Com
o advento do 25 de Abril e o desenvolvimento do processo revolucionário com ele
iniciado, o PREC, os portugueses viraram-se sobretudo para o seu umbigo, tendo inclusive
o desenrolar dos acordos de independência das colónias passado a factos passados, a passado. Inicialmente o acordo de Alvor, em Portimão 1975, e mais tarde, em 1991, o acordo de Bicesse,
supervisionado pela ONU e regularizando o fim da guerra civil angolana e a
partilha do poder entre o MPLA e a UNITA, nunca foram factos que nos tivessem intressado apesar de se revestirem da maior implicação para nós e nosso futuro. Entre outras deliberações este acordo
estipulou a realização de eleições livres e democráticas em Angola supervisionadas
pelas Nações Unidas e a integração das forças beligerantes dos diferentes partidos numas novas Forças
Armadas Angolanas, cabendo ao Estado Português, através das suas próprias
forças armadas, ministrar a formação necessária a este novo exército, para o
que enviaria formadores e conselheiros militares.
Recuando
aos tempos anteriores a Bicesse e a Maio de 1991, lembro o muito anterior acordo de Alvor, assinado em Janeiro de
1975 entre o MPLA, UNITA e FNLA e nunca cumprido, a independência de Angola por
parte unilateral do MPLA foi assumida em Novembro desse ano e debaixo duma
guerra civil iniciada ainda antes do acordo assinado. A independência viria nos
dias seguintes e à vez a ser igualmente declarada por cada um desses movimentos.
Calcula-se que essa guerra civil tenha sido culpada por quinhentas mil vítimas
africanas, viria contudo e mau grado os esforços de Bicesse a terminar somente
em 2002.
O
acordo de Alvor viu portanto ultrapassado por parte dos angolanos o foco de
interesse que Portugal nele depositava, doravante esse nosso falhanço garantiria que
fossem quais fossem as condições e os modos de que a descolonização se
revestisse ela era dada como certa muito antes de cumprida, porém tal desiderato colocou-a fora do nosso
controle por muitas cláusulas que a acautelassem.
Foi
assim que ao invés de, nesse momento termos caminhado para Angola, Moçambique,
Guiné, Timor e para os restantes territórios em força, a fim de manter o nosso
poder negocial e o controle da situação impondo as condições que mais nos
interessassem e acautelassem as vidas e o património dos milhares de colonos
portugueses e a continuidade da nossa presença, aliás do interesse de ambas as
partes como se tem verificado, titubeámos, sem um poder definido engonhámos, ninguém mandava mas todos davam ordens que ficavam por cumprir. O inútil improviso e passa-culpas habitual.
Ao
invés da imposição negocial pela força claudicámos, soçobrámos, com
consequências desastrosas das quais a população portuguesa nunca teve uma
consciência perfeita, tendo mesmo preferido voltar ou devotar comodamente as
costas ao problema e continuado o seu PREC, maldizendo e malfadando os que por
lá ficaram e os que retornaram, sendo caso para dizer que se não tivessem contado
com os milhões de dólares americanos aqui despejados em seu auxilio e geridos
pelo IARN, Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais, dificilmente estes teriam
sido capazes de refazer as suas vidas, atendendo aos milhares aqui chegados
unicamente com a roupa que traziam sobre o corpo.
Mas
os reflexos das tímidas e incipientes negociações para a independência das
colónias tiveram efeitos mais profundos, menos visíveis por mais longínquos mas
indubitavelmente mais condicionantes e determinantes do modo como lhes virámos
as costas, com o rabinho entre as pernas e caladinhos que nem ratinhos.
A
eclosão do 25 de Abril ditara a estagnação do processo de recrutamento e
mobilização, congelara idas e vindas dos batalhões que seriam ou iriam render
os que terminavam as suas comissões nas províncias ultramarinas, tacitamente fora
ditado um cessar fogo nos cenários de guerra, ninguém a desejava e todos
deixaram cair os braços crentes nessas expectativas e os nossos militares circunscrevem-se
por iniciativa própria aos aquartelamentos enquanto os guerrilheiros saem das
matas a que durante anos tinham sido confinados, confluindo para
as cidades, iniciando aí a luta de ascensão pelo poder entre movimentos e dentro de cada movimento, luta que
a independência dada sem imposições de força deixara sempre adivinhar ou antever.
A
luta transferia-se gradualmente do mato para as cidades ante o olhar impávido dos
nossos militares, maniatados e vendo-a recrudescer, e nem aos nossos compatriotas
podendo acudir dado o clima de guerra civil instalado e crescente, mas também
por à luz dos acordos e tréguas não lhes serem permitidas ingerências nem
sequer disporem de força para as apoiarem ou garantirem caso propositada ou
inadvertidamente dela tivessem tentado fazer uso.
Ora
esse clima de guerra civil veio precisamente a descambar nisso, numa guerra
civil horrorosa e fratricida à qual os portugueses na metrópole fecharam uma
vez mais comodamente os olhos e viraram as costas, preocupados e entretidos que
andavam com o cerco à Assembleia Constituinte, que teve lugar a uma Quarta-feira,
dia 12 de Novembro de 1975, casualmente ou não o dia seguinte àquele em que
oficialmente se processou a independência de Angola, preocupados com as
conquistas de Abril, com a implantação das suas conquistas, com os direitos a
restabelecer e a adquirir, julgando erradamente que o mundo se resumia a este
cantinho à beira-mar plantado.
Como
estávamos enganados, o cerne do problema nem era Angola ou Moçambique as duas
colónias ou províncias ultramarinas mais significativas, aliás a terminologia
utilizada, mais para consumo interno do tuga que outra coisa, assim o ditava.
Para nós eram províncias ultramarinas, longínquas certamente, mas parte do território nacional
e dele inseparáveis. Salazar herdara o país assim e do mesmo modo pensava
entrega-lo na hora de passar o testemunho, tratava-se dum património geográfico
mas era também um património histórico. Já para o estrangeiro ou para a ONU
tratava-se de territórios sob nossa administração e responsabilidade era certo,
mas territórios colonizados e que a exemplo do resto do mundo deveríamos
entregar, devolver, conceder a independência, a autonomia. Para a ONU
tratar-se-ia dum problema interno, razão pela qual nunca admitiu o seu
tratamento ou abordagem como se de uma guerra se tratasse ou anuísse enviar para
esses cenários os seus capacetes azuis.
O
termo, a palavra guerra era utilizada somente entre nós e para consumo interno,
guerra era coisa que o exterior nunca admitiu, quando muito admitiu estarmos a
braços com uma guerra de guerrilha derivada da nossa relutância em conceder a
essas colónias a independência a que tinham, direito. Nada mais claro, nenhum
país nos declarara guerra nem nós a qualquer um deles, africano ou não, porém,
se durante anos, todos os países, com a ONU à frente condescenderam com Salazar
tal deveu-se exclusivamente ao clima de guerra fria em que o mundo vivia e ao
facto da presença portuguesa em África ser vista como a do bombeiro de serviço.
Ao
nosso país foram dadas condições e armamento, dado, vendido ou trocado,
unicamente com o fito de mantermos o status quo, isto é conter a “guerra”, a guerrilha,
não permitindo que a África austral, ou África meridional se incendiasse, não
esqueçamos o Zaire ou Congo, a Zâmbia, o Zimbaué, antiga Rodésia, mais a leste
a Tanzânia, junção de "Tanganica" e "Zanzibar" dois estados
que se uniram em 1964. São muitos estados e muitas lutas p’la independência, a
que devemos juntar uma incipiente e tímida luta de autonomia travada na Namíbia,
solo sob domínio da África do Sul, país que não desejava de modo nenhum que
esse incêndio deflagrasse. Podemos com algum acerto dizer que Angola estava bafejada,
ou melhor ameaçada por um anel de fogo, era um barril de pólvora que podia
rebentar a qualquer momento.
Este
cenário de revoluções permanentes e de combates diários, este anel de fogo
encravado entre Angola, Moçambique e a África do Sul, por causa do qual se
fizeram e desfizeram algumas aparentemente inverosímeis alianças *, parecendo
flutuarem ao sabor dos interesses do momento pois se faziam num dia e
desfaziam no outro para se recomporem no terceiro, estas forças vivas ou ocultas
de guerras e as batalhas que assolaram a África a sul do equador, nas quais os
portugueses tiveram participação activa forçada ou voluntariamente mas nas
quais se deixaram envolver, desenharam um dos períodos mais negros e mais
ignorados da nossa história, história remota a que os portugueses cómoda e
mentalmente puseram termo em 25 de Abril de 74.
Porém
somente nas suas cabecinhas a história parara, por trás dos panos montados os portugueses
e a história continuaram de mãos dadas, ou atadas, é esse lado negro e tão invisível
quão inverosímil da nossa história pós independência que em parte vos desejo
contar, vos desejo dar conta, acautelando que também esta visão é parcial e
redutora, é a minha e como poderão facilmente calcular ou inferir, não tenho o
dom da ubiquidade. Contudo
creio firmemente muito poder contribuir com um testemunho para o
esclarecimento e clareza do muito que se passou em África por nossa causa, inda
que depois de “nós”. (continua).