terça-feira, 10 de novembro de 2015

287 - CARMENCITA BONITA .....................................


Facto um; Eu chegara atrasado ao café, entretanto já um magote de amigos tomara posições para assistirmos às corridas de motas na Tv e ver a prestação do português Miguel Oliveira, que venceu na sua categoria somando a essa vitória o segundo lugar no campeonato.

Facto dois; Em Valência e nesse mesmo dia, Rossi partiria do último lugar da grelha de partida por razões de todos conhecidas, e esses dois factos conjugados manteriam a malta animada, a cerveja a correr, as gargalhadas soltas e as expectativas ao rubro.

Facto três; Sentei-me no lugar que me tinham reservado e enquanto a coisa aquecia fui debicando o jornal, para ver as grandes já que às pequenas era impossível dar atenção no meio de todo aquele arraial. O Rui Coins o Sousa e um outro até equipados vieram, a rigor, boné e tudo, para colorir a festa, e nisto alguém se encarregou do comando para aumentar o volume e dar mais uma pitada de realismo à coisa.

Facto quatro; Estava eu absorto com tanta autenticidade e colorido quando a realidade se impõe e me arranca bruscamente os olhos do jornal e da Tv, deixando-me extasiado e admirando o estilizado de um sapato de salto em agulha cuja cor, forte e espraiada por todo ele me abanou de supetão, uma cor como aquela, viva, sensual, sensualíssima, lúbrica, não me era dado ver desde que a vira há muitos anos na Carmem, vestindo uma marca que eu nem conhecia, familiarizado que estava com a Wonderbra, a Triumph, a Honda, a Suzuki, a Kawa e a Yamaha, desde nem me lembra já quando, talvez miúdo...

Desta vez não era nada disso, apenas a cor começando no sapato de salto exagerado, altíssimo, onde se anichava um pé libidinoso, escultural, cujo peito o sapato deixava quase totalmente descoberto e terminando em unhas na mesma cor e tratadas, cuidadas a rigor, como se um artista se tivesse debruçado sobre elas. Olhei em redor, receoso de que alguém se encontrasse dando-me atenção e só depois me concentrei naquele par de sapatos e naqueles pés, pois já uma vez vira com atenção um par igual, ou cuja perfeição estaria muito próxima, voluptuosos, e sobre os quais me detivera, observando-os de modo minucioso e concupiscente, aplicando-me no branco puro do mármore e na pureza das formas a cuja pose o artista incutira uma extraordinária leveza, escultura talvez ainda possível visitar e ver, admirar, no museu desta minha querida cidade.

Mas hoje, neste dia de festa, apenas aquele pé lograva captar a minha atenção, aqueles pés de alabastro, lascivos, bamboleando ao ritmo da descontracção dominical num movimento pendular e sensual que uma fina presilha rodeando o tornozelo não obliterava, antes acentuava, tornando-se impossível ante o contraste com essa fina tira ignorar a pele branca e suave de um tornozelo esgueirando-se em linha harmoniosa desenhando a magra barriga da perna, impecavelmente depilada, quase luzidia, lustrosa, macia, acetinada mas firme, não musculada, bem delineada, harmoniosa apenas, ou sobretudo, e tão melodiosa que o joelho um enlevo, sem uma covinha, sem um risco, sem uma cicatriz, sem um alto, ainda levantei o braço da cadeira para dar uma pequena cotovelada e um sussurro ao Flor;

- Florival olha-me aquele par de pernas ! Divinal !

Mas no último momento contive-me, não se incomodam os deuses com brejeirices, no caso a deusa, e que pensaria ele de mim ? Ele e ela, e todos quantos se apercebessem…

Verdade verdadinha é que nem a luta na frente da corrida me distraía das agulhas, do pé divino e da divinal perna, canela, joelho sem mácula, registe-se o pormenor por não ser despiciendo, de somenos importância ou relevo, e aos poucos toda aquela imagem sentada à minha frente balançando o pé, balançando a perna, que gradualmente e na razão inversa da razão em que me perco se tornou imaculada a meus olhos e nem a gritaria me acordou pois já nem os ouvia;

- Miguel Oliveira na frente ! Força campeão ! Dá-lhe gás ! Mostra-lhes como és ! Como somos ! Aperta com ela ! Ela a máquina esclareça-se …

Só muito mais tarde viria a saber a novidade, o Miguel vencera o grande prémio, a KTM estava eufórica, para além disso o portuga subira ainda ao lugar de vice-campeão no campeonato da sua categoria, a manhã tinha sido entusiástica e eu nem dera por ela, mas por ela sim, divinal, imaculada naquela saia curta a condizer, tal qual a Carmencita que adorava conjuntos e a quem nunca vira duas peças que não casassem, enfim, gostos não se discutem e cada um tem os seus e as suas manias, as suas pancadas, e nem o alarido por o Rossi ter perdido me arrancou da abstracção ou o berreiro ao aplaudirem Jorge Lorenzo, pedrado que estava, fixado que estava nos meus pensamentos e naquela coxa sublime, certamente torneada por Deus, não me convencem que um simples mortal seja capaz de tal, de obra tão bela e quanto mais a perna balançava mais eu, entorpecido, me deixava carrear para um mundo onírico onde ninguém apostaria encontrar-me ou não estivesse acordado, tudo porque o pêndulo que me prendia como um relógio de cuco me submergia em inconfessáveis pensamentos, como se estivesse ligado a uma roda dentada em que, a cada movimento um avanço no mecanismo e eu, automaticamente vencido e arrasado por tamanha beleza me deixasse ir, vogando ao sabor das badaladas de um tempo que para mim deixara de existir, deixara de contar no momento em que o brilho diamantífero da fivela daquela presilha naquele sapato calçando tal pé me chamara a atenção, me prendera a atenção, me bloqueara o pensamento, me fixara o olhar no turbilhão de uma galáxia em que eu, orbitando o sol, esperava em cada elipse do balançar do astro no cosmos ver o que já antevia grudado que me encontrava nas inimagináveis imagens do Hubble e na beleza estonteante dos pilares da criação, cuja cor se confundia com o resto do conjunto, com a saia curta, a blusa justa e escorreita, nem ousei levantar os olhos, não se olha Deus de frente, nem Deus nem os santos nem Nossa Senhora a quem, como ante esta divindade só nos cumpre ajoelhar.

E repentinamente a lembrança da liberalidade do Papa Francisco, pergunto-me se estarei a seus olhos livre de pecado, ainda que navegando em pensamentos que nem me atrevo a confessar-vos à vista daquela coxa, mais antevista que vista, despertando em mim os melhores dos meus sentimentos, o amor, a ternura, a compaixão por mim mesmo, a piedade por este desvario momentâneo tão raro em mim, eu que me considero um pilar da sociedade, um exemplo cívico de probidade para a comunidade, e quando num repente aquela santa descruzando as pernas se levanta um relâmpago atinge-me em cheio, e por um milésimo de segundo o céu envolve-me e absolve-me numa volúpia inacreditável que nem ouso sacudir prolongando o gozo de tal aparição e deixando que o torpor me embale pois me foi dada a certeza de que o menor dos meus pensamentos e impressões estavam certos, porque sim, aquela cor dominava, é então que me envolvem anjos e querubins, ouço trombetas e cornetins, a alma no firmamento, pairando absorta no meio dos mortais que, aos tropeções e encontrões me arrancam deste sonho sonhado, sem delicadeza ou respeito como se embriagados com os resultados do derby.

- Foste mamado Baião, acorda pá ! O Rossi levou uma banhada ! Viva Lorenzo ! Viva o rei !

E lentamente, levado de arrastão por aquela turba prenhe de arrebatamento e paixão, abandonei os meus pensamentos, abandonei a Triumph, a Wonderbra, o vencedor era Lorenzo ao comando de uma Yamaha na categoria rainha e na 3 o compatriota Miguel Oliveira, vice-campeão do mundo na sua classe e para o ano guindado à categoria 2, isto promete, olho com inveja o entusiasmo desta gente e por um momento lamento não ter visto as corridas. Para o ano há mais e se o tempo ajudar pegarei na minha Suzuki e uma vez mais rumarei a sul, Puerto de Santa Maria, Jerez de La Frontera, divina Espana… Será divinal …