segunda-feira, 21 de outubro de 2019

618 - O DÉCIMO PUNHAL, by Maria Luísa Baião *



Fui ao cinema ver fitas. Vi jovens muito (a)normais, algumas meninas bem bonitas e um lançador de punhais. Fanática de cinema, logo ali lembrei com pena tempos não longe demais... Outras eras... Em que pessoas, não feras, nos abriam horizontes. Foi assim que lancei pontes e me levei a lembrar, roubando ao passado distante imagens lindas de encantar e que revivi num instante.
Vi uma fita dezasseis em que gente, que não reis, consigo se confrontou. E c'os medos amealhados  se viram então contristados, enredados em enleios, confundidos, aturdidos cos possíveis caminhos a que levam os anseios. É que entre sonhos e desejos, vai um imaginário de ensejos a que muitas não resistem, outros apesar disso persistem e poucas há que desistem.
E c’a memória girando ao cinema fui voltando até à fita trinta e cinco. Não foram precisos tantos, dez, apenas dez punhais puseram pontos finais num império de desvalidos que, antes de perder os sentidos se afundaram, imortais, no mistério desses punhais de um velho baú saídos.
Uma vez subido à cabeça o sentimento vazio do alcance do poder, não se portaram diferente do que fazem muitos eleitos quando pensam que são gente. Quais D. Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança é vê-los, prometer hoje abastança, no dia seguinte temperança. É ouvi-los gritar bem alto à moirama, sabendo nós de antemão que se esconderão na cama quando tudo der para o torto.
 Entre um destes vivaços e um morto bem parecido, prefiro na certa o falecido, não chateia, não refila, não contesta nem protesta. É de longe mais simpático e capaz até, com ar enfático de me gabar atitudes. É que estar morto e bem morto pode ter muitas virtudes, entre as quais, não sendo demais, friso tempestades tais, potestades celestiais que na certa não provoca nem levanta, mesmo quando se agiganta.
Mas voltando às chinesices daqueles dias felizes que a fita atirou p´ro ar, é de bom tom recordar os desígnios do amar que nos podem mesmo levar ao perder, à perdição. Vi isto com os meus olhos, num cantinho bem espremido ali à Diogo Cão. E entre gemidos e ais, os amores desafiantes da cegueira dos amantes os lançaram por disputa de quem contra si mesmo luta na vertigem do abismo...
O filme acaba como um sismo,  em que o décimo punhal, põe fim ao amor fatal, à traição e à razão de quem ama amando mal. O desafio, o abismo e a vertigem de quem julga ser seu amor caso único, um primor, alvo de dádiva virgem.
É um punhal na garganta (não nas costas) que coloca fim ao caso mas não mata ali a esperança. Não sendo até por acaso haver gente bem feliz por tal não lhe acontecer. Não que o não possam merecer, pois arriscam por um triz, devido à diferença notória entre o dizer e o fazer, que não estejam um dia cobertos do branco pó, cor do giz, com que tapamos a escória.
O filme termina terminado. Arrumado no baú já mencionado, pronto para outra partida, pronto para outra viagem. De viagem andou o autor, premiado nessa Europa, pois por cá como é já hábito, o mais a que pode aspirar é levar c’a bota da tropa.
Vítor Moreira se chama, o autor da fita que inflama sendo eborense de gema. Talvez haja já quem o tema por ser revelação latente. Que ele existe o sabe mais gente em Veneza e de certeza noutras cidades mais belas que, às cautelas o premeiam, não vá o home envaidar-se ou subir-lhe o sangue à cabeça.
Por cá vai fazendo uns biscates, pois as verbas não dão para dislates, como aquela fita com uis e sem imagens reais que custou a quem dá ais, os impostos anuais de quem leva a vida dreta sem ter que fugir aos chuis.
                     
* by Maria Luísa Baião, escrito ‎na sexta-feira gelada e fria de ‎14‎ de ‎Março‎ de ‎2003. Muito provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.