terça-feira, 29 de março de 2016

327 - HUGO ERNANO E OS PORTUGUESES ...........

         (Milo Manara - Storia dell'Umanità  Historia de la Humanidad)
                    

Não tivesse sido o choque e eu nem me teria dado ao incómodo. Mas esbarrar em quem pensamos ter um mínimo de informação e bom senso deixou-me os miolos a abanar e os neurónios em polvorosa.

A Convenção de Genebra, que de 1864 a 1949 ditou as regras das matanças entre a humanidade civilizada e que teve continuidade nas preocupações da ONU, de que são exemplo maior a limitação do uso de armas convencionais, as nucleares têm um dossier à parte, deve a sua razão de ser à matança, ou antes chacina que a batalha de Solferino, em 1859, entre franceses /italianos contra o império austríaco envolvendo mais de duzentos mil soldadinhos de chumbo provocou em gente fina, gente que certamente terá tido náuseas e sentido escrúpulos…

A matança, a carnificina ou o morticínio foi de tal ordem que gente sensata temendo que o crescendo da raiva e da tecnologia pudessem simplesmente fazer colapsar a raça humana, a ética, a moral e os princípios já andavam há muito tempo pisados e pela lama, resolveu cavalheirescamente dar razão a Descartes e encetar um movimento de consciência que pusesse termo a tal irracionalismo, movimento que cem anos mais tarde viria a culminar no que ficou conhecido na história como o século das luzes ou Iluminismo.

Instituiu-se portanto, paulatina e cavalheirescamente que doravante matar sim mas com fair play, curiosamente a indústria de perfumaria francesa, a que no mundo em volume e qualidade ofusca todas as outras, teve a sua génese e desenvolvimento de modo quase paralelo, mas isso não passa de uma coincidência curiosa que para aqui puxei somente porque o apodrecer dos largos milhares de corpos, mortos ou morrendo após uma batalha, era coisa de sensibilizar e fazer torcer o nariz mais requintado. Sim porque o pior nem eram os que morriam logo, mas antes os que trespassados por baionetas ou atingidos pela metralha dos primeiros e incipientes canhões ficavam por terra, gravemente feridos, sem rescues minimamente organizados, nem ao menos equipas de socorro ou resgate, sem medicamentos nem cirurgias, sem penicilinas nem aspirinas, nem tão pouco antibióticos. Azar de quem caía pois já sabia ficar condenado a morrer ali, com a ajuda de Deus logo, sem a ajuda d’Ele chegavam a durar oito dias, até a mazela, a fome e a sede acabarem com eles no meio de um sofrimento atroz que a poucos incomodaria, todavia, contudo mas porém largando um cheiro fétido que ninguém suportaria. 

           Até a mim que fui altamente treinado para matar e ser eficiente e auto-suficiente nesse meu mister, nem após longuíssimos meses de treino não me foi dada de imediato a boina negra de fuzileiro, não o foi sem que antes tenha papagueado de olhos fechados, de trás para a frente e da frente para trás, o regulamento de disciplina militar, em especial o regime jurídico das armas e suas munições, cuja propriedade, uso e porte no que concerne aos militares dos quadros das Forças Armadas e aos membros das forças e serviços de segurança são regulados por lei própria. Foi para mim sempre óbvio que não poderia simplesmente fazer uso de qualquer arma sem ordem, ou sem a isso ser autorizado ou até obrigado pela legislação inerente. Assim fiz e nunca deixei de ser um militar brioso, cumpridor e condecorado por actos e bravura em combate. Não fora a cena leviana (e respectiva delação) das cabeças embalsamadas nas cubatas do Mihinjo*, onde fôramos chamados para que se cumprisse a lei mas onde as coisas acabaram por dar para o torto, e eu nunca teria sido expulso de Luanda, ou sequer de Angola. É certo que a malta esqueceu por momentos a Convenção de Genebra e cortámos umas cabeças aos turras, ter jogado com elas à bola e tê-las espetado num pau acabou por ser agravante da situação, valeu-nos o facto de todos estarem embriagados com o bombástico e artesanal Marufo, o que serviu de atenuante evitando males maiores, mas tal desiderato foi culpa exclusiva do pelotão de comandos e caçadores nativos que eram os nossos pisteiros e a nossa vanguarda.


Concomitantemente não há acção sem reacção, nem violências sem consequências, interessa sobretudo não ultrapassar o legislado, sob pena de sermos enxovalhados, castigados, expulsos, sacrificados e crucificados. Matar um tipo é uma coisa, é crime, matar um milhar é totalmente diferente e dá direito a medalha de honra. Um homem é um homem, não é um bicho e portanto deve evitar portar-se ou comportar-se como tal. 

Desconhece muito boa gente que durante a guerra do Vietname os comunistas do norte se queixaram na ONU de que os EUA não respeitavam a lei da proporcionalidade, e os USA foram obrigados a emendar o seu mais recente e moderno caça, o Phantom F4, que doravante e sobre território do Vietname ficou impedido de usar quer o radar quer os mísseis que o equipavam. O moderno caça, que vinha equipado com o mais sofisticado armamento, dispunha unicamente de mísseis e rockets, cujos radares lhe permitiam reconhecer e abater o inimigo a 50 km de distância, os comunas nem sabiam quando nem do que morriam, o que era tremendamente injusto…  A ONU obrigou a combates à vista, só podiam abater-se mutuamente à vista um dos outros, o que dada as desiguais velocidades a que as aeronaves contundentes se moviam relegou os F4 para plano secundário pois necessitavam de um ângulo de manobra muito maior para curvarem devido à sua excelente e excessiva velocidade, enquanto os Mig inimigos, mais lentos, viravam como quem vira uma esquina. Ainda por cima sem radar o F4 era incapaz de fixar os alvos dos mísseis, obrigando os americanos a adaptarem nele metralhadoras e canhões. Ora desde o pós II GG que essa lei da proporcionalidade tornara mais justas e menos desiguais precisamente as “justas” (justas neste caso= as lutas).

É aqui que retornamos à vaca fria, pois foi por não ter percebido isso, ou ter estado distraído nas aulas de formação de “condicionalismos ao uso e porte de arma” que o cabo Hugo Ernano se fodeu e agora tosse… Tenho a certeza de que quando jurou bandeira ninguém lhe deu uma estrela de xerife ou o autorizou a avançar por aí como se isto fosse o faroeste. Ao contrário do que muita gente pensa o cabo não é nenhuma autoridade, nem ele nem policia nenhum, são quando muito uma extensão, um complemento, a autoridade está na AR e no sistema judicial, nos juízes, que não podendo estar em toda a parte delegam em filiais, em agentes, autorização para que ajam em nome deles, ajam, e eles agem, tornam-se seus agentes, o seu braço direito, mas terão que o fazer dentro das normas, ou lixar-se-ão, tão simples quanto isso.

O bom do cabo Hugo Ernano antes de disparar devia ter-se lembrado de um juiz, ter imaginado ser juiz e estar a uma secretária consultando os códices, e antes de disparar ter colocado a si mesmo as perguntas a que a lei o obriga, perguntas a cuja resposta somente os factos observados e comprovados podem responder;

- Estava ele ante uma situação clara de flagrante delito ? Observou o cenário as circunstâncias e a dimensão da ameaça com que se poderia deparar ? 
- Encontrava-se ameaçado na sua integridade física ? O ofensor estava armado e constituía ameaça ?
- A arma do ofensor foi apreendida e constitui prova material ? O ofensor disparou a arma sobre o cabo ? A perícia a essa arma confirma ter a mesma sido disparada ?
- O primeiro disparo do cabo foi efectuado para o ar como medida de aviso e coacção sobre o ofensor ?  Quantos disparos efectuou ? Ripostou o cabo em legitima defesa ?
- Como explica o cabo que um tiro dado para o ar tenha atingido mortalmente uma criança que tem pouco mais de um metro de altura ?

É razoável e legítimo supor perante os factos comprovados, e só estes contam, ter o cabo actuado com leviandade, ter atirado contra um homem desarmado e assim tendo atingido involuntáriamente uma criança... O resto são circunstancialismos do contexto que naturalmente não convenceram os juízes, (nem mesmo os do supremo quando do recurso) ou são meras opiniões de malta ou gentinha ignorante.

Um blindado contra uma fisga… ou, imaginemos o ridículo, um judeu armado com uma bomba atómica, na intifada palestina e lutando contra quem lhe atira pedras… Isto de haver palermas que acreditam que tudo se resume ao pouco que as suas cabecinhas sabem tem que se lhe diga filhos… Olha, e por falar em filhos, o suposto bandido, ou presumível ladrão levava o filho com ele ? Fui consultar a legislação e em código nenhum detectei proibição de levar consigo os filhos fosse para onde fosse. Em dois casos unicamente e a saber, os pais são obrigados a condicionar as crianças que levem consigo, filhos ou não, devem transportá-los em cadeirinhas apropriadas e no banco traseiro enquanto pequenos, e num “ovo” homologado e no banco da frente enquanto bebés, não esquecendo em nenhum dos casos o uso de cinto de segurança.

O ridículo pode matar sim, nem todos terão a sorte que eu tive. Mau grado a cena das cabeças e a expulsão de que fui alvo a minha caderneta não ficou suja, pelo contrário a coisa funcionou como publicidade positiva, o que nem sempre acontece, portanto cuidado com as normas. Acabei como conselheiro e instrutor militar tendo corrido toda a África abaixo do Equador. Treinei os angolanos contra a UNITA e os sul africanos de quem ela era aliada, mais tarde os pretos da SWAPO contra o SAA, South African Army o MPLA e os cubanos, e acabei os meus dias de acção treinando tropas do SAA contra os guerrilheiros nativos angolanos e os mercenários cubanos, tendo mais tarde lutado novamente ao lado da SWAPO contra o SAA.** Sempre respeitando, ensinando e aconselhando a respeitar a Convenção de Genebra, excepto que me lembre, após a purga exercida por parte do MPLA contra os flechas que tinham lutado a meu lado e do nosso exército e duma outra vez em que pretos do MPLA degolaram e migaram num caldeirão três brancos sul-africanos em cujo repasto eu me recusei terminantemente a participar.

        Ofendido virei-lhes as costas e ainda hoje espero que essas comissões me sejam pagas. Só trabalhava à comissão, sinal depositado e comissões, trabalhei sempre com contratos a prazo portanto sei bem quanto sofrem os precários. Mas desde que as comissões fossem regularmente pagas o meu trabalho era garantido. Melhor que eu só trinta e tal anos mais tarde vim a defrontar-me com alguém mais eficiente. Deviam ter acertado com ele o valor das comissões e exigir-lhe responsabilidades e o cumprimento de um caderno de encargos. Terem-no encerrado em Évora, apesar das tais condições, não trouxe nem vantagens nem ganhos absolutamente nenhuns a ninguém, nem a ele nem ao país.