quinta-feira, 26 de março de 2015

231 - IMPONDERÁVEIS................................................

                             
A crescente proximidade da Páscoa alegrava-o, as perspectivas meteorológicas prometiam bom tempo e o sorriso de Heidi, de quem pedira a mão, tornava-lhe ansiosa a passagem dos dias até essas férias.

Como sempre fizera desde rapaz, com tanto empenho quanto orgulho, escalaria o Maciço dos 3 Bispos, desta vez Heidi acompanhá-lo-ia, o que tornava essa escalada ainda mais desafiadora que todas as outras.

Assoberbava-o a ideia feliz dessa conquista, tinha sido dificílimo mas conseguira impor-se a si mesmo e dominá-la mau grado todos os escolhos da escalada, de si para si diria que se superara. Frequentava as montanhas desde a infância e do tempo dos escuteiros, a aposta em Heidi era mais recente, remontava apenas ao tempo dos estudos secundários.

Escalar aquele monte pela primeira vez custara-lhe menos que conquistar Heidi, além disso contara com a experiencia do pai, velho alpinista de moral prussiana que colocava empenho e cumprimento de objectivos acima da honra.

Várias vezes esse pai austero o repudiara pendendo de cordas, ganchos e mosquetões a cem metros de altura numa qualquer escarpa com vozes de incentivo e encorajamento:

- Agora desenrasca-te meu maricas e aprende que só contigo podes contar, “dos fracos não reza a história”.

Fizera-se homem, conquistara todas as escarpas que se lhe atravessaram no caminho, conquistara o respeito e a admiração do pai, conquistara Heidi, sentia-se extrema e invulgarmente confiante e realizado.

Ultimamente (não andava bem) recordava a mãezinha com uma frequência regular. Não eram saudades mas a sua perda estava difícil de aceitar. Era linda a mãezinha. Há muito esquecera os castigos em que o metera encerrado na cave tardes inteiras, às vezes dias inteiros, sem almoço sem lanche sem brinquedos, por vezes devido a coisas tão simples como não saber a tabuada dos noves, ou hesitar na identificação de Hanna Reitsch ou Amelia Earhart, ou não saber na ponta da língua quanto devemos ao chanceler  Otto Von Bismarck.

Muito lhe custara mas tudo perdoara à mãezinha, era impossível não lhe ter perdoado, era a sua mãezinha linda, até os castigos com orelhas de burro, que ela trazia da escola com o argumento de ele não ser mais (ou menos?) que as outras crianças lhe desculpara. Sorte a daqueles meninos terem a mãezinha como professora. Jurara-lhe mesmo ambicionar ser de aço como o chanceler e voar como Amelia e Hanna quando fosse grande.

Jurara mesmo nunca aceitar que quem quer que fosse se lhe atravessasse na frente ou o dobrasse, a mãezinha teria tanto orgulho nele como o paizinho, prezava ser ariano e honraria a sua ascendência, só por cima do seu cadáver o contrariariam e, conhecendo-o, a mãezinha decorou-lhe o quartinho com aviões e modelos primeiro e anos mais tarde inscreveu-o num clube de voo planado.  

Foi o céu na terra, nada contrariava o seu destino, pais e padrinhos conjugavam esforços para que ao menino Andreas nada atrapalhasse o devir até ao êxito, até ao sucesso absoluto, o céu era o limite, e como que caindo do céu tudo lhe ia parar às mãos.

Adorava planar, sobretudo se com nuvens. Ultimamente refugiava-se nelas tanto tempo quanto quaisquer térmicas favoráveis lhe permitissem, para o que aproveitava a oportunidade do mais pequeno voo de colina e até que atingisse uma onda estacionária. Ali se refugiava da intransigência independentista de Heidi, uma independência que cada vez mais lhe parecia insolência, coisa inaudita numa mulher, jamais vira ou sequer pressentira ou notara tal traço de rebeldia na mãezinha, aquilo contrariava-o, e atormentava-o, o exigente treino de voo dinâmico poupava-o a estes pensamentos.

A ser verdade o que dizem, e ela ter ido embora para Espanha, abandonando-o sem sequer lhe ter dado uma satisfação é causa para explicar muita coisa. Andreas é o tipo de pessoa que lida muito mal com a rejeição.

Olhe lá tem isso ligado ? Importa-se de colocar em OF ?

Em record nada mais tenho dizer. OK está bem, adianto-lhe que Andreas foi meu aluno até aos dezassete dezoito anos, um dos melhores, não falhava uma, e quando falhava temia a reprimenda do pai ou o afastamento da mãe e penalizava-se a ele mesmo, quantas pessoas assim opiniosas ante um falhanço, por mínimo que seja você encontra ? Uma em mil ! Ou em cem mil ! São alunos que vão parar inpreterívelmente a medicina, casualmente a engenharias, a gestão, a economia, e irrevogavelmente à politica, são casos anormais, são almas anormais, quer que lhe diga mais ? 
Não me admira nada disto.  

Como ouvi a alguém «a procura de seres perfeitos para qualquer lugar só pode levar a eleger os mais treinados na representação dessa perfeição» …  



terça-feira, 24 de março de 2015

230 - MULHERES INCONTORNÁVEIS .....................


           Era impossível não dar por elas dado o entusiasmo reinante e o clamor que levantavam, quer eu quer elas frequentamos a pastelaria “Boa Vida” há anos, confesso todavia somente agora ter reparado nisso. Não que eu seja curioso, ou cuscas como agora se diz, não, não sou, são elas que tornam impossível que não se dê pelo seu grupinho, pela sua alegria, pela sua vivência, empenho, entrega e incontida felicidade.

Na minha mesa chamamos-lhe o grupo da galhofa, se bem que a designação não faça jus ao espirito solidário daquelas senhoras. Estava capaz de jurar nunca as ter visto antes, mas na mesa muitos garantem que as testemunham completamente mudadas. Parece que anteriormente de tão caladas ninguém daria por elas se bem que fossem habitués na pastelaria.

Agora eram comemorações e festejos semana sim, semana não, e raro o dia em que na sua mesa não houvesse algo ou alguma coisa para celebrar. Num dia era a constituição de um comité, no outro o objecto de determinada comissão, numa semana o estabelecimento de quaisquer protocolos, na seguinte a promulgação de uma qualquer medida ou legislação. Nada parecia ficar esquecido, nada parecia ficar por brindar. Hoje mesmo a conversa girava à volta de pontes, desemprego, duas almas penadas, solidariedade desinteressada, reportagens.

Ontem foi-me impossível não as ouvir gizando um grupo de socorro local vocacionado para os desfavorecidos da “Boa Vida”, decidiram-no de valência abrangente e integradora, de acção articulada com a comunidade e potenciadora de efeitos e expectativas que causas de tal dimensão sempre geram. No meio do banzé geral muitos beijinhos e abracinhos, muito chá de limão ou lúcia-lima, muitos jesuítas, muitas risadas e uma indisfarçável felicidade que toda aquela risota expunha a ouvidos e olhares.

A morena dos caracóis que dissertava sobre a angariação de roupas, calçado e brinquedos usados e respectivos canais de redistribuição não me era estranha. Costumava vê-la sozinha numa mesa da padaria tomando o pequeno-almoço, cara carrancuda, modos introvertidos, demorei a reconhecê-la, quase nem a reconhecia, tal a pacífica e feliz expressão agora reflectida no seu olhar. Toda ela estava mudada, eu apostaria até que melhor cuidada, verniz fúxia, baton a condizer, e ao dar conhecimento ao Reinaldo destes meus pensamentos largou uma gargalhada e, fixando-me nos olhos só acrescentou:

- E agora usa Wonderbra aposto !

Pela minha cara o Antunes adivinhou que ficara a patinar com a resposta do Reinaldo, aplicou-me uma disfarçada cotovelada e sussurrou:

- Largou a Triumph pá, agora tá noutro campeonato…

Confesso que se já estava confundido pior fiquei, para mim o campeonato eram a Suzuki, a Yamaha, a Honda, onde tardava mas só agora as marcas italianas começavam a impor-se e onde a Triumph jamais conseguira uma vitória, nem sequer me constava que tivesse estado inscrita. Embatuquei mas quedei-me por ali, não estava a alcançar a relação nem isso me afligia, e o Peres, olhando a minha desistência, esboçou um gesto despercebido aos demais para que eu entendesse a subtileza das coisas e quando colocou as mãos em concha junto ao peito imitando sopesá-lo, fez-se repentinamente luz no meu espírito e afivelei um rasgado sorriso. Sim, também seria verdade, pensei.

Até a ex. do Patrício parecia outra, era quanto a mim uma das mais activas do grupinho, faço notar aqui que era uma mulher bem-parecida gostando de se impor. Depois do divórcio passara certamente mal durante uns tempos, notava-se-lhe na cara e no descuido a que se entregara, contudo nunca desistira das suas ideias, e se por um lado lhe custaram o divórcio, não era menos verdade que levara a sua avante e dobrara o Patrício a quem, ao fim de muitos anos, obrigara a mijar sentado.

Não é segredo, toda a gente notava que o porcalhão salpicava os sapatos, e os ladrilhos da casa de banho acrescentaria a Lélia, coisa de somenos mas que lhe infernizava os dias e complicava com os nervos. Ela dobrou-o, todavia já foi tarde, a animosidade acumulada foi tanta que nem o facto de ter ganho a demanda evitou um divórcio litigioso.

Posteriormente tudo se passou muito depressa e nem conheço bem os pormenores, sei que o Patrício, despeitado, voltou a casar-se em três tempos com uma ruiva mamalhuda filha de um coronel que vivia ao fundo da mesma rua e que nunca fizera nada na vida (refiro-me à filha, embora dele pudesse dizer o mesmo) dizem as más-línguas que ela ter menos vinte e muitos anos que ele, facto que não ponderou, poderá ter contribuído para que tivesse baqueado que nem um patinho, porém toda a gente na avenida sabe que se tratou de um enfarte fulminante. Acontece aos melhores…

Acredito ter sido após este episódio que a Lélia voltou a dar acordo de si e a cuidar-se novamente. É provável que tudo tenha perdoado ao Patrício, ou então, como se compreenderia que encabeçasse a comissão instaladora dos “Patrocínios Patrício, Almas do Céu”, destinada a dar assistência aos desvalidos e deserdados da sorte no âmbito da paróquia ?

O meu bairro está a mudar, ele são intenções veladas de transformar o velho armazém numa capela, ele é a tecedura de acordos e acções de voluntariado com a Misericórdia e a Cáritas, ele são as filas da “Sopas & Paz”, isto tá de tal modo que um bairro tristonho amorfo e aparentemente deserto em que até os cafés fecham às 19:00h se está tornando hiperactivo como nunca se vira, em especial de há meia dúzia de anos para cá…

Um bairro onde as mulheres atiraram às urtigas o crochet e os homens as olham espantados, onde elas se dedicam entusiástica e efusivamente à acção cívica e abraçam o social com a mesma devoção que a Isabel Jonet entrega a alma aos pobrezinhos. A propósito, um cartaz à entrada da pastelaria anuncia-a como oradora convidada numa palestra promovida pelo grupinho “Escravas De Madre Teresa” calculo eu que de Calcutá pois o coronel, velho combatente da India portuguesa abraçou a causa sem sequer se interrogar e participará igualmente na tal palestra, intitulada “Será A Pobreza Trilho De Redenção” ?

Toda esta gente amorfa ganhou súbita e milagrosamente vida, gente sem objectivos tem agora uma causa, a crise criou a oportunidade e toda a vizinhança, tudo quanto era dona de casa desesperada ou frustrada é agora um soldado mobilizado na nobre tarefa da caridade e do voluntariado, as cabeleireiras da urbanização voltaram a abrir aos sábados de tarde, acredito que uma graça divina caia actualmente sobre os pobres na minha paróquia, a reciclagem de roupas, calçado, brinquedos e livros atingiu proporções inusitadas de que as pagelas que estas santas senhoras distribuem nos dão conta com um fervor desmesurado.

Por favor não estranhem a minha ausência, vou desaparecer por uns tempos, alguém disse a estas alminhas caridosa que em tempos dei aulas no oratório salesiano e chegou-me aos ouvidos estarem contando comigo, como contribuinte da sustentabilidade do grupinho e sobretudo para debater com a Jonet a vida e a obra de S. João Bosco … 



http://mariadonadecasa.blogspot.pt/2015/03/como-nao-podia-deixar-de-ser-num-blogue.htmlhttp://mariadonadecasa.blogspot.pt/2015/03/como-nao-podia-deixar-de-ser-num-blogue.html

quarta-feira, 11 de março de 2015

229 - O PREÇO CERTO ................................................


Com redobrado cuidado, coisa que nem era apanágio seu, evitou riscos ou pancadas no esmalte branco da banheira, todo o cuidado seria pouco, o apartamento era novo e a confiança com os vizinhos era ainda recente, por isso a desmembrou sem pressa, com ternura, e muito pesarosamente.

Armado de sentida lástima não conseguiu contudo evitar, quando do corte e estraçalhar de zonas mais intimas, o emergir de recordações gravadas a fogo na sua memória, nem que uma ou outra lágrima lhe tivesse acudido e soltado, à revelia do asseio pelo qual tanto primava.

Manobrava o cutelo e a faca com destreza, somente os sacos de plástico lhe pareciam não ser suficientes para o efeito, nem compreendia a fobia que repentinamente se levantara à volta e contra os mesmos. Em boa verdade nunca pensara que um chapadão acabasse como acabou, cada vez se tornava mais difícil encontrar quem acatasse ordens sem as discutir ou aceitasse trabalhar aos fins de semana e feriados, e ele atravessava uma fase em que dificilmente aceitava ser contrariado, até por lhe ser pacifico que toda e qualquer razão o assistia.

Noutro canto da cidade, não fossem as novas medidas de combate ao tráfico de seres humanos e um pai teria mesmo conseguido vender a filha, menor. A vida, ou simplesmente sobreviver, era coisa que andava pela hora da morte, e com maior ou menor riqueza de pormenores era assim, ou era isto que a imprensa trazia à colação e estampava na primeira página com fotografias a cores ou desenhos detalhados.

Tudo se vendia, tudo se comprava, tudo se traficava, tudo tinha um preço. O povinho espantava-se e devorava este tipo de notícias com a mesma avidez com que acompanhava na Tv o “Preço Certo”, raramente se questionando sobre causas ou razões, e menos ainda sobre os preços dos produtos e serviços a pagar ou o custo fiscal das transacções.

Tudo tem um preço, a questão é se o dito é baixo ou alto, e o busílis assenta simplesmente na questão de sim ou não e se estamos dispostos a pagá-lo.

Antes que me chamem nomes por tê-lo comprado vermelho, digo-vos que ontem, finalmente, fui comprar no Stand Maravilhas um soberbo carro de cinco portas. Custei a decidir-me, quer o stand quer a marca estavam repletos de carros para todos os gostos e sobretudo para todas as bolsas. Fiz as contas de cabeça e de papel e lápis e conclui que, uns modelos não estavam ao meu alcance e outros não valiam o carcanhol que por eles se pedia. No fim tomei firmemente uma opção meramente racional e de acordo com os meus rendimentos e avaliação do produto e das circunstancias.

Decidi-me pelo preço justo e por um modelo que conquistara a minha Maria desde o dia em que pela primeira vez visitáramos o Stand Maravilhas. Comprei um Nissan Note branco pérola que lhe luzira ao coração e fui para o café de ar inchado e mãos nos bolsos celebrar e comemorar, isto é, molhar a compra e mostrar àqueles pindéricos que ainda me dou ao luxo de gritar de alto e dar ordens à “CrédiBom”. 

Escolhi bem e foi uma opção deveras racional, o vendedor de usados foi o primeiro a reconhecer a minha sagacidade, tanto que me presenteou com um vigoroso aperto de mão e uma valente palmada nas costas. Não é todos os dias que vemos gabada a nossa perspicácia, trago esta conversa ao de cima porque os cabrões impiedosos no café

- A Renault dá mais tempo p’ra pagar e sem juros ó parvalhão – largou o César a quem a sogra oferecera um lindo Aixam bordeaux …

- A Toyota tem carros melhores e mais baratos e tinha-te dado mais tempo de garantia ó xoné - Alvitrou o Carriço que há uns cinco anos pediu o Mercedes emprestado à mãe e ainda não teve ocasião de devolver-lho…

No meio desta festarola salvou-se o Simões, o único que teve uma atitude digna e consentânea com a longa amizade que levamos

- Toma lá Baião compra uma ponteira de escape daquelas que roncam com estes vinte euros goza bem o carrinho, saúde, felicidade vida longa e bons passeios, qualquer dia temos que ir molhá-lo à Amieira não te parece ?

Confesso que me vieram as lágrimas aos olhos mas contive-me, por várias razões, vinte euros não chegariam para a ponteira, nem sequer para a gasolina de ida e volta à Amieira, não mencionando que me caberia a mim pagar o almoço comemorativo da compra, mas sobretudo para não me distrair e me afastar do tema de hoje que se bem me lembro é o preço certo ou não é ? O preço que estamos dispostos a pagar pelas coisas, é ou não é ? E certamente não será por uma ponteira, um almoço ou uns litros de gasolina mas pelo preço da vida, ou melhor do custo de vida.

No nosso país está tudo pela hora da morte. Esta democracia está a sair-nos caríssima não está ? E mais cara ainda se atentarmos no pouco que nos dá em troca. Para a carga fiscal que suportamos temos futuro a menos, emprego a menos, estabilidade a menos, saúde a menos, fim do mês a menos e dias a mais.

Temos seguramente crescimento a menos e oportunistas a mais, estadistas a menos e ladrões a mais, enforcados a menos e políticos a mais.

E ainda a música da regionalização não recomeçou a soar de novo…



terça-feira, 3 de março de 2015

228 - ROCK AND HIS GIRLFRIEND ..........................

             Eu tinha onze, doze e treze anos e desta vez não me resta a mínima dúvida. Lembro-me como se fosse hoje porque ela era a mais bonitinha de todas. Bem, havia uma outra mas não me marcou de igual forma, tanto que só vagamente a recordo e até o seu nome se me foi.

À Lourdes Anacleto não, nunca a esqueci, pra ser franco inda hoje páro para vê-la passar se comigo se cruza, ainda conserva uma carinha laroca, é quase tão linda como a minha mãezinha.

Dele não posso dizer o mesmo, até por ter surgido quando a minha devoção estava já toda concentrada nela, para além de não lhe achar graça nenhuma ao nariz adunco, que ainda permanece como se fosse uma imagem de marca, um nariz demasiado grande pra cara tão pequena. Porém não era isso que nos assustava, que me assustava, antes o seu grau de exigência, a sua atitude decidida, no entanto confesso ter-me cativado, ainda hoje vitupero gente hesitante, ignorante, ou que modifica a opinião ao sabor do vento. Com ele nunca havia dúvidas, afirmava-se de forma clara e imediata, era opinioso, não perdia dias a pensar num qualquer assunto e agia em conformidade e com coerência. Gostei logo dele, era como o meu paizinho, que detestava bandeirinhas ou vendidos.   

Professava francês, então a língua prima da diplomacia, do amor e da cultura e fazia-o magistralmente (era um magister) still today my french supera largamente o inglês e confesso que foi com agradável surpresa e espanto que há semanas dei com ele na esplanada que frequento.

Afinal somos vizinhos, reconheci-o logo, aquele narigão e o ar alegre e contagioso são inconfundíveis, os mesmos modos precipitados, a mesma urgência no falar, os mesmos cigarros comidos d'umas mãos que nunca param. Um destes dias fá-lo-ei, mas desta vez a surpresa não me permitiu ter-me apresentado, identificado, ou talvez por jamais ter sido simpático para mim, ou para qualquer outra pessoa, não o era, nunca o foi, enfim, lá terá sido para quem ele quis. Quem imaginaria que vizinhos, o Roque pelas minhas bandas, foi assim que ficou conhecido entre nós, nem doutor nem professor, nem sequer senhor professor, só Roque, tão curto e seco como a demora de uma resposta ou decisão sua.

Mas vê-lo foi revê-la e lembrá-la, foi recordar os tempos em que desejei para a minha mãezinha um amor assim, como o que ela viveu, como o que eles viveram, como o que eu vi nascer e crescer quando repentinamente, ela mais apressada e a chegar à tangente, antes que a campainha dos feriados a apanhasse por ter ficado até ao último minuto na sala dos profs, ou quando trocou as soquetes pelas meias de vidro, ou os sapatos rasos pelos saltos de agulha. 

       Trocara o ar juvenil pelo vermelho forte dos lábios e afivelara um sorriso permanente, o olhar passara a ausente e o ouvido estava sempre lá fora, lá longe, desatava em corrida mal tocava à saída e de novo para a sala dos professores onde atestava o ar alegre com que nos bafejava, toda ela quase tão criança como nós, de feições miudinhas, a cintura estreita, as pernas esguias e fininhas rematadas atrás por uma costura negra que as riscava de alto a baixo, sim, quase tão elegante e bonitinha como a minha mãezinha, diferente somente o cabelo, nela curto e encaracolado e na mãezinha longo e ondulado.

Um dia foi finalmente desvendado o segredo de tanta felicidade, o Roque desenrolando-lhe ternamente um caracol entre os dedos. O facto foi trovão que ribombou em segundos, aquela paixão era um truísmo, estava desvendado o mistério, toda a escola rejubilava parecendo então mais clara, sim foi em Stª Clara, agora mais caiada, mais branca, mais florida, mais invadida pelo sol, mais acolhedora, foi tal a paixão que os admirei, invejei e abençoei, e enterneceu-me tanto que desejei uma igual para a mãezinha.

A vida ensina-nos cada coisa…

Não somente a matemática e o francês a Lourdes Anacleto e o Roque me ensinaram, ensinaram-me vida, ternura, amor, dedicação, entrega e exemplo. Confesso não ser muito bom em contas e que o francês de nada me vai servindo por estar caído em desuso, mas que dizer do resto Senhor ?

A vida Senhor ?
Não lha devo também a eles ?

Ultrapassei a maturidade, o Roque ficou velho, e meu vizinho, nem imaginará como me tocou, não imaginarão, nem ele nem ela, a quem vi passar de jovens a casal adulto, que testemunhei como durante um período ou em menos de um ano transformaram a rotina em felicidade e contagiaram toda a escola, toda a comunidade educativa como agora se diz, ou antes todo o agrupamento escolar. Deviam ir à merda com estas novas classificações adjectivos e substantivos, tudo trampa caduca, perene mesmo só o exemplo daqueles dois, inquietos por chegar á escola, inquietos por estar na escola, inquietos por sair ao fim do dia, inquietos por se fortalecerem e guindarem ao altar, ávidos e imbuídos de uma inquietude virulenta e benfazeja que a meus olhos os tornou imortais.

Que será feito dela que há anos não vejo ? Ele por aqui, não acamado mas pouco faltando, e ela ? Que será feito dela e daquele corpo franzino que o amor fortaleceu e elevou quase à eternidade ? Ela que tanto desejei tivesse sido minha mãezinha, ela cuja felicidade desejei para a mãezinha ?

Quando comecei a namorar não tive aulas, nem explicações, nem catequese. Via cinema, via muito cinema, muito dele francês, quase todo francês, contudo quando foi a sério desenterrei o exemplo daqueles dois, da Lourdes Anacleto e do Roque, assim mesmo, sem mais adjectivos ou substantivos, Roque.

O exemplo daquele par guiou-me no caminho escolhido para ser eu mesmo e não estou arrependido, aquele exemplo enterneceu-me desde a primeira hora e mais que todos os filmes vividos. Inda hoje não sou muito bom nas contas mas faço-as, já não falo muito bem francês mas ainda o leio e traduzo correctamente o que me desenrascou na vida muito mais que satisfatoriamente, não mo ensinaram mas foi com eles que ternura, amor, carinho e meiguice ganharam em mim significado.

A vida ensina-nos cada coisa…

E dá voltas do caralho não dá ?




sábado, 7 de fevereiro de 2015

227 - AQUELA VELHA CADEIRA * por Maria Luísa Baião


Não sei porque simbolismo tem este singular objecto tido ao longo da história uma curiosa proeminência, se não mesmo um insofismável protagonismo.

Eu própria, quando pequenina, tive a minha cadeira privada, alentejana, vermelha, florida, com assento de buinho truncado, hoje obra de arte que só mãos experientes de artificie ainda produzem para satisfação de ecológico e saudoso artesanato.

Nos meus tempos de menina de catequese tive mais uma vez uma relação particular com esse singular objecto/utensilio. No catecismo, Ele era mostrado na sua majestosa cadeira, rodeado de anjos, segurando nas mãos os raios com que havia de fulminar os pecadores. Perto d’Ele S. Pedro carregava um impressionante molho de chaves.

Também o rei Salomão aparecia sentado em rica cadeira, administrando a justiça e impelindo duas mães à verdade através do pressuposto sacrifício de uma inocente criança. Herodes surgiria contudo exaltado, levantando-se apressado no temor de ser destronado daquela cadeira de ouro, ordenando por mor dela, e para que a lenda se não cumprisse, que fossem executadas todas as crianças do reino.

Já Pilatos, sabido, indolentemente se ergueu da tal cadeira real em busca de uma bacia onde pudesse lavar as mãos da obrigação que lhe cabia, fazer justiça. Não reza a história se com tal gesto nos legou um facto ou um hábito.

Objecto de arte, brinquedo de criança, obra de artesanato, trono divino e assento de reis, a cadeira tem vindo ao longo dos tempos a manter o seu estatuto diferenciador, até como objecto classista.

Não esqueço nunca que, para chegar à altura dos homens à mesa, quando pequenina, não passava sem uma cadeira especial, alavancada com duas grossas almofadas, como não esqueço a cadeira do barbeiro, pois era a ele que meus pais nessa época recorriam. Com as suas aparatosas particularidades, desde o assento que se voltava higienicamente cada vez que um novo freguês tomava nela lugar, até à posição de encosto, obrigatória para quem só desejava barba.

À cadeira viria a ter um medo de morte quando os anos e as cáries me levaram ao dentista, nem os seus miraculosos acessórios me deslumbravam, o foco de luz fortíssimo mesmo por cima dos olhos, ou o prático lugar para expelir a mistura desinfectante com que a boca era bochechada e onde se ouvia o tinir do dente extraído quando nele tombava.

Outras cadeiras me fariam sofrer vida fora, imensas, enormes, autênticos cadeirões que na minha vida universitária tive que transpor e tantas delas com cada dentista ! Ou dentista ou sapateiro, trabalhando sem anestesia nem consideração pela paciente !

Mais sofrido é o trabalho com cadeiras de rodas, onde atrás de cada uma se esconde um drama, um monte de sofrimento a que não urdimos fugir, de que o simples chiar tememos, e cuja lembrança é suficiente para avivar na memória o horror do nosso tempo quando ao volante nos sentamos, numa confortável cadeira, estrada fora, matando e morrendo.

Temor inspira a cadeira do poder, do patrão, do chefe, do doutor, do juiz, sempre melhor e maior que a nossa, sempre mais alta que a nossa, propositadamente, estatutariamente.

Adoro as cadeiras de praia, o sol, o mar, o bronzeado, a maresia, as férias, o tempo livre, a leitura, como adoro as cadeiras de campismo, o espaço amplo, o piquenique, a liberdade, o descanso para os braços, a leveza da madeira, o pano das costas, os pés que se partem, foi numa dessas cadeiras que Salazar sucumbiu.

Prezo as cadeiras antigas das esplanadas, o contacto frio com o metal nas noites de frescura procuradas no verão, os amigos, as conversas sem fim, a groselha com gelo e limão, as estrelas do céu, o fumo dos cigarros, o sabor e o cheiro acolhedor da bica, a roupa leve, o espirito liberto.

Nos Estados Unidos há um corredor com uma única cadeira ao fundo, discute-se agora a sua utilidade e exemplaridade. Tem anos e anos de vida e vidas e vidas dentro desses anos. É uma velha cadeira onde ninguém se quis sentar, e onde apesar de tantos, contrariados, se terem contudo sentado, não continua a faltar quem nela contrariado se sente. Valerá a pena conservar aquela velha cadeira ? **

* Publicado por Maria Luísa Baião no Semanário Imenso Sul, em 12-11-1999

* * THE OLD SPARKY