terça-feira, 3 de março de 2015

228 - ROCK AND HIS GIRLFRIEND ..........................

             Eu tinha onze, doze e treze anos e desta vez não me resta a mínima dúvida. Lembro-me como se fosse hoje porque ela era a mais bonitinha de todas. Bem, havia uma outra mas não me marcou de igual forma, tanto que só vagamente a recordo e até o seu nome se me foi.

À Lourdes Anacleto não, nunca a esqueci, pra ser franco inda hoje páro para vê-la passar se comigo se cruza, ainda conserva uma carinha laroca, é quase tão linda como a minha mãezinha.

Dele não posso dizer o mesmo, até por ter surgido quando a minha devoção estava já toda concentrada nela, para além de não lhe achar graça nenhuma ao nariz adunco, que ainda permanece como se fosse uma imagem de marca, um nariz demasiado grande pra cara tão pequena. Porém não era isso que nos assustava, que me assustava, antes o seu grau de exigência, a sua atitude decidida, no entanto confesso ter-me cativado, ainda hoje vitupero gente hesitante, ignorante, ou que modifica a opinião ao sabor do vento. Com ele nunca havia dúvidas, afirmava-se de forma clara e imediata, era opinioso, não perdia dias a pensar num qualquer assunto e agia em conformidade e com coerência. Gostei logo dele, era como o meu paizinho, que detestava bandeirinhas ou vendidos.   

Professava francês, então a língua prima da diplomacia, do amor e da cultura e fazia-o magistralmente (era um magister) still today my french supera largamente o inglês e confesso que foi com agradável surpresa e espanto que há semanas dei com ele na esplanada que frequento.

Afinal somos vizinhos, reconheci-o logo, aquele narigão e o ar alegre e contagioso são inconfundíveis, os mesmos modos precipitados, a mesma urgência no falar, os mesmos cigarros comidos d'umas mãos que nunca param. Um destes dias fá-lo-ei, mas desta vez a surpresa não me permitiu ter-me apresentado, identificado, ou talvez por jamais ter sido simpático para mim, ou para qualquer outra pessoa, não o era, nunca o foi, enfim, lá terá sido para quem ele quis. Quem imaginaria que vizinhos, o Roque pelas minhas bandas, foi assim que ficou conhecido entre nós, nem doutor nem professor, nem sequer senhor professor, só Roque, tão curto e seco como a demora de uma resposta ou decisão sua.

Mas vê-lo foi revê-la e lembrá-la, foi recordar os tempos em que desejei para a minha mãezinha um amor assim, como o que ela viveu, como o que eles viveram, como o que eu vi nascer e crescer quando repentinamente, ela mais apressada e a chegar à tangente, antes que a campainha dos feriados a apanhasse por ter ficado até ao último minuto na sala dos profs, ou quando trocou as soquetes pelas meias de vidro, ou os sapatos rasos pelos saltos de agulha. 

       Trocara o ar juvenil pelo vermelho forte dos lábios e afivelara um sorriso permanente, o olhar passara a ausente e o ouvido estava sempre lá fora, lá longe, desatava em corrida mal tocava à saída e de novo para a sala dos professores onde atestava o ar alegre com que nos bafejava, toda ela quase tão criança como nós, de feições miudinhas, a cintura estreita, as pernas esguias e fininhas rematadas atrás por uma costura negra que as riscava de alto a baixo, sim, quase tão elegante e bonitinha como a minha mãezinha, diferente somente o cabelo, nela curto e encaracolado e na mãezinha longo e ondulado.

Um dia foi finalmente desvendado o segredo de tanta felicidade, o Roque desenrolando-lhe ternamente um caracol entre os dedos. O facto foi trovão que ribombou em segundos, aquela paixão era um truísmo, estava desvendado o mistério, toda a escola rejubilava parecendo então mais clara, sim foi em Stª Clara, agora mais caiada, mais branca, mais florida, mais invadida pelo sol, mais acolhedora, foi tal a paixão que os admirei, invejei e abençoei, e enterneceu-me tanto que desejei uma igual para a mãezinha.

A vida ensina-nos cada coisa…

Não somente a matemática e o francês a Lourdes Anacleto e o Roque me ensinaram, ensinaram-me vida, ternura, amor, dedicação, entrega e exemplo. Confesso não ser muito bom em contas e que o francês de nada me vai servindo por estar caído em desuso, mas que dizer do resto Senhor ?

A vida Senhor ?
Não lha devo também a eles ?

Ultrapassei a maturidade, o Roque ficou velho, e meu vizinho, nem imaginará como me tocou, não imaginarão, nem ele nem ela, a quem vi passar de jovens a casal adulto, que testemunhei como durante um período ou em menos de um ano transformaram a rotina em felicidade e contagiaram toda a escola, toda a comunidade educativa como agora se diz, ou antes todo o agrupamento escolar. Deviam ir à merda com estas novas classificações adjectivos e substantivos, tudo trampa caduca, perene mesmo só o exemplo daqueles dois, inquietos por chegar á escola, inquietos por estar na escola, inquietos por sair ao fim do dia, inquietos por se fortalecerem e guindarem ao altar, ávidos e imbuídos de uma inquietude virulenta e benfazeja que a meus olhos os tornou imortais.

Que será feito dela que há anos não vejo ? Ele por aqui, não acamado mas pouco faltando, e ela ? Que será feito dela e daquele corpo franzino que o amor fortaleceu e elevou quase à eternidade ? Ela que tanto desejei tivesse sido minha mãezinha, ela cuja felicidade desejei para a mãezinha ?

Quando comecei a namorar não tive aulas, nem explicações, nem catequese. Via cinema, via muito cinema, muito dele francês, quase todo francês, contudo quando foi a sério desenterrei o exemplo daqueles dois, da Lourdes Anacleto e do Roque, assim mesmo, sem mais adjectivos ou substantivos, Roque.

O exemplo daquele par guiou-me no caminho escolhido para ser eu mesmo e não estou arrependido, aquele exemplo enterneceu-me desde a primeira hora e mais que todos os filmes vividos. Inda hoje não sou muito bom nas contas mas faço-as, já não falo muito bem francês mas ainda o leio e traduzo correctamente o que me desenrascou na vida muito mais que satisfatoriamente, não mo ensinaram mas foi com eles que ternura, amor, carinho e meiguice ganharam em mim significado.

A vida ensina-nos cada coisa…

E dá voltas do caralho não dá ?