Não sei
porque simbolismo tem este singular objecto tido ao longo da história uma
curiosa proeminência, se não mesmo um insofismável protagonismo.
Eu própria,
quando pequenina, tive a minha cadeira privada, alentejana, vermelha, florida,
com assento de buinho truncado, hoje obra de arte que só mãos experientes de
artificie ainda produzem para satisfação de ecológico e saudoso artesanato.
Nos meus
tempos de menina de catequese tive mais uma vez uma relação particular com esse
singular objecto/utensilio. No catecismo, Ele era mostrado na sua majestosa
cadeira, rodeado de anjos, segurando nas mãos os raios com que havia de
fulminar os pecadores. Perto d’Ele S. Pedro carregava um impressionante molho
de chaves.
Também
o rei Salomão aparecia sentado em rica cadeira, administrando a justiça e
impelindo duas mães à verdade através do pressuposto sacrifício de uma inocente
criança. Herodes surgiria contudo exaltado, levantando-se apressado no temor de
ser destronado daquela cadeira de ouro, ordenando por mor dela, e para que a
lenda se não cumprisse, que fossem executadas todas as crianças do reino.
Já Pilatos,
sabido, indolentemente se ergueu da tal cadeira real em busca de uma bacia onde
pudesse lavar as mãos da obrigação que lhe cabia, fazer justiça. Não reza a história
se com tal gesto nos legou um facto ou um hábito.
Objecto
de arte, brinquedo de criança, obra de artesanato, trono divino e assento de
reis, a cadeira tem vindo ao longo dos tempos a manter o seu estatuto
diferenciador, até como objecto classista.
Não esqueço
nunca que, para chegar à altura dos homens à mesa, quando pequenina, não
passava sem uma cadeira especial, alavancada com duas grossas almofadas, como
não esqueço a cadeira do barbeiro, pois era a ele que meus pais nessa época
recorriam. Com as suas aparatosas particularidades, desde o assento que se
voltava higienicamente cada vez que um novo freguês tomava nela lugar, até à
posição de encosto, obrigatória para quem só desejava barba.
À
cadeira viria a ter um medo de morte quando os anos e as cáries me levaram ao
dentista, nem os seus miraculosos acessórios me deslumbravam, o foco de luz fortíssimo
mesmo por cima dos olhos, ou o prático lugar para expelir a mistura desinfectante
com que a boca era bochechada e onde se ouvia o tinir do dente extraído quando
nele tombava.
Outras
cadeiras me fariam sofrer vida fora, imensas, enormes, autênticos cadeirões que
na minha vida universitária tive que transpor e tantas delas com cada dentista
! Ou dentista ou sapateiro, trabalhando sem anestesia nem consideração pela paciente !
Mais
sofrido é o trabalho com cadeiras de rodas, onde atrás de cada uma se esconde
um drama, um monte de sofrimento a que não urdimos fugir, de que o simples
chiar tememos, e cuja lembrança é suficiente para avivar na memória o horror do
nosso tempo quando ao volante nos sentamos, numa confortável cadeira, estrada
fora, matando e morrendo.
Temor
inspira a cadeira do poder, do patrão, do chefe, do doutor, do juiz, sempre melhor
e maior que a nossa, sempre mais alta que a nossa, propositadamente, estatutariamente.
Adoro
as cadeiras de praia, o sol, o mar, o bronzeado, a maresia, as férias, o tempo
livre, a leitura, como adoro as cadeiras de campismo, o espaço amplo, o
piquenique, a liberdade, o descanso para os braços, a leveza da madeira, o pano
das costas, os pés que se partem, foi numa dessas cadeiras que Salazar
sucumbiu.
Prezo
as cadeiras antigas das esplanadas, o contacto frio com o metal nas noites de frescura
procuradas no verão, os amigos, as conversas sem fim, a groselha com gelo e
limão, as estrelas do céu, o fumo dos cigarros, o sabor e o cheiro acolhedor da
bica, a roupa leve, o espirito liberto.
Nos Estados
Unidos há um corredor com uma única cadeira ao fundo, discute-se agora a sua utilidade
e exemplaridade. Tem anos e anos de vida e vidas e vidas dentro desses anos. É uma
velha cadeira onde ninguém se quis sentar, e onde apesar de tantos,
contrariados, se terem contudo sentado, não continua a faltar quem nela contrariado se sente. Valerá
a pena conservar aquela velha cadeira ? **
* Publicado por Maria Luísa Baião no Semanário Imenso
Sul, em 12-11-1999
* * THE OLD
SPARKY