Com redobrado cuidado, coisa que nem era apanágio seu, evitou riscos ou pancadas
no esmalte
branco da banheira, todo o cuidado seria pouco, o apartamento era novo e a
confiança com os vizinhos era ainda recente, por isso a desmembrou sem pressa,
com ternura, e muito pesarosamente.
Armado de sentida lástima não conseguiu contudo evitar, quando do corte e estraçalhar de zonas
mais intimas, o emergir de recordações gravadas a fogo na sua memória, nem que
uma ou outra lágrima lhe tivesse acudido e soltado, à revelia do asseio pelo
qual tanto primava.
Manobrava
o cutelo e a faca com destreza, somente os sacos de plástico lhe pareciam não
ser suficientes para o efeito, nem compreendia a fobia que repentinamente se
levantara à volta e contra os mesmos. Em boa verdade nunca pensara que um
chapadão acabasse como acabou, cada vez se tornava mais difícil encontrar quem acatasse
ordens sem as discutir ou aceitasse trabalhar aos fins de semana e feriados, e
ele atravessava uma fase em que dificilmente aceitava ser contrariado, até por
lhe ser pacifico que toda e qualquer razão o assistia.
Noutro
canto da cidade, não fossem as novas medidas de combate ao tráfico de seres
humanos e um pai teria mesmo conseguido vender a filha, menor. A vida, ou
simplesmente sobreviver, era coisa que andava pela hora da morte, e com maior
ou menor riqueza de pormenores era assim, ou era isto que a imprensa trazia à
colação e estampava na primeira página com fotografias a cores ou desenhos
detalhados.
Tudo
se vendia, tudo se comprava, tudo se traficava, tudo tinha um preço. O povinho
espantava-se e devorava este tipo de notícias com a mesma avidez com que
acompanhava na Tv o “Preço Certo”, raramente se questionando sobre causas ou
razões, e menos ainda sobre os preços dos produtos e serviços a pagar ou o
custo fiscal das transacções.
Tudo
tem um preço, a questão é se o dito é baixo ou alto, e o busílis assenta
simplesmente na questão de sim ou não e se estamos dispostos a pagá-lo.
Antes
que me chamem nomes por tê-lo comprado vermelho, digo-vos que ontem, finalmente, fui
comprar no Stand Maravilhas um soberbo carro de cinco portas. Custei a
decidir-me, quer o stand quer a marca estavam repletos de carros para todos os
gostos e sobretudo para todas as bolsas. Fiz as contas de cabeça e de papel e
lápis e conclui que, uns modelos não estavam ao meu alcance e outros não valiam
o carcanhol que por eles se pedia. No fim tomei firmemente uma opção meramente
racional e de acordo com os meus rendimentos e avaliação do produto e das
circunstancias.
Decidi-me
pelo preço justo e por um modelo que conquistara a minha Maria desde o dia em
que pela primeira vez visitáramos o Stand Maravilhas. Comprei um Nissan Note
branco pérola que lhe luzira ao coração e fui para o café de ar inchado e mãos
nos bolsos celebrar e comemorar, isto é, molhar a compra e mostrar àqueles
pindéricos que ainda me dou ao luxo de gritar de alto e dar ordens à
“CrédiBom”.
Escolhi
bem e foi uma opção deveras racional, o vendedor de usados foi o primeiro a
reconhecer a minha sagacidade, tanto que me presenteou com um vigoroso aperto
de mão e uma valente palmada nas costas. Não é todos os dias que vemos gabada a
nossa perspicácia, trago esta conversa ao de cima porque os cabrões impiedosos
no café
- A
Renault dá mais tempo p’ra pagar e sem juros ó parvalhão – largou o César a
quem a sogra oferecera um lindo Aixam bordeaux …
- A
Toyota tem carros melhores e mais baratos e tinha-te dado mais tempo de
garantia ó xoné - Alvitrou o Carriço que há uns cinco anos pediu o Mercedes
emprestado à mãe e ainda não teve ocasião de devolver-lho…
No
meio desta festarola salvou-se o Simões, o único que teve uma atitude digna e
consentânea com a longa amizade que levamos
-
Toma lá Baião compra uma ponteira de escape daquelas que roncam com estes vinte
euros goza bem o carrinho, saúde, felicidade vida longa e bons passeios,
qualquer dia temos que ir molhá-lo à Amieira não te parece ?
Confesso
que me vieram as lágrimas aos olhos mas contive-me, por várias razões, vinte
euros não chegariam para a ponteira, nem sequer para a gasolina de ida e volta à
Amieira, não mencionando que me caberia a mim pagar o almoço comemorativo da
compra, mas sobretudo para não me distrair e me afastar do tema de hoje que se
bem me lembro é o preço certo ou não é ? O preço que estamos dispostos a pagar
pelas coisas, é ou não é ? E certamente não será por uma ponteira, um almoço ou
uns litros de gasolina mas pelo preço da vida, ou melhor do custo de vida.
No
nosso país está tudo pela hora da morte. Esta democracia está a sair-nos
caríssima não está ? E mais cara ainda se atentarmos no pouco que nos dá em
troca. Para a carga fiscal que suportamos temos futuro a menos, emprego a
menos, estabilidade a menos, saúde a menos, fim do mês a menos e dias a mais.
Temos
seguramente crescimento a menos e oportunistas a mais, estadistas a menos e
ladrões a mais, enforcados a menos e políticos a mais.
E
ainda a música da regionalização não recomeçou a soar de novo…