Como não lembrar se corporiza um dos meus momentos felizes,
mas também uma das minhas, e muitas, compreensíveis frustrações e
arrependimentos. E tantos são que nada mesmo ganho em
relembrar. Mas lembro,
já que não esqueço, feliz ou infelizmente lembro, com saudade pois que dela
ainda gosto.
A estória conta-se em poucas penadas. Já vos estou a ver
palpitantes de curiosidade, espreitando avidamente este íntimo e este passado
recheados de desilusões, frustrações e arrependimentos, vos garanto. E de erros, tantos erros que quaisquer de vós com a minha
idade não somará nem metade, mas não eu que errei, erro e hei-de continuar
errando.
Quem não desconfiou já do meu ar seguro ?
Da minha faceta extrovertida ?
Do meu carácter prá-frentex ?
Tudo para esconder
insuficiências, incapacidades, anos de erros acumulados, de arrependimentos
sentidos, desilusões que são chagas, frustrações que me revoltam e põem de mal
comigo mesmo. Nunca o confesso, nunca o confessei, e jamais o admitirei,
muito menos aqui que esta merda é mais pública que julgamos e tem montes de
gente somente espreitando, gente que nunca dá sinal de si, não comenta, não
contesta, cobardemente resguardada por consciências comezinhas e que, se
tivessem a ponta de um corno de vergonha, já se tinham apagado a si mesmas e
hellas ! Do próprio mundo e da vida ! Pois nem farão a mínima
falta nem consta que façam algo que interesse minimamente. Ornitorrincos lhes
costumo chamar, isto porque posso ser um falhado mas sou respeitador, quando
não, imaginem só a desgraça ou praga que lhes rogaria.
A Net tem realmente uma fauna muito “sui generis” cujo
estudo empírico ando desenvolvendo há algum tempo e de que vos darei conta na
altura certa. Em boa verdade alguns personagens nem direito têm a ser
designados fauna, antes os incluiria na categoria de flora, concluído e provado
estar para mim haver couves com um QI muito superior !
Mas ia eu dizendo, já vos estou vendo escorrer baba de curiosidade,
no mínimo tanta quanto do cão de Pavlov, e não arrisco mais não venha a levar
por descuido alguma dentada de impaciência.
Eu era por essa época professor numa escola secundária da
cidade, sempre dado ao progressismo e à esquerda, os mesmos movimentos que
agora tanto abomino porquanto vanguarda das nossas cabeças mais estúpidas. Guardara desde o 25 de Abril um espólio desse movimento de
idealistas cretinos, espólio de que me orgulhava e me servira anos a fio para,
em cada escola e em cada efeméride, promover exposições sobre esse arroto
histórico. Gradualmente fui-me vendo despojado dessas memórias, em cada
um dos eventos não terá faltado cabrão ou filha de puta de esquerdista de merda
que me não tivesse roubado um cartaz ou qualquer outro exemplar desse rico e
único conjunto, a ponto de me ver quase sem nada.
Acudiu-me à ideia nesse ano remoto, solicitar a colaboração
do Centro de Recursos (nessa altura a designação era menos prosaica, como
arquivo por exemplo) de um partido cá do burgo. Diga-se também que nessa altura ainda eu não tinha nada
contra esses partidários, nem eles contra mim, já que com o tempo nos
incompatibilizámos, ainda que não por causa da Cecília. Uma vez que era ela quem estava à frente desse departamento,
logo me prometera colaboração desmedida e quanta eu necessitasse;
- Primeiro
está o 25 de Abril camarada !
estou a contar-vos tal qual ela o afirmou ! Fiquei banzado ! Não tanto pela inusitada disponibilidade e colaboração da
Cecília mas pela sua beleza, pormenor que nem o seu permanente ar meditativo
lograva esconder. Um cabelo liso e negro de azeviche que só visto, aliás toda ela sempre de negro, um rosto
oval, lindo, por baixo de uma franja parecendo o pano subido de um cenário,
sorriso daqueles que nos derretem, encavalitado nuns lábios carnudos,
sequiosos, suscitando desejos, olhos fundos de amêndoa, escuros, rasgados e
pestanudos, que mais que uma vez me fizeram vacilar as pernas já que não
aguentava olhá-los se pestanejassem duas vezes seguidas.
Todos estes atributos tinham como base um peito farto, (e
confesso-vos, mais uma fraqueza minha, sempre adorei mamas grandes, não me
perguntem porquê) peito que me cambalhotava as órbitas se o calhava fixar,
montado numas pernas altas, monumentais, em que por tudo e por nada, até por dá
cá aquela palha, em sonhos ou acordado me via envolvido, apertado, submergido
ou enlaçado.
Nem sei por que não me converti à sua doutrina de imediato e
perante tais argumentos, ou sei, pois por essa época nada mais recordava nem
via que a Cecília, toda irreverente e sorridente no seu blusão de cabedal preto
e cheio de fivelas, imagem de marca que nunca abandonava. Concedo que sou bonito, e há quase vinte anos ainda o era
mais, (perdoem-me a modéstia), a Cecília também não deve ter resistido à minha
beleza, tanto que se eu suspirava por ela, ela suspirava por mim, e, claro,
acabámos várias vezes por nos encontrarmos bebendo umas bejecas e comendo uns
caracóis, delirando e suspirando com a presença um do outro.
Era de Almada, separada, eu já casado há um ror de anos. Nem ela me sugeriu ir para Almada nem eu que ficasse em
Évora. Víamo-nos quando calhava, até calhar quase todos os dias.
Lembrem-se, eu era prof nessa altura, o mesmo é dizer que
não fazia nada, trabalhava poucas horas por semana, não ganhava mal, entrava
tarde e saía cedo, daí compreender a actual luta dos meus ex-colegas, com a
qual me solidarizo. O “ser humano” não foi feito para trabalhar mas para se
dedicar à contemplação, à retórica, à oratória, à filosofia, e ao sexo oposto,
esta deve ser a verdade.
Um belo dia, eu e a Cecília, já fartos de chupar os dentes
por neles se terem metido os nossos olhares gulosos, mas também de repartir o
mesmo caracol, combinámos sair, o que fizemos numa calma noite de verão. Escolhemos um recanto abrigado do luar por baixo de um
sobreiro e ali ficámos falando de nós e da vida umas boas horas. Eu, não querendo ser malcriado, atrevido ou alarve, e,
embora com toda a vontade de a amar e tomar toda ali mesmo sem deixar uma
migalha que fosse, fui ficando quieto. Ela, ou por pudor ou porque esperasse um meu avanço, ia-se
ficando sem me dar o mínimo sinal de abertura, consentimento ou encorajamento.
E eu népia, só conversa, e ela mais conversa.
Talvez a minha incapacidade para um momento de infidelidade
tivesse contado, não sei, não posso jurar, o que sei é que nunca fui infiel até
hoje nem penso sê-lo, o que terá pesado na minha hesitação e reflectido na
atitude dela. Não sei se a Cecília me terá julgado ou ficado chamando
maricas, a verdade é que aquela noite foi uma frustração para ambos e o facto
de não termos voltado a ver-nos é um indicativo dessa desilusão. É com os erros que infelizmente tantas e tantas vezes
aprendemos.
Nunca aquela noite devia ter acontecido.
Uma coisa aprendi, nunca
mais voltou a acontecer-me.
Por que nunca mais saí
com uma mulher ?
Por que deixei de ser
inexperiente ?
Por outra qualquer razão
?
Conhecendo-vos como
penso conhecer, prefiro deixar esse critério às vossas mórbidas curiosidade e
especulação, crente que uma dissecação destas incógnitas nunca será despiciente
para ninguém, até porque de outra forma qualquer dia saberiam mais da minha
vida que eu próprio, o que não me posso dar ao luxo de permitir.