quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O SABOR DA MAÇÃ * homenagem a Luísa Baião




171 - O SABOR DA MAÇÃ*

Homenagem a Luísa Baião



              Conta-se que Sir Isaac Newton deverá a sua fama e as suas iluminadas teorias a um tio, de nome William Ayscough, que, impossibilitado de ter descendência, por causa de um rebentamento derivado da guerra civil que por aqueles anos assolava o país, se recolheu a Woolsthorpe Manor, onde Isaac nasceu, entretendo-se a arrastar a asa à viúva e mãe do petiz, petiz que estragou com mimos.

Toda a sua família vivia há muitas gerações na pequena aldeia de Colsterworth, onde esse tio era amante da observação de estrelas, não esqueçamos que a polémica obra de Copérnico “ De Revolutionibus Orbium Celestium", tinha sido publicada em 1543, tendo sido bastante desenvolvida pelas obras posteriores de outros astrónomos como Kepler e Galileu, o que justificava a então moderna atracção e observação da abóbada celeste e dos seus astros. O desenvolvimento do telescópio, que Galileu muito aperfeiçoara, permitiu tal desiderato.

Para além das estrelas esse tio era apaixonado pela magia, mais propriamente por malabarismos, sendo exímio prestidigitador, pelo que terá inoculado o bichinho da maçã no petiz seria ele ainda muito novo, presumivelmente numa das noites limpas em que caminharia com ele às cavalitas por entre os pomares de macieiras que atapetavam o Lincolnshire, iluminados pelas galáxias de estrelas que sobre eles derramavam a luz e às quais o tio William estenderia uma mão para, num passe de magia, fazer surgir entre os dedos uma suculenta maçã que Newton se apressaria a esfregar nos calções e a trincar com afinco e denodado prazer.

 Esta é a verdadeira génese da historieta que o dá como pensador ou dorminhoco debaixo de uma macieira da qual se terá desprendido, e caído para baixo, e não para cima, a maçã que lhe terá inspirado, segundo se diz, a celebérrima teoria ou lei da gravitação e da atracção universais, vulgo lei da gravidade.

Ter-lhe caído uma maçã no toutiço não passa de anedota, o deslumbramento de Newton surgiu do desafio do mistério, dos céus estrelados e da magia do tio William, o resto são tretas para esconder que foi um aluno aplicado e que se não conformou à sapiência dos mestres escolásticos que com resignação aturou e sofreu.

Os tempos que correm “heroicisam” o sucesso fácil sem sacrifício e sem dor, o que consubstancia uma mentira maior que a lenda da maçã que todos tanto admiram.

Esta nova versão, nova história de Isaac Newton, foi-me contada há séculos por quem em simultãneo me disse adorar o que eu dizia, tanto quanto detestava o que escrevia visto eu ser, a escrever, um desastre que a tirava do sério.

Verdade que a minha conversa a virava do avesso, o meu romantismo enlouquecia-a, tanto quanto a exasperava e desesperava a desconexa desarticulação de tudo quanto eu escrevia.

Eram outros tempos, não havia hotmail, nem msn, nem skype ou facebook, eu dava-lhe a volta aos fins de semana com os passeios e os meus ditos românticos, para depois estragar tudo com uma ou duas cartas que durante a semana lhe enviava da escola de fuzileiros onde a minha vaidade e desejo de ser “Rambo” me levaram. (1)

Aquelas criticas tocaram-me fundo. Tocaram-me o amor-próprio.

Abracei-a para esconder cara e a vergonha e, disfarçando, logo ali jurei ensiná-la a amar, ela ripostou jurando que havia de ensinar-me a escrever por mais burrinho que eu fosse.

Ambos cumprimos os votos.

Amo-a apaixonadamente desde então e nem uma única vez pensei que pudesse ser de outra forma, ela conseguiu pôr-me a escrever decentemente, e hoje parece-me ser a única coisa que sei e faço bem feita pois ocupei metade da minha vida ouvindo-a e lendo, seguindo-lhe os conselhos, aprendendo a distinguir, a ajuizar, a identificar e catalogar géneros e tendências, correntes e estilos, estruturas e esquemas literários, pelo que muito penei, sofri, não tenho um dom, não fui abençoado nem nasci assim, pré dotado, predeterminado, há aqui muito trabalho que se não vê, esta coisa não caiu do céu como a maçã de Newton, ora agora já perceberam o meu intróito ?


Eu fora um estoura-vergas quando jovem, com ela assentei e mudei, de meus pais havia de ouvir, anos mais tarde que


- A Luisinha fez do meu Berto um homem


A homenagem a quem a mereça, seja para as letras seja para o amor seja para a vida, muito devo a esta insubstituível companheira que Deus colocou no meu caminho. Às vezes nem sei que de mim seria sem ela, sem o seu bom senso, a sua entrega esforçada aos objectivos que traça, ao seu exemplo.

Persegue apesar do ar dos tempos os mesmos princípios éticos que nela me cativaram, cultiva uma supina seriedade, um baluarte a que me encosto amiúde, comedida, tão comedida quão impetuosa na defesa dos seus valores e ideais, e continua bonitinha tal qual como a achei desde a primeira hora. Sou um sortudo. Fui sou e continuo sendo um sortudo, se querem invejar-me invejem-me a companhia, a companheira, a mulher a quem tudo devo e tudo sou. Há muito devia ter tornado público este desabafo, este reconhecimento, não o fiz mais cedo por lhe reconhecer a modéstia, não quero contudo perder a oportunidade de o fazer enquanto é tempo.

Devo-lhe isso.

Claro que tive igualmente professores a quem estou reconhecido, a par de outros a quem nem tanto, ou mesmo nada, a vida é assim, eles sabem, aqueles a quem devo obrigados sabem-no, os outros já me esqueceram, como eu a eles. **

 Mais que a bem escrever foi ela quem me ensinou a cortar, metade ou mais do que escrevemos é palha, dizia-me com os olhos vivos que eram os dela sempre que me olhava, contar e cortar eram para ela o alfa e o ómega que eu teria que alcançar. Pouco ou nada haverá hoje a contar sobre Marilyn Monroe sussurrava-me, mas são incontáveis as histórias que podemos imaginar o seu porteiro teria para nos contar não achas amor ?

Por vezes temia esse “amor” que sussurrado me soletrava, esse amor encerrava sempre um desafio, contar uma história não é para qualquer um ciciava-me, se nada tiveres para contar ou não o souberes fazer fica calado.

Confesso ter chegado a temê-la.

Claro que este temer se inscreve, e circunscreve, na arte da hipérbole pois também ela foi minha mestra nesse misterioso desenhar, e quem, estendida numa toalha nívea, riscando na areia com o indicador entrelaçados corações, me instava a completa-los atravessando-os com uma flecha dourada e a Cupido sonegada.

Essas tardes com ela eram música celestial, ainda são, se bem que as alvas manhãs e as cabalísticas noites as tenham minimizado. E, lendo numa quietação o que eu escrevia, instruía-me na melodia da composição, na riqueza e diversidade do vocabulário da nossa língua, nas rasteiras do excesso de conjunções, na ilimitada potencialidade do entrosamento realidade / ficção, na desmesurada responsabilidade da opinião, e aliciava-me no embriagante desafio de opinar precipitando em mim o subtil maravilhamento que é dar vida às coisas, criar, qual malabarista, ou prestidigitador, substância a partir do nada, de meras palavras, e, com um sorriso, disse-me um dia


- A vida é um palco, sê tu


Fui, sou


* Na imagem, livro "Catarina ou o Sabor da Maçã", de António Alçada Baptista, quase 90 páginas de nada, espremidas não dão nada, não consegui ir além da 20ª… é a prova provada que não basta escrever ou saber escrever, é preciso saber contar, dar substancia, dar vida às palavras, enfim, 13 euros de completa vacuidade … este desabafo, este texto, foi escrito no momento em que, desolado, joguei ao lixo o livro do meu amigo António Alçada Baptista …

(1) Na altura seria outro qualquer super herói que já nem lembro, mas a imagem que preenchia o imaginário da juventude de então e que pretendo dar-vos é essa mesma, a de um irreverente justiceiro aventureiro como “Rambo ou Indiana Jones”.