sábado, 31 de janeiro de 2015

226 - AMORAS E AMOREIRAS …….….....…………


Os olhos desviaram-se-me ligeiros para as pernas nuas da jovem condutora, por isso vi mal o braço da companheira viajando a seu lado, aliás os meus olhos percorreram em segundos todo o carro, que quase parou debaixo da amoreira para evitar bater no ressalto dos carris. Nesse curto lapso de tempo registei uma miríade de pormenores, o braço bronzeado, os curtos calções da condutora e a pele extraordinariamente branca das coxas, que me distraiu.

Se ainda me lembro d’alguma coisa é da particularidade daquele braço, e só por os últimos quatro algarismos condizerem com o ano em que nasci, não fora isso e nem teria fixado decerto um número tão extenso. Observava eu num relâmpago e com minudência tudo que se me atravessava sob os olhos quando o Tonicha gritou:

- Este é um Alfa Romeo !

- Francês, olhem a matricula ! Rematei-lhe…

Por isso num instante esqueci as coxas brancas, o número longo tatuado no antebraço da francesa e quedei-me, admirando nos últimos segundos o vermelho vivo do Alfa Romeo, as linhas esguias e baixas, surpreendido por ver o vidro dobrado da capota recolhida, que afinal era de fino plástico explicaram-me posteriormente, ainda recordo a matricula, vermelha como o carro, e uma mistura de algarismos e letras prateadas sumindo-se num roncar estrada fora, o pensamento alongando-se-me com o ir do carro, quem serão as madames, donde virão, pra onde irão ?

E estendido ao comprido sobre o tronco ou melhor o galho da amoreira, quase sobreposto à estrada, imaginava vidas indo e vindo, vidas ocupadas, vidas com fito, com partida meio e fim, ou chegada, enquanto iludíamos o tempo e as horas comendo as amoras, que ao menor descuido nos desenhavam mapas nas camisolas, ou nos calções, já curtos para a infância que se despegava de nós como a pele das cobras que volta não volta encontrávamos nos campos entre duas pedras ou entre estevas ou giestas.

A pulsão da vida desviara-nos dos ninhos da passarada para o mirante da amoreira junto à estrada quando já nem bichos-da-seda criávamos, vendidas que foram as caixas, os bichos, os casulos, tudo, desvendado que estava o segredo da seda e das metamorfoses do bicho outros mistérios nos chamavam, outros segredos por desvendar acicatavam em nós o desejo e a busca numa demanda cuja tensão, esticada entre a infância que se perdia e a adolescência que dia a dia se ganhava, vibrava em nós e nos preenchia de acne, ou de impensadas atitudes, guerras, brigas e desafios, numa constante comparação e medida de nós mesmos,

- O Cristóvão já deita aguadilha !

Assim como se deitar aguadilha fossem divisas, ou um posto, ou uma carreira a que se seguiria naquele ritual iniciático a langonha, que o Barreto já tinha e a quem, aliás, a barba despontava em cada borbulha do acne.

A copa e os ramos da amoreira eram rampa de lançamento de querelas e quimeras, não raras vezes dali lancei o pensamento, como quem deita um boomerang, ou melhor, um papagaio ao vento, dando-lhe guita até que algo ou alguém me forçasse a puxar-lhe as rédeas.

- Olha um boca de sapo ! Alemão ! Topem aquela matricula !

E na esteira do boca de sapo as conversas cavalgavam a técnica, a hidráulica e a aerodinâmica, as suspensões, ainda não havia airbags e nem sei por que carga de água as conversas iam invariavelmente parar a amortecedores, a conforto a mamas e a sexo.

Andaríamos pelos treze, catorze, quinze anos, o sangue fervia-nos nas veias e nas guelras se é que me entendem, a amoreira era o areópago onde a nossa instrução sentimental e educação sexual davam os primeiros passos.

Assuntos como um filme visto ou contado por algum dos mais velhos, experiência com prima, amiga ou vizinha era assunto dissecado exaustivamente. A esta distância rio-me da nossa ignorância, maior que a soma da insolência de cada um. Baralhos de cartas, fotos, revistas, desenhos, pinturas ou livros de mulheres nuas tudo era para ali canalizado e objecto de grande reflexão e debate.

No fim uma geraldina, tudo nas pívias para nos  acalmar a febre, cada um cuidava de provar a si mesmo e aos outros do que era capaz, e aí se via quem já, e quem se vinha com mais força, mais deleite, maior quantidade, mais longe, ou quem somente se ficava pela aguadilha.

Por vezes passavam pegadinhos um Chevrolet, um Cortina, um MGB ou uma arrastadeira igualzinha à do senhor Assis que era chefe dos bombeiros, cada um vibrava com as suas próprias preferências, e era sintomática a diferença entre nós, havendo quem gostasse delas cheiinhas, de seios grandes, ou magrinhas como as cobras, mais flexíveis, não que malabarismo, atletismo ou gimnastica fossem predicados ou gostos nossos, tudo tinha mais que ver com os contorcionismos das nossas mentes jovens e sonhadoras. No fim destas particularidades vinham as peculiaridades de cada um, este era bem dotado, aqueloutro já pintava, quer dizer já tinha pelos púbicos, fulano vinha-se uma, duas, três ou quatro vezes seguidas num quarto de hora, beltrano assim, sicrano assado…

Depois cresci, fiz-me homem, uma vez na hora H ainda fugi da Nani, não dessa que pensam, de uma outra, esqueçam, comecei a ler, a ir ao cinema e a bem dizer foi aí que se me iniciaram as revoluções de consciência.

Aquele número tatuado, aquele braço, seria aquela mulher a filha sobreviva da escolha de Sofia e que havia tantos anos me impressionara ?

Nisto um melro mais atrevido pousou no extremo afastado de um galho, decerto para depenicar as amoras maduras pois ali as não alcançávamos, o Hernâni fez sinal para que nos calássemos, ninguém mexeu, apontou a fisga, esticou os elásticos, largou. O melro nem soube o que lhe aconteceu, caiu no chão sem um pio.

Que espécie de gente será capaz de atitudes assim ?