sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

311 - SONHO DE PRíNCIPES ENCANTADOS .........


O meu amigo Francisco Nunes Liberato Cardoso morreu, uma surpresa para mim, quer dizer soube disso há quinze dias, dei com a coisa num jornal, casualmente, nem costumo ler aquele pasquim, amarrotado sobre a mesa do cabeleireiro onde fora dar um caldinho ao cabelo para ir jeitoso ao almoço de anos da Felicidade que, atendendo a que o Senhor a protege e beneficia, não tem pejo em dizer a quem quer que seja a idade, está com cinquenta e é uma felicidade olhá-la, é daquelas mulheres de quem se diz serem como o vinho do Porto, quanto mais velhas melhores, salvo seja o exagero, mas na verdade nunca a vi tão bonitinha como agora, em adolescente e jovem era até muito feiinha confesso.

O tempo muda-as, muda-nos a todos, e se umas ficam piores, outras, poucas, para compensar ficam muito melhores. Atente-se na Felicidade, então não é uma felicidade mirá-la ? Vê-la, ser seu amigo ? Reuniu à mesa mais de trinta de nós, os mais chegados, todos amigos de infância, mas estou a desviar-me do essencial, a felicidade tem destas coisas, sonega-nos a atenção, e quando damos por nós estamos de beicinho.

O jornal, puxara dele para ver umas fotos da Sara Sampaio na capa e ao folheá-lo deparei-me com a noticia da missa por alma do Francisco Cardoso, que se foi já há uns bons sete meses, apagou-se coitado, e a viúva, a Idalina, nicles batatóides, calou-se bem caladinha pois nunca foi muito à bola comigo, daí nem me ter dado a triste noticia. Na verdade fora ela que nos separara como amigos, achava que eu o influenciava demasiado quando nada mais fiz que ele não me tivesse pedido ou fosse ideia sua, mas os pesos de consciência pesam mais que um par de cornos, dizem, e arrastam sempre esqueletos atrás de si.

Mas a Idalina, assim se chama a megera, que hoje se comporta como uma senhora, que não deixa de ser, não engraça comigo porque eu dei corpo aos seus planos oportunistas que tanto viriam a beneficiar o meu amigo Cardoso e por arrastamento a si mesma. Estava portanto a Idalina muito adiantada para o seu tempo quando em 1978 ou 79, já nem sei precisar bem, lembro apenas que a coisa foi feita a correr e a rasar os prazos máximos, que por duas vezes tinham sido gentilmente dilatados pois iriam encerrar irrevogavelmente as inscrições, os plafonds, os programas, e os planos de ajuda financeira que o IARN, Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais, quero dizer os EUA, afinal quem financiava tudo e que colocara milhões de dólares à disposição dos retornados das ex-colónias. 

A esta distância toda a gente lamentará os retornados, mas na época eram mal vistos, mal quistos e mal-amados pela generalidade dos portugueses, porque alguns partidos, alguns jornais, algumas rádios e por vezes mesmo a televisão os mostravam como gente que beneficiara tempo demais de privilégios que os da metrópole jamais tinham tido, e sobretudo de ajudas e de condições que aos nacionais não eram oferecidas, nem nunca tinham sido.

Em boa verdade, para além da hostilidade com que foram recebidos e tratados, os retornados não tiveram à sua espera ajudas que não aquelas que o povo fascista capitalista dos Estados Unidos da América lhes quis dar, e que por cá foram canalizadas para e pelo IARN. (como habitualmente ninguém tem, veja-se o caso das ajudas governamentais aos lesados pelas cheias em Albufeira.)

Essas ajudas foram mais um motivo de inveja e de ódio para com os que, fugidos às guerras da independência descontrolada que os acordos de Bicesse permitiram, não acautelando nem cuidando das suas vidas, nem da segurança e bens desses portugueses nas e das colónias, obrigados a fugir, muitos deles somente com a roupinha que tinham no corpo.

Mas deixemo-nos de pieguices que não foi para isso que peguei na caneta e no papel, foi antes para vos demonstrar que a inveja, o ódio e a vergonha pelos esqueletos no armário, e o incómodo quanto a quem nos conhece o passado pode levar, pois foi tudo isso que levou a Idalina a esconder-me o Francisco primeiro e a sua morte depois.

Francisco Cardoso tinha em fins de 1973 sido contemplado pela Junta de Colonização Interna, um organismo do Estado Novo (ver link) destinado a promover o povoamento e o desenvolvimento económico territorial e agrícola na metrópole e nas colónias, com um soberbo lote, ou parcela considerável, no perímetro de Pegões e que fizera dele um jovem agricultor e um jovem rendeiro.

Contudo o advento do 25 de Abril deitara tudo por água abaixo e o bom do Cardoso nunca chegou a agricultor apesar de, já em democracia, muito ter tentado mas, o estado democrático, às voltas com as ocupações selvagens e consequentes devoluções de terras (ver lei 77, também conhecida por lei Barreto, link no fim do texto) nunca lhe deu atenção. Não lha deu a ele nem a centenas ou milhares de pequenos agricultores ou rendeiros, o que deitou por terra os sonhos de casamento da Idalina, que pintara na vida tudo quanto havia para pintar e encontrara no parvalhão do Francisco o seu seguro de vida. 

Ao observar os apoios que o IARN prodigalizava aos atrasados mentais dos retornados a Idalina encontrou o furo da sua vida, todavia os pruridos de honestidade do noivo e até a sua limitada inteligência (foi ela quem assim mo classificou) e desenvoltura bloqueavam-lhe os planos. Foi aí que eu entrei em cena, competindo-me criar-lhes ou inventar-lhes como agora se diz uma nova narrativa, o que na inocência dos meus vinte e poucos anos fiz, tendo até ido mais longe que a prudência aconselharia e incutido coragem ao meu amigo Francisco garantindo-lhe que dali não viria mal e ele sempre poderia ressarcir-se do tanto que já tinha penado à procura de lugar no mundo. Deus escreve direito por linhas tortas lembro-me de lhe ter dito quando assinou a papelada que a Idalina levaria ao IARN e faria dele um homem novo, e se não fizesse, mais velho também não o tornaria, mais a mais viviam-se tempos irrepetíveis e quem tivesse dois olhos chegaria longe, isto não lho ouvi, mas pensei ter ela pensado, afinal o irmão tinha declarado numa escola ser licenciado e nem lhe exigiram comprovativo algum, (tinha a frequência do segundo ano, e nem esse acabou) pelo contrário, passaram a chamar-lhe senhor doutor e a dobrar-se numa vénia sempre que passava. Pouco mais de um ano depois tornar-se-ia director daquela escola secundária, onde se manteve até há um ano atrás, ou dois, data em que se reformou, aos sessenta e dois anos de idade.    

Enquanto Instituto o IARN vivia de fundos americanos, de muita solidariedade e de boas vontades, coisas que, como sabemos são extremamente difíceis de encontrar entre nós. Sabendo da miséria em que muitos tinham chegado o IARN pouco exigia além do nome e da idade, nem garantias sobre os créditos concedidos exigia. Como o IARN, nos nossos tempos, só conheço o exemplo de Armando Vara que emprestou milhões aos amigos em qualquer tipo de garantia lhes solicitar.

Ora o bom do Francisco Cardoso muniu-se das respectivas certidões de nascimento e de registo criminal, preencheu a papelada que o dava como retornado de Angola (onde nunca estivera), fugido de Malange, onde teria uma plantação (quem o poderia negar, ou desmentir?) alegou desejar recomeçar a vida na metrópole para o que pretendia um crédito de vinte mil contos (na época uma fortuna) a fim de adquirir um prédio rústico para o que apresentava a respectiva caderneta predial, sito na freguesia de S. Teotónio, concelho de Odemira, avaliações do imóvel igualmente apensas ao processo, em triplicado conforme à lei, e efectuadas pelos serviços competentes das delegações dos bancos Totta & Açores, Nacional Ultramarino e Português do Atlântico, solicitação requerida com a finalidade de transformar o citado prédio rústico numa Albergaria tipo turismo rural, a explorar no sector cujo desenvolvimento entre Odemira e Vila Nova de Mil Fontes é esperado, de acordo com o Parecer Técnico do Gabinete de Arquitectura Mário & Glória Ldª, que se anexa, bem como croquis da pretendida Albergaria, a construir no prazo de dois anos, durante o qual se solicita um período de carência.

Ora todos sabemos como os Américas tratavam o dinheiro por esses tempos de fartura, tempos de Mário Soares, o amigo americano, de Frank Carlucci, de Artur Albarran, o estrangeirado que se meteu em negócios pouco claros mas ainda assim longe da burlazinha do nosso amigo Cardoso, tempos de Henry Kissinger, de Richard Nixon, de Gerald Ford, era despejá-lo aos sacos de notas onde fizesse falta ou desse jeito.

A sabida da Idalina esperava de antemão o resultado daquilo, só não esperava que viesse em menos de quinze dias, ou tinha amigos dentro do IARN, e ela era do tipo de quem tinha amigos em todo o lado, e se não tinha iria ter, pelo que foi a única de nós a não se surpreender quando o IARN meteu o totobola nas mãos do Francisco (não havia ainda totoloto nem Euro milhões).

Casaram-se, foram muito felizes, e hoje, que o bom do Francisco Cardoso morreu, podemos encontrar de novo à venda o Monte das Pedrinhas (link abaixo), como ternamente o baptizaram no seu sonho de príncipes encantados.