sábado, 16 de março de 2019

585 - TÃO LINDA, É SUA ? ‎ by Maria Luísa Baião *


Olhou-me cabisbaixa, contrita, e disse-o tão suave e carinhosamente quanto o meu instinto permitiu adivinhar. Oriunda de uma terrinha do interior alentejano tirara com denodo, sacrifício e óptimo aproveitamento um curso de relações internacionais, crente e ciente, então, que a Europa, o nosso desenvolvimento, a internacionalização das nossas empresas, o mercado de trabalho, exigiriam dela, da sua juventude, da sua formação, um contributo rigoroso que aliás estivera preparada para abraçar como entrega a uma causa.

Transparência, ingenuidade e inocência eram de tal modo visíveis nela que me sensibilizou a sua timidez, ou vergonha.

- Sim, é minha ! Mas não minha filha, é a Leonor, minha netinha ! Os pais estão acolá !

Nem sei o que nos aproximou, sem dúvida que a menina mas não só. Compráramos ambas laranjas, queijos de Serpa, enchidos. Nisso os nossos gostos eram muito idênticos e decerto ao chegar a casa as duas constatámos nem as laranjas terem valido a pena nem os queijos, que de Serpa só tinham o nome. Azares, azares que vão permitindo a uns quantos ir sobrevivendo até ao dia que não consigam enganar ninguém. Mas, como todas sabemos, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

- É a D. Luísa não é ? Reconheci-a do jornal…

Encontráramo-nos mirando do paredão as águas infindas de Alqueva, cuja cor nesse dia ligeiramente enevoado se colava ao céu azul plúmbeo, num dos fins-de-semana do passado Inverno.

- É uma menina muito linda sabe… há tanto que sonho com uma bebé assim…

- Então, volvi eu, problemas ?

– Não, não é isso, a vida sabe. Esperámos quarenta anos por esta barragem, já aceitei que terei que esperar outros quarenta pela minha vez, e não creio em milagres quando chegar aos setenta.

– Credo minha filha ! Permita-me que a trate assim, deve ter a idade do meu filho. Que se passa consigo !?

O tempo fora passando, ela vira passar as oportunidades à esquerda e a vida à direita. Tudo lhe fugira debaixo, não das mãos, com as quais nada agarrara vez alguma. Um namorado que já fora noivo e com quem aprendera, lado a lado nos bancos da escola a escrever continuava escrevendo, todavia sem prometer já o que quer que fosse, tão pouco lamentando sonhos desfeitos ou erigindo outros, ou novos, mantendo-a arrependida de o não ter acompanhado com a bússola apontada aos antípodas, a Nova Zelândia, onde o agricultor que fora e a necessidade de ocupar os braços e o futuro o haviam conduzido. Também a família deste se queixava do espaço entre notícias, atribuindo a uma tal inglesa as razões para o desiderato, fechando-se em copas, olhando-a cada vez mais como uma coisa esquisita, sem préstimo nem mais valias ou vantagens adicionais, comparativas ou intrínsecas, comoditties, como agora ou hodiernamente se diz que pudessem valer-lhe ou justificar para alguém nova deslocalização. Enfim, do que ouvi o seu homem globalizara-se, eclipsara-se.

E ela, ainda jovem, e ela ainda linda, viúva por antecipação, licenciada por opção, e, desculpem a franqueza, parva por consideração, fidelidade e lealdade não percebi bem a quê ou a quem, vendendo pão num comércio abastecido por um padeiro da Vidigueira. Imaginem só se não se tem licenciado, provavelmente venderia hortaliças num lugar às ditas dedicado já que no Alentejo profundo essa vertente e tecnologia associada ainda sobrevive.

Lembrei-a porque recebi esta semana via Diário Do Sul um e-mail de um lugar onde jamais esperara ser lembrada. Ercília, assim se chama a minha última amizade e protagonista desta história, encheu-se finalmente de coragem e esperança, arregaçou as mangas tendo rumado há meses para o Canadá, onde tem uma antiga amiga sua colega de curso, há anos instalada como relações públicas de uma companhia aérea. Ercília é hoje secretária numa empresa importadora de atoalhados, secção dedicada aos têxteis portugueses, ganha bem, virá imensas vezes a Portugal, ocasiões em que a par de negócios matará saudades, tem um colega mexicano a arrastar-lhe a asa e…

Olhem, nem queiram saber como fiquei feliz !

Bons partos Ercília !




* By Luísa Baião,‎ escrito quinta-feira, ‎3‎ de ‎maio‎ de ‎2007, ‏‎16:26h e provavelmente
publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.