda te tenho, incêndio que combato sem sucesso e com o mesmo ímpeto com que o
alimento porque te amo muito, porque te amei e amarei sempre.
Não me calarei enquanto amor e dor de mãos dadas me arrastarem,
nem quando ao soluços me abafarem a voz com que te busco ou me caiam as
lágrimas e teimem correr onde as não consinto e contudo atrevem-se, teimam,
toldando-me o juízo, quebrando-me a visão, o caminho, o horizonte deste oceano
em que vogo perdido desesperadamente agarrando-me a ti, tudo me parecendo real
e sem sentido agora que, despido das cores que me vestias, navego empurrado por
um vento gélido que me enregela os ossos, faz bater o dente, temer o devir e o
presente.
Amo-te mais agora que te não encontro que terei amado alguma
vez no passado, a que me agarro como náufrago esperançado numa ilha a que
aportar, minado por miragens de embalar, levado pelo canto de sereias para esse mar em que te creio e onde, para te encontrar quero afogar-me,
nele entrando de rompante, submergir, abraçar-te como dantes e, ali ficar terna
e eternamente amando-te apesar da noite de breu que sobre nós se abateu.
Apertando-te egoisticamente contra mim, protegendo-te,
defendendo-te dessa sina ameaçadora pairando sobre nós, nuvem escura, polvo,
monstro em fuga ante o meu grito, aqui neste mar de tristeza mando eu, eu e tu
meu amor a quem cegamente amo, e sabendo isto o mostrengo picou até ao fundo do
mar para no momento seguinte se erguer voando à nossa volta, revoando três
vezes, chiando
revoou três vezes, três vezes à nossa roda rodou esse mostrengo rodopiando e
dizendo:
- Quem sois que haveis
ousado entrar nos meus domínios, nestas profundezas, quem sois que vos não desvendo,
quem sois que vos amais no fundo do meu mar, do mar mais negro do mundo?
E abraçando-te com maior ardor, eu que ia no leme tremi e
disse:
- Eu a quem o amor tira todo o medo !
E por três vezes do leme as mãos ergui, e três vezes ao
leme as reprendi.
E disse no fim de tremer três vezes:
- Aqui ao leme sou mais do que eu, sou amor sem fim que
quer o mar que é teu, e mais que tu mostrengo que minh’alma teme e que rodas
nas trevas do fim do mundo, manda esta vontade que me ata ao leme, um amor sem
fim, um amor sem fundo que quer o mar que é teu, e este amor que é meu e o
maior do mundo. **
** NOTA:
O final do texto foi adaptado do poema O MOSTRENGO de Fernando Pessoa.
Pintura de João Magalhães. |