sábado, 9 de abril de 2016

333 - ANA BOLERO, 1955 – 1995 - R.I.P. :( :( :( :( ((((


Se dissesse que não notava a atenção desmesurada que ela atribuía aos cactos estaria a mentir-vos. Mas não a todos os cactos, aliás somente àqueles bem raros por estas paragens e aos quais ela dedicava uma admiração inusitada, aos altos, cactos altos, ante os quais pasmava. Eu reparava e entendia, fazia-me despercebido pois não queria entrar em pormenores com um nada pequeno pormenor que fingia nem ver, nem perceber, nem notar, porque me recusava a entender-me a mim mesmo.

Nem sei bem como a coisa começara, nem me lembro sequer como foi que me deixei arrastar. Para ser sincero nem posso dizer que tenha sido arrastado, já teria uns dezasseis ou dezassete anos, e hoje admito-o, não sabia nada, aliás não sabia nada de nada, mas com essa idade quem não se julga um sabichão das dúzias ? Ela rondava os vinte, portanto muito mais velha e mais sabida do que eu que, embora tivesse sido beneficiado com a aprendizagem proporcionada pelas minhas primas, ao pé dela e em certas coisas era um leigo. Contudo não fui arrastado, as hormonas falaram mais alto e ainda que não lembre bem o que lhe atirei como provocação, a resposta dela ecoa no meu espírito como se tivesse sido dada ontem;

- E o que têm as outras que eu não tenha, dizes-me ?

Haja honestidade, porque em boa verdade tinha, realmente tinha, nem demorámos a tirar quaisquer dúvidas. Foi um período empolgante, em especial quando passou a olhar-me com a mesma admiração com que mirava os cactos mais altos, que olhava meditativa, com reverência. Eu não me sentia um cacto, mas sentia-me um gigante, grande, enorme, alto, o maior. Era já espigadote, desde muito cedo fui alto, mas a questão não era essa, era o meu ego, percebi isso muito depois, quero dizer, quando já era tarde, tarde demais para mudar fosse o que fosse. Tive que admitir que a Ana me manobrara, bem, manobrara não teria sido, eu também fui culpado, eu também gostava da coisa, eu também queria, assumir que ela me manobrou é esquecer que também a procurei, a desejei, a fiz minha. Outros dirão que ela me fez seu, pontos de vista, opiniões, não contesto.

Não sou um salta-pocinhas, não sou um pinga amor, prova disso é estar prestes a comemorar trinta anos de casado sem um sobressalto, e conheci a Luisinha logo após o desaparecimento da Ana, sou um tipo estável, fiável, com carácter, com personalidade, bom pai, e aqueles tempos de delírio com a Ana foram excepção, eu andava enfeitiçado, e aquela tatuagem dela no ombro direito, para ser honesto não foi só a tatuagem a culpada, toda ela era um bibelot, como diríamos agora, uma Barbie, uma boneca, e como eu lhe dizia brincando, não era uma viola nem um violão, era uma violinha, um cavaquinho. Foram tempos inesquecíveis, muito eu aprendi com ela e alguma coisa lhe devo ter ensinado.

Foram meses muito curtos mas intensos, sim porque acho que nem um ano andámos juntos, foram dias extremamente intensos, foi um tempo em que para além de tudo que vos conto eu me debatia com os preconceitos, e nem sabia que os tinha, depois, repentinamente, eles a barrarem-me o caminho, eu num dilema, eu querendo avançar e eles reprovando-me a conduta, tempos terríveis esses, como se ultrapassa um preconceito ?                                  
                             

Muitos dirão que com amor, é o amor sentenciarão outros, e realmente o amor preenchia-nos os dias, todos os dias, todo o dia, a bem dizer o problema nem foi esse, não foi a rotina, nem sequer o facto de, por causa dela eu ter feito tudo para atrasar a minha incorporação, a tropa que esperasse. Não, minto, foi antes, foi pelo S. João quando da vinda do Circo Cardinal, onde ela fez novos amigos do pé para a mão e quase me esqueceu de um dia para o outro. Não digo que a rotina não tenha tido a sua quota-parte, mas foi sobretudo o circo quem nos afastou. Nunca soube onde desenterrara ela os dotes que depois tive que reconhecer-lhe, montava uma bicicleta de uma roda só melhor que eu uma de duas ! Fazia-o mesmo que o assento estivesse a três metros do chão ou dos pedais ! Uma coisa impressionante e que, a somar ao vestido de lentejoulas com que passou a actuar a enlouqueciam completamente.

Entre as matinés e as soirées, por vezes enquanto treinava novos números com a sua trupe de ciclistas brincava comigo, que ali ficava especado adorando-a, quero dizer reinava comigo, gozava-me pegando em meia dúzia de ovos ou pequenas bolas que atirava em arco pelo ar e de uma mão para a outra, mudando-as de mão para mão sem deixar cair nenhuma ! Mas, uma vez em que pretendeu mostrar-me que passara a artista pirofágica chamuscou-me as pestanas, ia-me incendiando os cabelos e as coisas azedaram. Quero dizer, eu já andava fartinho da cena do circo e mortinho de amores pela Luisinha e, aquela cuspidela ardente veio mesmo a calhar.

Se quiser ser franco devo admitir que já andava a ficar farto percebem ? Sim, era verdade que eu devia muito à Ana, ensinara-me a conter-me, a fazer durar, a aguentar e só depois explodir, com violência, com intensidade, um relâmpago, breve mas intenso, ou de modo a ir devagar, com um fulgor menos marcante mas mais duradoiro. Então era assim, intenso e explosivo nos dias especiais e em que matávamos saudades ou precisávamos de dormir bem, calmo e demorado, saindo em fiozinho, não em jorro ou jacto, para os dias normais, o que era menos exigente e até menos cansativo. Mas não era fácil fazê-lo com uma anã percebem ? Se a beijava na boca não coiso, percebem ?  Se a coisava não conseguia beijá-la na boca entendem ? Se tentava as duas coisas dava cabo das costas, ainda hoje tenho um sério problema numa das vértebras designadas dorsal baixa, a L2, depois, como se tudo isso não bastasse vinham os problemas de consciência, o emergir dos preconceitos, evitávamos os amigos para que não fossemos criticados ou gozados, era uma situação penosa para ambos e o circo acabou por ser mais que uma desculpa, foi uma sorte, conjugados os prós e os contras, e somando a rotina que nos estava a matar, aquele amor estava condenado.

Ainda guardo dela uma foto que os anos amareleceram, parece sépia, e nas últimas semanas recebi vários pedidos de amizade na minha página duma rede social que me pareceram perfis falsos, todavia todos apresentavam uma curiosa particularidade, fotos de cactos gigantes. Redobrei de atenção e meti-me à coca, metade deles já os apaguei, eram de gentinha que quase nos mostrando as mamas vai impingindo-nos propostas de créditos tal qual as moscas cagam no écrans dos monitores, porém os restantes não eram dela. Nenhum era dela, de quem de repente me recordei e me merecia toda a consideração deste mundo. Meti-me em campo, fiz telefonemas, visitas, perguntas, montei-me na mota e desloquei-me à aldeia da família mas há muitos anos que deixara de ali viver.

- “Précure” em Estremoz, nas Quintinhas ! 

           Alguém me aconselhou e bem, porque foi lá que dei com uns ciganos que cantam e fazem malabarismos* e que por sorte se lembravam dela, que era meio cigana. Uma velha cartomante aproveitou o ensejo para me extorquir umas moedas lendo-me o passado,

- Morreu no ano em que Guterrez festejou a primeira vitória eleitoral senhor. Morreu bonita, morreu feliz, foi de repente e nunca o esqueceu meu senhor.

Jesus ! Há mais de vinte anos ! Nem acreditei.

- Se não acredita vá ver os registos, morreu aqui mesmo nesta terra de pedras brancas senhor. Um acidente numa pedreira meu senhor.

Era tarde, voltei no dia seguinte, e depois de uma manhã inteira consultando o velho arquivo de um velho jornal lá dei com a noticia, e a foto, bastante esbatida, de uma grua retirando de um lago formado numa profunda e antiga pedreira o carro cor de mármore em que ela numa noite fatídica caíra à agua. 

              Era curta, nunca se ajeitara com os pedais dos carros aquela Ana.

Paz à sua alma.