quarta-feira, 2 de novembro de 2016

393 - CUCU, CUCA, MINHA JÓIA .............................


Naquela noite em especial ela gostara de o ouvir, gostara e dissera-lho, ao que ele respondeu de modo algo petulante:

- Ainda tu não me ouviste falar durante o dia.

Para quem tenha assistido à cena terá mesmo parecido petulância, contudo não abonará em prejuízo da verdade sabermos não ter havido quaisquer testemunhas.

Nem era véspera de todos os santos, era mesmo o primeiro de Novembro, data que começara sendo assinalada logo pela manhã, todavia num dia tão marcante para os cristãos não consta que os sinos tenham tocado a rebate, ainda que tenham soado repicando todo esse santo dia.

Quer num quer noutro dos cemitérios da cidade, os mortos da família aguardaram solenemente todo o dia a visita que ele lhes não fez, contudo lembrou-os com uma exaltação inusual mas apropriada, sentindo-se nesse feriado mais feliz que o habitual e deveras aliviado por finalmente o Senhor os ter chamado a Si. O sofrimento de ambos tivera finalmente fim e ele, livre dos elevados custos dos esmerados cuidados, serviços de saúde e paliativos que clandestinamente lhes prestavam, pudera então trocar de carro e adquirir em cento e vinte módicas prestações uma admirável viatura que faria as suas delícias e provocaria a inveja dos demais.

Para quem esteja por dentro da cena, da coisa, será fácil acreditar não se ter tratado de petulância, ele era extrovertido e brincalhão, um tipo às direitas, nos antípodas de um petulante, ela comprovou-o no fim desse jantar durante o qual a conversa nem derivara em nenhuma direcção particular, antes abarcara no geral variadíssimos temas sem ao menos aprofundar qualquer deles. Tinha sido um lindo e lauto jantar com flores na mesa e à luz de velas, por se ter ido abaixo a corrente eléctrica ou algum deles se ter esquecido de pagar a conta da luz.

Não era normal acontecer jantarem de modo romântico, nem esquecerem pagar as contas, mas acontecera e, sem luz, recolheram ao quarto mais cedo que seria habitual, nem sequer estavam familiarizados um com o outro e ambos temiam que a coisa pudesse correr mal. Mas não correu, correu até melhor que teriam imaginado, ou sonhado, e ainda que uma vez mais haja tantas testemunhas como quando ele lhe parecera um petulante, ou mesmo não havendo testemunhas, só o Senhor saberá quanto se aplicaram, entregaram e amaram.  
          
Na confusão da excitação e do escuro como breu ele nem logrará negar com veemência ter titilado onde mais lhe tenha agradado, jamais porém esquecerá a tremura experimentada e que o acometeu ao passar-lhe a ponta da língua p’los lábios finos, mais precisamente aquele exacto momento em que outra ponta tocou a sua, momento acerca do qual se tornaria incapaz de afiançar ter alguém accionado o interruptor e desligado a pouca luz que um abajur derramava e onde ela depositara umas calcinhas azuisinhas, rendilhadas, a fim de coar aquela luz metediça e que por isso o quartito nem ficara transparente nem opaco, deixando escapar somente uma aurora azulada, celestial. 

Naturalmente a confusão já se lhe instalara no espírito, confundindo-se-lhe tudo e olvidando-lhe que o corte da corrente eléctrica era uma constante e o accionar do interruptor uma variante ocasional e irracional, possibilidade aceitável únicamente por quem dominasse o sentido das coisas ou da razão e, como corpo na corrente caudalosa dum rio agarrando-se a um tronco, assim ele se deixava arrastar ao sabor da emoção.

Não havendo a certeza de nada lembra tudo isto sem comoção, comoção verdadeira, da que provoca baques no coração. Recorda o abraço apertadinho, o sussurro, o tudo com jeitinho para não a assustar não fosse a passarada esvoaçar para longe, onde se não ouvissem os sinos repicando, ou onde não houvesse o juntinhos, o coladinhos, o pegadinhos, os pontos cardeais vogando sem tino na maré duns alvos lençóis de linho, perdidos ambos numa tempestade de desejos, navegando sem bússola, agarrados a uma manta colorida entretecida por mãos de fada agora sem saberem ao que agarrar-se e agarrando-se a tudo com o desespero do amor, a perseverança do carinho, a violência da ternura, como se estivesse nas suas mãos o destino, a sina, o fado que só Deus podia cantar-lhes quando, de novo lhe voltaram as tremuras ao passar-lhe com a língua nos lábios finos e molhados ao longo dos quais fez deslizar a ponta, esses lábios se lhe entreabriram abrindo-lhe as portas do paraíso e no paraíso uma maçã que comeu sofregamente, uma maçã verde de sabor agridoce cujo sumo o levou a ajoelhar-se como por respeito se venera e ora a um sumo-sacerdote das coisas em que se crê. 

Por isso ávido a sugava, sugava a vida a felicidade e o amor como se o amanhã não existisse e, porque insistisse e lhe parecesse que outra língua, outra ponta tocasse a sua, fechou os olhos desejando ardentemente adormecer quando as coxas dela, macias e quentes se contraíram de encontro às suas faces, onde uma barba de dias arranhava como lixa aquela pele de pêssego cheirando a rosas cujas pétalas, tal qual uma flor, se beijam com amor.

E como Deus descansou ao sétimo dia também eles descansaram e dormiram, juntinhos, coladinhos, pegadinhos, um no outro, os dois em um como prometia solenemente a SATA* no plasma ligado no quarto, ou o Clube Fluvial Portuense no dia de S. Valentim** abrindo aos sócios as entradas acompanhados, acompanhados talvez também por quem com eles partilhasse o juntinhos, o coladinhos, o pegadinhos, acompanhados por quem os auxiliasse na busca dos pontos cardeais, ou quem sabe a superar uma qualquer tempestade ensinando-os a navegar sem bússola, bem tapadinhos com uma manta colorida e feita à mão com devoção.