quarta-feira, 10 de junho de 2015

246 - PUDICÍCIA E PUNDONOR ................................

                          

          Mal me reconheceu corou. Não que lhe tivesse alguma vez dado razões para isso. Aliás nem a via vai para mais de vinte anos, muito mais. Éramos ambos muito jovens, à época ela pregava ou leccionava Religião e Moral, ou algo parecido, numa das primeiras escolas onde eu fora colocado e onde desde o primeiro momento chocámos.

Eu, já por esses tempos efusivo e extrovertido ao máximo, ela, introvertida compulsiva e sempre distante, sempre recolhida, (em recolhimento) ainda por cima uma fraca figura, (nem cu tinha), seca de carnes, olhos fundos e mortiços, uma boca sem lábios que nunca sorria, e num pregador o eterno símbolo da cruz, num broche ao peito, e num pendente de fino fio de ouro. Segurando-o eternamente nas mãos magras cujos dedos, finos, esguios, nunca se afadigavam de ir passando as contas ao rosário, um vistoso terço. Certo dia vislumbrei-lhe os brincos sob o cabelo curto, de onde pendiam naturalmente mais cruzes e com os quais brinquei, talvez por isso nunca mais os tivesse voltado a usar. Enfim, obedecia a todos os quesitos para que não se gostasse dela, parecendo até primar por isso.

Fora essas divergências, e nem eram poucas, partilhávamos o mesmo dia de anos, o mês, logo o mesmo signo, o mesmo gosto pela leitura, ela era também a responsável pela biblioteca da escola e eu conservo ainda uma Bíblia luxuosamente encadernada, oferta dela há uns trinta anos, trinta e muitos. Divergíamos solenemente num aspecto crucial, enquanto eu partilhava vera afeição pela astronomia e pela ciência, ela era dada à astrologia, às coisas de Deus e do oculto, persignando-se sempre que alguma coisa ou alguém pudessem, ainda que remotamente, inscrever-se no agrado do maligno.

A passagem do cometa Halley junto à Terra em 9 de Fevereiro de 1986 colocara em alvoroço jornais, revistas e televisões, que não largavam o caso, e foi precisamente nesse ambiente que ela me surpreendeu com a oferta de uma carta astral. Como se fosse hoje relembro-a:

- Acreditas no destino Baião ?

Mas só quando ela abriu a carta, tamanho A4, e vi o meu nome e o dela traçados a par das órbitas de Saturno, Júpiter e Marte entendi todo o alcance da pergunta, fazer-me acreditar no destino traçado na leitura do imponderável mundo da sua carta astrológica, aliás da minha, de mim, eu, que no alinhamento traçado pelos planetas era Marte e colidia inequivocamente com Vénus, cujo choque se inscreveria no abraço inexorável de Saturno, o meu ascendente, ou no de Júpiter, o dela, derivando a dúvida do facto da carta exibir uma valência de alguns dias, enquanto para deslindar se nos braços de Saturno, ou de Júpiter, haveria que efectuar mais cálculos, com projecções a um mês ou talvez mesmo mais.

- Que vamos colidir vamos, disso não me resta a mínima dúvida, se ao abrigo de Saturno ou Júpiter mais tarde o saberemos.

E sorria-me, pela primeira vez vi um sorriso naquele rosto miudinho, diria até que pela primeira vez aqueles olhos deram ares de vida, brilharam.

- Ou choque ou absorção, passa lá por casa uma destas tardes, tenho que descobrir a verdade dos astros, mirar-te bem a palma da mão.

Confesso que banzei, ou embatuquei, ela era a única pessoa com quem mal me dava, com quem chocava aliás propositadamente, nunca evitava antes procurara deliberadamente o confronto com ela, com quem não simpatizava, não engraçava, nem escondia isso a ninguém, muito menos a ela, estaria mesmo a convidar-me para ir a sua casa ?

- Ok ta bem, um dia.

Atirei-lhe a resposta automaticamente, sem a mínima intenção de cumprir, mais para a despachar, para arrumar a questão, para me desenvencilhar do incómodo que o convite me provocara com um mínimo de fair play. Com o tempo resolveria a questão, pensaria como furtar-me elegantemente a um convite desagradável sem parecer mal-educado ou detestável.

Mas não me furtei. Não me perguntem como mas além de não me ter furtado vi-me uma tarde em casa da incontornável astróloga, mão na mão, lendo as linhas na palma. Para os que não sabem a mão dominante (a que usamos para escrever) apresenta a vida presente e passada, enquanto a outra revela a vida futura. Ambas apresentam a linha do coração, a linha da inteligência, a linha da vida, longa ou curta, e a linha do destino, que nem toda a gente tem e que deve preocupar-nos se tal nos acontecer.

Depois é ver medir observar, se essas linhas se encontram muito próximo do polegar, se são mais ou menos curvilíneas, se compridas e profundas ou não, se em forma de semicírculo, se rectilíneas ou quebradas, descontínuas, se se aproximam ou não da borda da palma ou apresentam círculos tangentes ou intercalados numa linha ou em mais do que uma linha. Eu pasmava com tanto pormenor nos quais jamais havia reparado, mas reparei no toque suave da sua mão, na pele macia, perfumada, nas unhas extremamente arranjadas coloridas a fúxia, sem atentar minimamente nas frases que me atirava, meio sussurradas entre risadas e confrontando-me com os desígnios astrais.

Para minha surpresa o futuro atirava-nos para Saturno, o planeta dos anéis, pelo que, afirmava ela, tal era sinónimo de envolvimento e não valeria a pena fugir pois os astros sempre encontrariam um modo de fazer cumprir os seus ditames. Eu interrogava-me e meditava, por que raio esta minorca, que me passeava pela casa pegando-me na mão e conduzindo-me, por que raio engraçaria comigo, que nunca me esforçara por lhe ser agradável, a ela, com quem ninguém engraçava, ou achava engraçada. Mas também me perguntava a mim mesmo que me levaria a deixar-me levar que nem um cachorrinho pela trela…

Ali a cozinha, acolá a despensa, a sala já conheces, aqui o quarto, entra, não tenhas medo anda ver, e vi, uma cama larga e singela, as pagelas emolduradas na mesinha de cabeceira, o crucifixo ao centro da parede, ladeado pelo Espirito Santo sob a forma de um coração envolvido em espinhos, e do outro lado a imagem de Nossa Senhora dos Mártires. Foi quando ela, alisando com a mão a colcha vermelha e mirando-me de alto a baixo e me sorriu que verdadeiramente acordei.

- Ainda não viste nada, sou muito devota da Senhora dos Mártires, vem comigo, anda ver o meu retiro.

 Fui, fomos, quer dizer o cachorrinho lá foi, abanando a cauda ávido de curiosidade, até que ela abriu a porta de acesso à cave e uma penumbra espessa carregada de odores a igreja e onde pontificava um forte cheiro a velas queimadas incenso e jasmim tomou conta de mim. Enquanto descia e o olhar se me habituava àquela semiobscuridade pude ver os ganchos no tecto, as argolas chumbadas nas paredes, as máscaras de couro, o entrançado dos chicotes, algemas aveludadas, jogos de bolas ou esferas, um atordoador “Taser” e um vibrador “Pleasure” numa caixa luxuosa da “Bijoux Indiscrets”, uma estante com creme unguentos e pomadas misteriosas junto a uma espécie de altar coberto de flores, que posteriormente confirmei serem plásticas embora uma imitação prodigiosa das naturais.

Uma cruz gigante adossada à parede de fundo irradiava por trás luz forte que a destacava e, quando ela accionou o interruptor dessa cave uma luz estroboscópica fez surgir nas paredes e tecto frases aleatórias como “Jesus é o meu senhor”, “Deus Pai abençoai-nos”, “Só o amor alimenta a alma”, “Escrava do amor escrava do Senhor” e “ Deus é amor”, que me recorde, tantas eram elas…

Ainda não fechara a boca de estupefacção e já ela se jogara ao chão, de joelhos, numa prece que vos descrevo sussurrada, uma ladainha em que abria e fechava os braços como se oferecendo-se à cruz iluminada quando, num repente, tirou pela cabeça o camisolão que envergava e pude ver-lhe as costas, mais as costelas que as costas, os vergões, alguns ainda ensanguentados ou apresentando chagas purulentas, que me causaram um asco que ela não viu por estar agora debruçada sobre um tapete tal qual se colocaria um árabe orando na direcção de Meca e nisto, virando-se para mim e descortinando finalmente o ar nauseabundo que eu apresentava:

- Não me julgues, sobretudo não me julgues mal, sou virgem, toma-me se o desejares, quando e como desejares, mas jamais esqueças, a minha virgindade é sagrada, sou noiva do Senhor, sou mártir e escrava deste amor platónico.

Virou-se para mim com os braços cruzados sobre e escondendo o peito, e vi na sua nudez uma magreza tentadora, recheada de curvas que o incenso fazia ondular na minha mente.

De Fevereiro a Julho daquele ano posso afirmar ter vivido como um selvagem, um selvagem eremita, que, embora respeitando os cânones e os limites por ela impostos se deliciou e a deliciou sodomizando-a a desejo e a pedido, de tal modo que, como que conduzido pelo maligno, me tornei horrivelmente íntimo das mais abjectas práticas de BDSM, a ponto de, no prazo legal ter esquecido o concurso de professores e ter ficado sem concorrer nesse ano. Envergonhado, extenuado, magro que nem um cão, acedi confessar-me a um colega e amigo padre, que não só me absolveu como integrou no Colégio Salesiano onde durante três anos leccionei e esqueci a experiência absorvente daquela descida aos infernos.

Olhei-a, ela olhou-me, corada, abanámos as cabeças em simultâneo num leve cumprimento e nada dissémos um ao outro. Separámo-nos sem nos olharmos sequer. Pelas gentes que a acompanhavam pertencerá aos círculos da Cáritas, Cruz Vermelha, ou Banco Alimentar. Colega da Jonet, deixei-me sorrir involuntariamente.

O Senhor a proteja. A ela e a mim.