sábado, 5 de outubro de 2013

165 - ERA EM SINES, FOI ……....…….....

                   
            O que eu ri anos depois quando finalmente percebi a coisa. Intrigara-me deveras o domínio violento e forçado sobre elas e a sua cúmplice aceitação, sim, porque elas não os repeliam, puxava-nos para si, tanto mais quanto maior o descontrole que parecia possui-los, mas, os sorrisos manhosos da rapaziada sossegaram-me, eu seguia a manada, a rapaziada, os mais velhos.  
              
Enorme aparato amarelo-torrado ocupava a marginal. Um tripé encimado por sofisticado equipamento, vários carregadores e um senhor engenheiro, todos de capacete branco, travaram-me o percurso. A viagem era para sul e ali, ao local agora alvo de tanta atenção e burburinho, chegara eu sob pacata placidez a merecidas ferias no mar.

Já lá vão muitos anos bem sei, mas tal só torna mais belas as lembranças que guardei.

Escalámos o penhasco pelo lado norte, e, não tendo sido uma descoberta, ou o desbravar de um trilho, foi contudo a conquista, esforçada sublinhe-se, do rasto marcado por muitos antes de nós naquela íngreme encosta que teria, na idade em que a escalei, cem ou duzentos metros de altura, ou mais, embora hoje conceda que talvez menos, mas quem pode contraditar-me se dela fizeram tábua rasa ?

Chegado ao cimo, chegados ao cimo, pareceu-nos aquilo uma feira, carros, carrinhas, carroças e carretas amarelas por todo o lado, uma camioneta Mercedes amarela, daquelas que se faziam antes d’eu nascer, e num dos lados, em bela caligrafia inglesa e a desafiar todos os actuais padrões, “Instituto Nacional de Agrimensura”, pronto, pensei, vão dividir a falésia em talhões para venda a retalho como fizeram com a courela que o paizinho comprou nos Afonsos, mas quem quer vir morar aqui, no alto de uma falésia ventosa, desassossegada pelas gaivotas, n’um ermo sobre o mar batido p’lo vento e p’lo sal da maresia ?

Vários caminhos e veredas se cruzavam no cimo ou língua de terra que a falésia lançava sobre o mar, ervas ervinhas caniços e canaviais completavam a paisagem e atapetavam aquele descampado, sítio de passagens e varanda sobre o mar.

Chegados lá, chegado lá acima a primeira surpresa surgiu com as inglesas ou suecas lutando, esbracejando sorrindo e suando debaixo dos Adónis musculados de pele curtida pelo sol. Eu não percebia nem entendia a coisa, os meus amigos riam-se, riam-se com risinhos tímidos que escondiam nas mãos ou virando a cara, eu apalpava os bolsos no receio de perder os bonecos de plástico das colecções de Hanna Barbera e da Disney que saíam como prémio nos pauzinhos dos gelados e não entendia a cúmplice aceitação de quem repelia e puxava a si aqueles homens jovens, que as dominavam sem as dominar, abraçando-as sem as abraçar, tão absortos que nem davam por nós, ali a seus pés, mirando-os, numa curiosidade e fervor que só a ignorância explicaria.

Os meus olhos dardejavam um triângulo cujas tangentes tocavam a rapaziada, os casais das inglesas ou suecas, cujo vértice eu vincava quando um dos capacetes brancos, agrimensor, ou engenheiro, nos gritou:

- Ó rapaziada ! Fora daqui ! Desandando lá para longe vá !  Andando ! Andaço já !

Desandámos, até porque a equipa de amarelo puxava de instrumentos e fitas métricas que estendia de tripé a tripé em triângulos que eu há muito mais de trinta anos atrás também não entendia.

Mas, há menos tempo, no fim dos anos oitenta talvez, o aparato que ocupava a marginal tolhendo-me a viagem era outro, da mesma cor mas outro, mais para um amarelo vivo que torrado, gritando “Instituto Nacional de Geologia e Minas”, mais tripés, em cima de cada um deles um “Teodolito” e eu pensando quem irão eles bombardear e onde, pois já vira na carreira de tiro a afinação dos morteiros e dos canhões de artilharia com recurso àquele instrumento.

Todos eles de capacetes brancos, mas não atiravam granadas ou obuses, atiravam bocas, e um deles, gritando:

- Tantos metros
- Xis ângulos
- Recua
- Avança
- Só aqui por alto 322 mil toneladas a deslocar !

E os nomes nas tarjetas ao peito, como os militares, engenheiro Lacerda, Nicolau Moreira – topógrafo, ainda hoje lembro os seus nomes.

O primeiro mandando bocas e os segundos afadigando-se com os tripés numa dança de ângulos que anotavam em caderninhos igualmente amarelos, a geometria gradualmente tomando novas formas, como as lapas nas rochas da costa.

No alto da falésia que eu há tantos anos escalara outros engenheiros, outros topógrafos, de amarelo, que apesar de longe eu bem os via lá em cima, trocando por Walkie Talkies notas, bocas, ângulos, metros, avanços e recuos, com os quais agora me barravam o progresso da viagem para sul e guardavam em pequenos gravadores que dedilhavam nas mãos premindo botões, avanço, record, pausa, recuo, já não numa escrita, ou dança, antes numa oralidade trigonométrica que abarcava, deixando adivinhar, navios nos largos espaços que os triângulos abriam entre as mãos dos engenheiros, ansiosos de arregaçar as mangas e enfiá-las mar adentro.

Muitos anos depois era já eu que puxava, não repelia, eivado de um auto domínio cujas balizas controlava ou me esforçava por controlar mas sobretudo entendia, e, com um sorriso astuto, meditando me olhei enquanto subia às muralhas do castelo fixando das ameias a visão no ponto onde se pegavam céu e mar.

Baixei a mira e alcancei a praia que fora, não já a mesma mas outra, e, arrojando até onde a vista mo permitia não logrei ver a gigantesca encosta, mas vi em seu lugar os petroleiros pastando no mar calmo a que a falésia deu lugar, vi alteradas recordações e geometrias, recuei no tempo e muitas tendas de um enorme acampamento no interior do castelo, o toldo mesas e bancos corridos onde nos juntávamos às refeições, a bandeira da mocidade portuguesa, os deveres do bom Lusito, o posto da guarda no canto oposto, as torneiras dos lava pratos e os chuveiros improvisados, o Clemente e o Lourinho e outros, brincando com pedrinhas redondas trazidas de outra praia e que mais pareciam medronhos, rugosas como eles, como os ouriços que apanhávamos entre as rochas da praia do norte na maré vazia, espreitando as turistas no campo de nudismo, estrelas do mar, algas que se enrolavam aos pés, o cine-esplanada Paraíso lado a lado com o jardim aberto, pevides, gelados, pauzinhos com prémio, bonecos em plástico.

O camião fumegando todo o caminho, os mais enjoados vomitando sob o toldo e dos taipais para fora, o entardecer já sem sol, as mães esperando no Largo da Misericórdia e saudades de casa, que, ao fim de um mês já eram muitas…