domingo, 5 de junho de 2011

" SER OU NÃO SER " ERA E É A QUESTÃO ............

              
Blindado Chaimite, rodados em linha.

Dizer-se que ensinamos é uma coisa, pretender sabermos alguma coisa é outra, completamente diferente. Em boa verdade eu ensinava e orgulho-me de o ter feito bem, ensinava cuidava eu de dizer as coisas do meu mister, ao longo de dias, semanas, meses, anos. Dizer que ensinava é dizer pouco, pois foi mais o aprendido com aqueles a quem formava, muito mais, foi muito mais sim. Uma das matérias da minha competência tinha a ver com olhar, ver, observar e a partir daí colher informações que permitissem conjecturar e, durante anos tive relutância em aceitar, em admitir quanto eu mesmo aprendia a ver ensinando esses “cegos” a olhar.

“Só sei que nada sei” é coisa sabida de todos nós e encimando a academia de Sócrates na Grécia antiga, séculos mais tarde gente moralista haveria de escrever sobre a entrada de Auschwitz-Birkenau “O Trabalho Liberta”. Quasi ao mesmo tempo Einstein afirmaria a “Teoria da Relatividade Geral”, qualquer coisa que demoraria não milénios mas um século a ser confirmada, eu não tive que esperar tanto tempo para constatar como tudo na vida é relativo e as nossas prioridades e capacidades mudam radicalmente de acordo com o meio em que nos inserimos.

Ensinava a ver mas era também cego, cego ao que posteriormente aprendi a ver com esses mesmos “cegos” que ensinava, como um oculista que usasse óculos ou lentes de contacto. Certamente já entraram num “zoista”, digo numa loja de óptica, terão entrado talvez para ver as modas quanto a óculos de sol, repararam que nos “zoistas” toda a gente ou quase toda a gente usa óculos ? Assim estava eu, como um gerente dessas lojas, vendendo e exibindo o meu produto, ensinando a ver mas usando óculos e por que não, binóculos ?

Berliet Tramagal, rodados em linha.

A ver vamos então como paravam as modas, não dos óculos de sol ou quaisquer outros mas de golpe, golpe de vista, porque estas coisas dos olhos, do ver e do olhar, de saber ver ou saber para onde olhar, ou o que se está vendo tem, ao contrário do que poderão pensar mesmo muito que se lhe diga. Já aqui o disse, os negros em geral e em especial os negros do sul de Angola estariam culturalmente dois milénios atras de nós brancos, de nós que em quinhentos anos de colonização nada mais lhes levámos que um padrão afirmando terem acabado de ser descobertos, para além disso levámos o chicote e a escravatura. Fomos pioneiros no comércio triangular e global de escravos e desde esses tempos para cá pouco mais fizemos por eles ao abrigo dessa tão honrosa missão civilizadora e evangelizadora de que o Infante nos incumbira. 

Apesar de tudo e pelo que estudei e sei, dá-me impressão que para o negro africano das nossas províncias ultramarinas, colónias, os seus melhores tempos debaixo do nosso jugo, do nosso domínio, nem terão sido após a abolição da escravatura pelo Marquês de Pombal* mas os tempos do Estado Novo, com especial incidência no período das guerras coloniais. Abundam exemplos de comandantes nossos, severos, e não somente Spínola, exigentes quanto ao respeito devido ao ser humano negro que dominávamos e submetíamos, mau grado Bafatá (Pidjiguiti), Wiriamu e a PIDE DGS, também presente nessas províncias, colónias, e nada branda segundo reza a história.

Berliet Tramagal, rodados em linha.

Paradoxal ? Paradoxal mas real e se observarmos igualmente a história da repressão sobre o negro nos países limítrofes e vizinhos, também eles alvo da dominação branca, a história passa a câmara de horrores. As revoltas de 61 têm um fundamento histórico, e atenção, não estou afirmando haver ali uma razão fundamental, mas têm uma origem, uma causa que as explica e do ponto de vista deles as explica e justifica. O que se vê ou não vê, o que o olhar abrange depende muitíssimas vezes do ponto de vista do observador, da perspectiva, e dos seus interesses claro.


Em Wiriamu e Bafatá não viram eles o que nós vimos, a bestialidade é transversal à história, aos povos, contudo apesar de atrasados dois milénios se, por algum motivo, uma guerra nuclear ou outra desgraça o mundo fosse deixado à sua sorte os africanos resistiriam, sobreviveriam, pois ante uma perspectiva como a que desenhei, aterradora, eles vêem melhor que nós, sabem olhar e ver, vêem mais longe, vêem mais profundamente e sabem mais no que concerne ao fundamental, ao que interessa, ao que garanta a sobrevivência, ao que é vital. Eles sabem viver sem nada, nós não sobreviveríamos sem a tralha que arrastamos para todo o lado.

Imensa gente desconhece que os veículos militares nunca têm rodados duplos, podem ter isso sim o mesmo número de rodas que os modelos civis, mas uma adiante da outra, e nunca ao lado, tal desiderato diminui em cinquenta por cento a estrada pisada e como tal em igual percentagem a possibilidade de pisar uma mina e ir pelos ares. As rodas, os pneus, têm rasto, e para confundir o inimigo nós trocávamos o pneu montado na jante, virávamo-lo deixando-o numa posição em que deixava na terra um rastro que, olhando-o pensar-se e acreditar-se-ia que a viatura estivesse andando em marcha atrás, tal confundia o inimigo o qual, ao olhar o nosso rasto pensaria estarmos regressando quando afinal estaríamos indo.
Pneus de rasto neutro.

 Porém em fins da década de setenta os sul-africanos surgiram com um pneu de rasto neutro, idêntico, quer estivessem virados para a frente na jante ou p’ra trás, facto que destruiu, deitou por terra todas as elaboradas teorias mantidas, ensinadas e aprendidas sobre a leitura de rastos. Mas somente a nós os entendidos essa generalização enganou, pois os bantus nunca tinham precisado do desenho de um rasto para saberem em que sentido ele se movia. Essa e muitas outras pequenas grandes coisas do género aprendemos a ver com eles, qual o segredo, tu como farias ? Era difícil detectar-lhes o sentido da marcha se as viaturas viajassem devagar mas, desde que aumentassem a velocidade, o sentido em que a areia ou a terra do rasto estivesse tombada determinaria esse sentido. Os negros sabiam isso há milénios, ainda a roda não tinha sido inventada…

Com a generalização dos pneus de rasto neutro a sabedoria dos pisteiros indígenas por nós ensinados a ver demonstrou-nos verem melhor que nós os seus mestres, melhor e mais longe. Em pouco tempo aprendiam o que havia a aprender, o resto do tempo davam-nos cartas, aprendíamos nós com eles, e surgiam nem sabíamos de onde, da mata… O que os movia ? O que os fazia lutar ? O que os tornava tão orgulhosos de si mesmos ? Por que lutavam por se superar ? Por que nunca se lamentavam ? Por que granjeavam com o tempo honor e respeito junto dos seus ? Por que nunca tinham fome ? Nem sede ? Nem dores ? Por que lhes bastava ser ? 
Pneu de rasto direccionado.

Dentro da realidade vivida e alteridade impunha-se e cambalhotava-nos todas e quaisquer noções por nós carregadas desde a metrópole. 

O que era ser ? O que significava para eles ?

Voltaremos a este tema.

Berliet Tramagal, rodados em linha.

* Reinava de D. José I quando a 12 de Fevereiro de 1761 a escravatura foi abolida pelo Marquês de Pombal na Metrópole e na Índia. Seria um Decreto de 1854 a ordenar a libertação dos primeiros escravos, os do Estado, mais tarde os da Igreja por Decreto de 1856. Uma lei de 25 de Fevereiro de 1869 viria a proclamar a abolição da escravatura em todo o Império Português até ao termo definitivo em 1878.


Rastos de pneus direccionados.

QUÁSI *

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indicios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

* Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'


Rastos sobrepostos de pneus direccionados.