quinta-feira, 21 de abril de 2016

337 - O QUE É UMA BERLIET TRAMAGAL ? .........


O que era uma berliete, perguntou o Júlia, rapaz bem-humorado e espigadote, voluntarioso, vinte e nove anos acabados de fazer e já com mais estágios que um sargento lateiro teria conseguido durante as guerras coloniais. Tudo por também se querer rir da piada largada na tertúlia amesendada em redor da mesa do café e que ele não entendera.

- Uma traseira linda como a frente de uma Berliet !

dissera o Armindo referindo-se à Maria Júlia, a nova funcionária da pizzaria da rua, nova quer dizer, já iria nos trinta e tal ou quarenta, contudo não perdera a beleza, acumulara até, segundo algumas opiniões, uma traseira ou um traseiro considerável, o que a não desfearia de todo, outros rebatiam essa opinião, afinando pelo diapasão contrário, terceiros alegavam ainda que nova não seria decerto, pois nem nova era a pizzaria, teria já perto de um ano, e ela viera com a abertura da casa. 

Enfim, gerou-se uma daquelas confusões em que acabaram por ser trazidas à colação a Micas do Quiosque Primavera, a Célia da Padaria Pão Da Terra, a Serafina das análises, a Cândida da farmácia, por isso nem me admirou que, a páginas tantas o nosso bom Júlia tivesse abandonado a sua postura de incredulidade e desabafado como desabafou;

- Mas afinal o que é uma berliete ?

uma vez que a idade e a inerente inexperiência de vida não o autorizavam a saber o que seria tal coisa, uma Chaimite enfim, qualquer um sabe, mas uma Berliet chia mais fino não será ? E o bom do Júlia nem trinta aninhos terá portanto…   

Deste modo a malta agora queima muitos cartuchos, quer dizer queima o tempo, com futilidades, com vacuidades, porque a não ser que algo verdadeiramente novo force a coisa todos na tertúlia fogem de discutir politica, como se a politica tivesse lepra, a verdade é que há algum tempo se vinha sentindo a aversão a isso, um receio ou recusa mais pressentida que sentida, mais subtil e difusa que nos velhos tempos, falo dos tempos anteriores ao bambúrrio do 25 de Abril, pelo menos é o que o Neutel também garante, e ele dessas coisas sabe, fora chofer da pide, estivera preso em Alcoentre e só se safara porque no dia em que os deixaram fugir a todos ele se recusou a dar às de Vila Diogo, bateu o pé que era um mero chofer e, segundo ele afirma, foi o próprio Otelo quem lhe deu uma palmada nas costas, lhe perdoou tudo e o mandou embora em paz. Que anos mais tarde o Hermes do Notícias de Évora lhe tenha partido uma cadeira de café em cima é episódio que já nem lembra ao diabo, sobretudo depois do Hermes ter sido enterrado, e já lá vão uns bons anos… Vermelho mas bom tipo o Hermes. 

Portanto o que se nota no ar, ou no pessoal, não é um receio de ser escutado pelo bufo, ou por um delator, antes um receio do colega, do camarada, do amigo, do companheiro, da concelhia, da distrital, da federação, do partido, criando um ambiente doentio e envenenando amizades e relações, difundindo suspeitas, levantando constrangimentos, enterrando a espontaneidade, sufocando a liberdade, levando a que à mínima coisa todos se fechem como um bicho de contas, uma lagarta num casulo, um doente em casa, um psicótico dentro de si mesmo, tal qual um melancólico se encerra na sua poética melancolia. 

É esta a herança do 25 de Abril, efeméride que estamos a dias de comemorar 42 anos e onde já ninguém grita liberdade, pão, paz, habitação, tudo coisas hoje a conta gotas, primeiro para a família, depois para padrinhos e afilhados, seguidamente os boys do partido, no fim os enteados e os bastardos e só depois a malta do povinho, uma catrefa de desgraçados filhos desta puta de democracia e por quem se distribui a última gota. É esta a herança de 500 mil desempregados, 500 mil emigrados, 500 mil mal empregados, 500 mil arruinados... Enfim, tudo gente sem escrúpulos dirão alguns, mas que vai gritar de novo este ano 25 de Abril nunca mais... E gritarão NUNCA com maiúsculas...

Tudo isto me cria na boca um certo amargo no preciso momento em que na Tv o PM promete não haver mais aumentos de impostos, quando os aumentou todos até aqui e até ao limite do admissível, mais parecendo ser a única coisa que sabe fazer, ele e os outros, os que estiveram antes e os que estarão depois, taxar, taxar, taxar, este hoje com esta, e ainda ontem o da economia, e o gasóleo, e Espanha e Badajoz e bla bla bla. Senhor ministro tenha mas é vergonha e demita-se ! Um ministro que só sabe taxar e dividir os portugueses em gente de primeira e gentinha de segunda não está a puxar pela economia ! Está a discriminar ! Está a trair-nos as expectativas ! E é isto a que estamos condenados, pode ser que seja somente até um dia em que, com a ajuda de Deus, alguém lhes enfie um balázio nos cornos e grite de novo liberdade pão paz habitação ! Sei que é um sonho mas sonhar ainda não paga impostos, por enquanto né ?

Foi por isto que nem devia ter ficado admirado quando o bom do Júlia, após receber a explicação sobre o que era e para que servia uma Berliet se ter saído com esta;

- Era metê-los todos numa Berliet, levá-los para a Carregueira*, abrir uma vala e despejar os carregadores !

Fiquei banzado ! Quem lhe teria ensinado o que é a Carregueira ? Esta malta nova afinal não é tão fósforo amorfo como eu pensava, existe por baixo daquela resignação aparente um último laivo de esperança, um último grito de revolta, talvez não esteja tudo perdido, talvez não.

- Claro que não está tudo perdido ó parvalhão !

- Olha-me esta Mitsubishi Canter ó meu artolas, há lá camioneta mais linda que esta ! Aquilo nem poluição faz, nem grainhas tem !

Era o alarve do Esteves reinando comigo, com a bronca levantada pela Mitsubishi no Japão e com a criação das uvas sem grainhas em Ferreira do Alentejo, mas tinha razão, passando na nossa frente com uma caixa de morangos a Lourdes da frutaria era uma camioneta linda, um rodado admirável, os pára-choques no sitio, dois airbags de primeira, até eu que sou ateu juraria tirar mais depressa a carta de pesados que renovaria o cartão do cidadão por causa da parvoíce do Bloco de Esquerda. A nossa vida política é cheia de alarvidades parvoíces e ironia, só os idiotas do BE são capazes de em 5 minutos deitar por terra o trabalho de seis meses... ou de seis anos ... Alguém lhes devia explicar o que é o bom senso, pois a mim nem precisam explicar-me que o Esteves tem os gostos estragados, cá para mim a Lourdes tem o cu descaído, quer dizer tem as pernas curtas e o tronco comprido, já outras são ao contrário, parece terem o cu debaixo dos braços, as pernas longas a perder de vista (adoro olhá-las numa perspectiva ascendente) e o tronco curtíssimo.

Enfim, gostos não se discutem, até porque veio logo o Mário com as preferências dele pelo chantilly, a que o Arnelas contrapõe a mousse de chocolate. Deixei-os a falar sozinhos, sou mais do género pragmático, um prático, um moranguinho bastar-me-ia, não sou homem para me perder em divagações. 



terça-feira, 19 de abril de 2016

336 - ANTECIPAÇÃO, O FACTOR CRUCIAL *.........


O homem, e espero que enviem também alguma mulher a fim de garantir a igualdade de géneros, prepara-se para conquistar Marte, e os cientistas, astrofísicos e astrónomos têm tudo previsto, estudado e pensado, antecipado, no sentido de que o improviso os não venha a solicitar. Estudo, previsão, cautelas e caldos de galinha parecem ser, segundo um programa por mim visto no Canal Odisseia a receita da NASA, aliás já experimentada, testada e comprovada anteriormente com sucessos assinaláveis. Lá estava a órbita da Terra e a de Marte, e no ano no dia na hora no minuto e no segundo em que as duas mais se aproximarem, o tal alinhamento astrológico de que os astros e o zodíaco por vezes nos falam, zabumba na caneca ! Será lançada uma nave há muito programada ao segundo e ao pormenor.

Antecipar situações e resolvê-las antes que se lhes deparem é o pão de cada dia daquela gente, mas, bem vistas as coisas, antecipação tem sido o que tem permitido aos homens e às mulheres chegarem onde chegaram, e às nações, e empresas, e poderíamos adiantar que a tudo que, de uma forma ou de outra implique conquista, superação ou sucesso, do jogo de futebol ao xadrez, das damas às cartas de poker. Claro que há sempre um ou outro pormenor e um ou outro detalhe inesperado, há quem diga que o diabo se esconde precisamente nos detalhes, mas um detalhe é isso mesmo, um detalhe, um pequeno pormenor fácil de contornar mas igualmente capaz de emperrar uma engrenagem, porém uma excepção, não a regra.

De Tróia e Esparta à Roma de César, a Napoleão, Trafalgar, Wausterlitz, Wellington, Waterloo, Solferino, à Guerra Russa Patriótica de 1812 que deixou Napoleão vencido às portas de uma Moscovo deserta e incendiada, à batalha de Balaclava, tristemente lembrada como exemplo da falta de coordenação, ou de estudo, ver a “Carga da Brigada Ligeira”, imortalizada no poema homónimo de Tennyson, à guerra da independência e à guerra da Secessão dos EUA, Verdun, Galípoli, Ardenas, invasão da Normandia no dia D, Estalinegrado, Midway, Guadalcanal, até onde quer que se esperou pela sorte ou pelo destino, os estrategas e os tacticistas debruçaram-se sempre antecipada e cautelosamente sobre as situações procurando antecipar tudo, calcular tudo, dos movimentos do inimigo à sua força e composição.

Em Portugal, a última vez que que alguém procurou antecipar e acudir ou remediar de modo minimamente atempado, minimamente programado, pensado, premeditado e ponderado resultou num grito de guerra que inda hoje ecoa nos ouvidos de muita gente;

- Para Angola rapidamente e em força !

e foi proferido em 13 de Abril de 1961 aos microfones da Radiotelevisão Portuguesa porque o bandido que foi Salazar não entendia, ou não concebia, vir um dia mais tarde a entregar aos seus pares o testemunho dum país dotado de menos património do que ele recebera. O resto são peanuts. Aquele bandido não quis (morreu sem o ter dado), não quis abrir mão do nosso património, aliás a sua falta de carácter e de respeito para com o próximo levou-o a amealhar durante quase quarenta anos, tendo-nos deixado os cofres cheios, muito dinheiro, muito ouro, mas um país carente de infra-estruturas, e que agora temos vindo a construir à pressa, pagando-as caríssimas, sendo um encargo para toda a nação e uma bênção ou um maná para alguns. Bem, nem tudo foi mau, escolas por exemplo construiu umas quinze mil em perto de quatro décadas, das quais Nuno Crato só em três anos fechou metade, trabalhando bem e depressa como Nuno Crato o fez haverá bem poucos. Enfim, peanuts.

Assim como assim o Nuno só antecipou, afinal já quase nada é nosso, nem o pilim que o bandido cá deixou. Qualquer dia somos todos emigrantes sem sair da nossa própria terra, nada será nosso a não ser as chicotadas que nos caírem no lombo. Isto está entregue à bicharada, a caucasianos, chinocas e pretos, o bandido deve estar a rebolar-se de raiva na cova, tão nacionalista e patriota ele era. Portanto confirma-se uma vez mais, antecipar ou não, eis a questão, o factor crucial.

“Orgulhosamente sós”, foi outro grito lançado por esse bandido que foi Salazar, proferido como um grito de orgulho, o grito de uma nação que não sucumbia ao revoltoso mar que o mundo era nessa altura. Hoje, por tudo e por nada benzemo-nos e “antes só que mal acompanhado”, mas a verdade é que dei por mim pensando no dia em que a UE anunciou a extensão da linha do TGV até Badajoz, que chegada ali parou, dei por mim pensando que estamos ficando de novo sós, já não orgulhosamente sós, nem por o desejarmos, mas porque não interessamos a ninguém, nem como gentes nem como economia e todos nos cagam em cima, a começar pela UE que depois de durante anos nos ter enterrado ingloriamente em dinheiro se deve ter fartado de nos aturar.

Está mais que visto que, quer queiramos quer não, estamos voltando à versão pobre do “orgulhosamente sós”, nem sei se iremos desenvolver-nos com base no mercado interno, que isto nem é interno nem é mercado, não é nada, nem dinheiro temos para mandar cantar um cego, e andamos a discutir décimas de crescimento ou décimas no desemprego, tudo merdices ridículas que deveriam envergonhar quem as discute, o problema é que não antecipámos, nunca antecipamos e agora todas as merdas nos caem em cima. Antecipar, eis a questão, o factor crucial.

Porque não acautelámos, porque não antecipámos as dificuldades nunca lhes fizemos frente, nunca as driblámos e hoje, paradoxalmente a nossa esperança radica no crescimento da miséria, da pobreza e da fome, que tornarão vantajoso deslocalizar para aqui as empresas da Europa em vez de para a longínqua China ou para a turbulenta Europa de leste. A fome é assim a nossa última réstia de esperança, e também muito boa conselheira, dizem, é de tal ordem o labirinto de situações e de contradições em que Portugal se enleou (em que as nossas elites o enlearam), que ninguém vê saída nenhuma, a não ser que apareça outro bandido bem amado. O último conseguimos mantê-lo connosco quase quarenta anos.

O bandido do Salazar amealhou durante perto de quarenta anos, mas estes democratas gastaram, esbanjaram, dissiparam outros quarenta, e de tal modo e com tanto empenho que vamos ficar agarrados aos tomates até 2060, ou seja outros quarenta. O mal nem está no Pedro nem no Costa, dois parvalhões muito diferentinhos, o mal vem de há quarenta anos, o mal são 500 mil desempregados, 500 mil emigrados, 500 mil mal empregados e mais 500 mil arruinados... O mal vem da libertinagem e da desvalorização de valores nos últimos quarenta anos, desvalorização da ética, da moral, da responsabilidade, da competência, da honestidade, da lealdade, da fidelidade, da solidariedade, da liberdade, a tudo isso demos sumiço, contrapondo a quarenta anos do bandido Salazar e de moderação e poupança.

Jerónimo de Sousa, disse ontem no Algarve e erguendo bem a voz; "Nós precisamos produzir mais, de produzir mais riqueza e distribui-la melhor" levando-me a concordar plenamente com ele. Arrastou-me consigo, coisa que há muito não conseguia, proclamou ele que precisamos produzir mais, ora nem mais, tão simples como somar 2 + 2, porque ele sabe haver perigo, está vendo o exemplo do Brasil, desta vez o golpe não virá pela mão de um Pinochet, desta vez a coisa será mais elaborada, já está sendo, será a mãozinha invisível dos mercados disfarçada de normas democráticas da UE, ou com qualquer outra roupagem, talvez um suave figurino McCartista, e descambando aí para onde fugirão os perseguidos e exilados ? A Leste tudo arde, a Coreia do Norte é fria e tem uma língua difícil de aprender, a Venezuela anda em bolandas, resta Cuba, onde todos querem tudo menos ver os portugueses a roubar-lhes os parcos empregos. Se isto cai nem haverá um lugar onde passar ou viver a clandestinidade.

Mas, contudo, todavia, porém, a esperança é sempre a última a morrer, olho para o jornal da terra e deparo com o maior investimento alguma vez efectuado nas margens de Alqueva, o maior e certamente o único, na página principal e com desenvolvimento nas interiores anuncia-se ter sido sinalizado o início de um percurso pedestre ligando as aldeias ribeirinhas, tendo sido inaugurado o momento com pompa e circunstância. Embora não passe de um projecto, segundo percebi, ligará todos os concelhos dos 14 municípios ribeirinhos, existindo igual projecto para o BTT.
Haja pois esperança, o Turismo do Alentejo também estava solenemente representado dando ar de seriedade à coisa, estamos salvos, vão chegar via aeroporto de Beja resmas de caminheiros ou caminhantes, e paletes de ciclistas ou ciclo-alpinistas amantes do BTT. Se o ridículo matasse e a parvoíce em vez de fazer rir desse dinheiro, a esta hora estaríamos todos mortos de riso ou no mínimo ricos…            
* NOTA; E porque alguém me perguntou há momentos ingénua e inocentemente ; “Antecipar o quê ? Que é que há para antecipar ? Não compreendo “. Eu responderei: Antecipar é reformar, conceber e aplicar reformas, atempadamente, constantemente, porque o mundo gira depressa e nunca meias-reformas ou reformas esfarrapadas…
                       













domingo, 17 de abril de 2016

335 - ASSUNÇÃO CRISTAS A CALOIRA IRREVOGÁVEL ………..…


Antes de me debruçar sobre a arenga de hoje, permitam-me esclarecer alguns aspectos elementares quanto à minha posição ou atitude ante o tema ora tratado. Ponto um; não sou militante nem sequer simpatizante do partido que a dita senhora de forma tão ignorante dirige, não partilho a sua visão, se é que tem uma, portanto resumo a coisa ao facto de não admirar nem defender, nem sequer partilhar as disposições estatutárias do seu partido nem tão pouco no que à vertente cristã se possa conceber, vertente que nesse mesmo partido anda totalmente esquecida, arredada de todo.

Sou democrata, sou lúcido, julgo-me esclarecido o suficiente para criticar e julgar o comportamento politico da senhora, não sou do contra, sou pelos consensos e sobretudo pelo racional, isto é pela razoabilidade, pela razão e, evidentemente pela sinceridade, pela transparência e pela honestidade. Já tive, mas não tenho nem defendo qualquer partido, tão iguais todos eles me parecem.

Ponto dois; num país normal e não neste estado disfuncional e falhado eu seria adepto e defensor da existência de empresas públicas, bem geridas, sobretudo geridas para o bem comum e não para os amigos ou malta amiga, neste Portugal sou adepto da sua total existência ou actuação mas no sector privado e, neste item só casualmente estarei de acordo com os estatutos do partido da senhora. Sou pela iniciativa privada (devidamente regulamentada) meramente por a coisa pública me ter demonstrado à saciedade não ser cousa indicada para este ou neste país.

Ponto três; não sou defensor nem adepto nem das teorias nem da praxis do bandido que Salazar foi, porém reconheço que os nossos políticos, ou elites, que há quarenta anos criticam tal figura, ainda não conseguiram fazer metade do que tal bandido fez, nem lhe chegam aos calcanhares, sabia mais ele a dormir que todos os de agora somados e acordados. A bem ou a mal o bandido resgatou o país das garras dos democratas de então, deixado exaurido em 1926 tanto quanto os democratas de agora o voltaram a deixar. O meu apreço irá sempre para quem faz, jamais para quem destrói, muito o criticaram mas ainda não lograram fazer melhor do que esse bandido fez.  Mau grado o desagrado dos actuais democratas esse bandido era bem formado, competente, inteligente, esperto, sabido, matreiro e atrevo-me a dizer honesto e homem de palavra, tudo predicados dificílimos de detectar nas actuais elites e políticos, quiçá com auxílio de uma lupa…

Ponto quatro; há décadas que se vem falando e tentando a privatização do maior e mais lucrativo banco português, a CGD, que apesar do factor Vara ainda se mantém no lugar cimeiro, o sonho dos partidos à direita do nosso espectro politico parlamentar, portanto o sonho dos investidores, dos financeiros nacionais seria a privatização da CGD, privatização total se possível. Atendendo à minha postura face às empresas públicas é-me indiferente que as privatizem ou não desde que fiquem em mãos portuguesas, o que não gosto é de ver Varas, isso não, bem vimos o resultado de Varas e quejandos no BCP e na própria CGD e onde pontificou, um desastre que emperra tribunais e arrastou o nome da própria filha, com milhões depositados em contas que nem sabe explicar, mas confiemos na justiça e deixemos esses desastres para os tribunais, contudo não esqueçamos por um momento só que investidores e finança sonham há muito abocanhar o bolo que a CGD representa. E adiante, ou para a frente que atrás vem gente.

Aconteceu esta semana ter sido falada, abordada, ponderada, a propósito da sua necessidade de capitalização e de o modo de a efectuar, falada digo eu a privatização parcial da CGD, ou a dispersão por investidores privados do papel garante das necessidades de capitalização, ou seja, foi aberta ou entreaberta a porta, ainda que parcialmente, a uma suposta, (nestes casos manda a prudência que se use uma linguagem que não desassossegue o povo), alegada ou possível privatização do capital da CGD, e aberta a porta cria-se a oportunidade para meter o pé que evite fechá-la, ou para introduzir por via dela um Cavalo de Tróia dentro da fortaleza. Contudo, ante este cenário, que fez a novel dirigente do partido dos empresários, investidores, capitalistas e financeiros ?  Avançou abraçando, cativando e garantindo a oportunidade ? Não ! Declarou alto e bom som que a capitalização deveria ser feita exclusivamente com dinheiros públicos. Asneira e anedota para os anais da história da tontice. Ao dizer o que diz esta senhora demonstra quanto é estúpida e ignorante em matéria de economia, de banca, de finanças, e sobretudo de estratégia e táctica políticas... Por mim ainda bem que os agiotas estão mal servidos de liderança, mas acredito piamente que alguém dará duas nalgadas de castigo naquele rabinho.

Todavia, não lhe bastando meter o pé na poça uma vez, ou a pata na poça, vejo no mesmo dia, ontem, sábado, 16 de Abril, titulando o Expresso* o seguinte: “CDS corrige, coligação só com PSD”, perdi as dúvidas, a senhora era, é mesmo tontinha, burrinha, qualquer namoradinha sabe que não se deve dar tudo de uma vez, que se deve ir mostrando aos poucos, para os mais distraídos alerto que falo do jogo político, das jogadas políticas, não das pernas.

Como é possível um pequeno partido, nem de charneira é, e que nunca por si só será governo, atrever-se a desbaratar, a expor ou a dissipar assim a sua estratégia sem a mínima cautela ? Paulo Portas foi beneficiado com a táctica do irrevogável, mas foi beneficiado ele, não o povo ou o país, e sabendo que essa sorte não se repetirá passou o testemunho ao mais tontinho da turma.  Os outros, adivinhando o futuro e o desconforto de um táxi, recusaram, e levaram a malta a votar na caloira palerma e tontinha, tal qual como fazíamos quando andávamos no liceu. Um pequeno partido só pode ambicionar crescer ou ser muleta, mas uma muleta pode condicionar e muito o rumo de um partido maior. Paulo Portas não o fez, limitou-se a apoiar o PSD e a colher daí proveitos pessoais, quem irá pagar as favas será a caloira burrinha. 

Há anos atrás Freitas do Amaral condicionou, e muito, o partido Socialista, com quem se coligara, obrigando o PS a meter o socialismo na gaveta, frase que ficou célebre. Para quem não saiba nessa altura todos defendiam o socialismo apesar da maioria nem fazerem ideia do que isso era, dos militares aos civis(1). Hoje já se sabe o que é, é a intriga e a arrogância constantes do rei M. Soares, é uma fundação vivendo de dinheiros da CML e do Espírito Santo (já viveu do apoio de Savimbi), é o excesso e limite de velocidade ultrapassado sem respeito, são os tachos para a família e amigos, e para o filho do filho, é o abandono do local dum acidente, um partido com culpas senão em duas pelo menos numa "bancarrota", a última, tendo depois virado a cara para o lado como se não fosse nada com ele, são as chapadas prometidas a torto e a direito… Com Freitas do Amaral a palavra socialismo foi banida dos discursos orais ou escritos (por tudo e por nada lá vinha o rumo ao socialismo), essa foi uma das condições ou condicionantes dos desvarios socialistas negociadas pelo CDS a fim de permitir ao PS uma coligação que lhe garantisse a sobrevivência e a governação, das restantes cláusulas não tenho conhecimento. 

Ora a ter em conta as palavras de Assunção Cristas esse apoio é agora prometido e dado de mão beijada ao PSD, desvalorizando-o, reduzindo-lhe a eficácia a necessidade e o proveito, coarctando-lhe o leque de possibilidades, porquê só ao PSD ? Logo ao PSD que tudo fará para vencer eleições sem a muleta do CDS, e porque há-de alguém votar CDS se pode logo votar no grande e por ele apoiado PSD ?  A diferenciação, a identidade, é uma coisa valiosa e que há que valorizar e discutir constantemente, um apoio é uma atitude para fazer render e vender quanto mais tarde e mais caro tanto melhor, Cristas deitou por terra essa hipótese, a indefinição deixou de ser uma arma sua, autolimitou-se, auto-imolou-se diria eu. Com ela o CDS assumiu-se como um partido construtor de pontes e consensos ou afirmou-se como o partido do atrelado, sempre atrelado ? E se o PS não puder contar com o CDS muito logicamente continuará aliado à sua esquerda, é isso que o CDS pretende perpetuar ? Não me façam rir…

Mas há mais, ainda no mesmo dia deu novo tiro nos pés, sabendo-se que os empresários do sector da construção vivem um sufoco, e conhecendo-se a necessidade de recuperação de milhares de milhares de fogos urbanos, o que significa trabalho, emprego, contribuições, impostos, reconhecida a nossa dificuldade em aumentar a dívida e dispondo a Segurança Social de larguíssimos milhões no Fundo de Estabilização que faz a dita senhorita ? Põe-se a gritar aos quatro ventos não querer mexidas nesses dinheiros, como se eles estivessem a ser cobiçados para construir uma décima quinta linha de TGV… Então pergunte-se a essa caloira irrevogável onde vamos buscá-lo se o investimento internacional foge deste país de ciganos como os gatos da água ?

Claro que tontices destas só são possíveis porque é uma Pin-up e porque à sua volta campeia um bando de ignorantes maior que ela, o que tenho por transversal a todos os partidos. Pois meus amigos, querem por acaso um bom conselho, e de borla, antes que a senhora dona os deixe a todos ainda mais mal vistos ?

Ofereçam-lhe uns patins …


Domingo, 17 de Abril de 2016



* Primeiro Caderno, página 19

sexta-feira, 15 de abril de 2016

334 - CÁ SE FAZEM CÁ SE PAGAM ……...........…...



Quando o Kiko chegou reparei logo pelo seu andar que trazia uns sapatos novos, o que ele confirmou ao reparar em mim mirando-os, focado na lustrosa pele de cobra e no barulho do tacão batendo o chão. Arregaçou então a perna da calça, para que os visse bem, enquanto agitava os pulsos frente aos meus olhos fazendo-me ouvir o tinir das pulseiras de oiro.

- Invejinha ! A vida nunca correu tão bem cá ao nino Kiko m’ermão !

O resto era o habitual nele, a camisa branca impecável, desabotoada apesar do frio do dia e expondo o peito aberto, e um fio, não um qualquer fiozinho mas antes uma grossa corrente também de oiro, reluzindo sobre os cabelos negros do peito musculado. Olhando por cima do meu guarda-chuva para as duas faixas negras encimando a entrada, perguntou sem esperar a minha confirmação se era aquele, e era, pelo que ao vê-lo entrar sem o mínimo receio tive a certeza de que me trazia a encomenda. Sem isso nem se atreveria a aproximar-se sequer do lugar, pelo que entrámos, ele mirando tudo em redor como que para confirmar o pedido que lhe fizera, estranho em mim, e escolheu um lugar central sentando-se sem hesitar e puxando uma cadeira cá p’ró rapaz.

Perguntei-lhe pelo meu irmão e fi-lo sorrir.

- A ele se devem os nossos últimos êxitos m’ermão ! As letras daquelas canções deram-nos dois discos de platina em dois anos ! O teu mano tá uma mánika !

Não será bem assim como o Kiko disse, a banda* tem somado êxitos é certo, mas tal se deverá certamente a todos, em especial à sua voz e ao seu flamenco, claro que a música é importante e o mérito será de todos eles. Fiquei satisfeito e mandei um abraço ao mano que não vejo há mais de dez anos, mais precisamente desde aquela noite fatídica em que numa luta e em legítima defesa foi obrigado a mergulhar uma pequena navalha na barriga de um desgraçado, que por um daqueles azares impensáveis viria a falecer quando a ambulância que lhe acudia, de pirilampo aceso e em marcha urgente chocou com uma procissão, virando-se e incendiando-se. Complicações, até Deus foi acusado de tantas mortes, e no meio dessa confusão, m’ermão temendo a confusão da nossa justiça, pôs-se a milhas pois nunca tivera nem tem contas em offshores.

Enquanto bebíamos café o Kiko abria uma garrafa de Pedro Domec, tirada do casaco como quem tira um coelho da cartola e fomos bebendo brindando e olhando o lugar que era deveras antipático e não por acaso, havia ali intenção subtil mas declarada de disfarçar aos demais uma hostilidade latente e preconceituosa, efectivamente bastava reparar com atenção na cor base da decoração, estava presente um apelo à espiritualidade, à intuição, portanto, uma cor metafísica, nada concreta, a cor da alquimia e da magia, uma cor mística, e que tanto pode simbolizar respeito como piedade, é uma cor dúbia, demonstrativa, já que, não sendo carne nem peixe, era todavia de uma tonalidade conotada com o misticismo, o mistério, o espiritismo, tudo auras que invocam e apelam aos sacrifícios e à morte. Quem quer que fosse que tivesse dois dedos de testa não deixaria de ver naquela decoração uns laivos de lembranças ou de memórias passadas e de miséria. Há três ou quatro décadas ainda se usavam colchões de palha de folha de milho revestidos com um tecido barato, pobre, que tinha contudo a particularidade de apresentar os mesmos padrões e disposição de cores, senão exactamente aquela mesma cor. Mas, dúvidas havendo, lá estava, e está, bem visível a quem entre, e em cima do balcão o inefável sapo de loiça, o expediente vulgarmente usado para afastar ciganos, é xenófobo e racista, e não raro convoca discursos ou atitudes violentas, atrai maus agoiros, joga com as superstições desse povo espantando os ciganos e confirmando os preconceitos que as cores da decoração interior deixam perceber, antever. Mesmo ao lado uma imitação barata de um castiçal tentando salvar as aparências, eu sugerira já a utilização de um pratinho ou de um pires com água benta para molhar a ponta dos dedos antes da persignação. Portanto não há ali uma descuidada casualidade, antes uma premeditada e propositada causalidade no sentido da discriminação de uma minoria étnica claramente identificada. Torcendo o nariz Kiko deu-me razão,
- São mesmo preconceituosos m’ermão, mas contra juízos de valor deste quilate o mano Kiko traz-te aqui uma mézinha milagrosa.

E puxando um envelope do bolso interior do casaco como quem puxa de uma dose de heroína ou cocaína, passou-mo sorrateira e disfarçadamente para as mãos, fazendo notar que desde a România até ali tinha sido despendido um esforço enorme por uma catrefa de gente solidária, e que eu não devia esquecer ao espalhar como um alquimista os pozinhos milagrosos, guardados naquele envelope melhor que os segredos dos deuses na Arca da Aliança, de proferir em simultâneo a ladainha à Cigana Rainha do Oriente, recomendando-me vivamente que praguejasse baixinho pois não seria a gritaria a surtir efeito mas a fé e a devoção com que entregasse as minhas rezas a Santa Sara Kali.

Dir-me-ão que nos preparávamos para atacar um preconceito com outro preconceito, a verdade é que aquela mistura, uma mistura calibrada de pó de osga seca e moída, sementes de erva-do-diabo q.b. e merda de morcego das cavernas a que se junta a dose certa de rabos de lagartixas apanhados vivos estava há muito provada e comprovada e, se fosse espalhada de acordo com a tradição faria por si só com que todos gradualmente fossem tentados a desviar-se e a evitar aquela casa, fossem ciganos ou não.

A morte do lugar estava assim anunciada, depois disto vamos ver quanto tempo as portas ainda se aguentam abertas, mas mesmo antes de estar já o estava, sobre a entrada duas agoirentas faixas negras estendiam-se de um lado ao outro do estabelecimento, nelas estivera em tempos inscrito o seu nome, que não foi renovado, e o que não se renova morre. É a lei da natureza, é uma questão de tempo, até a cor interior invoca os ritos da paixão e da morte, basta esperar que a feitiçaria se volte contra o feiticeiro.

Cá se fazem cá se pagam… 

sábado, 9 de abril de 2016

333 - ANA BOLERO, 1955 – 1995 - R.I.P. :( :( :( :( ((((


Se dissesse que não notava a atenção desmesurada que ela atribuía aos cactos estaria a mentir-vos. Mas não a todos os cactos, aliás somente àqueles bem raros por estas paragens e aos quais ela dedicava uma admiração inusitada, aos altos, cactos altos, ante os quais pasmava. Eu reparava e entendia, fazia-me despercebido pois não queria entrar em pormenores com um nada pequeno pormenor que fingia nem ver, nem perceber, nem notar, porque me recusava a entender-me a mim mesmo.

Nem sei bem como a coisa começara, nem me lembro sequer como foi que me deixei arrastar. Para ser sincero nem posso dizer que tenha sido arrastado, já teria uns dezasseis ou dezassete anos, e hoje admito-o, não sabia nada, aliás não sabia nada de nada, mas com essa idade quem não se julga um sabichão das dúzias ? Ela rondava os vinte, portanto muito mais velha e mais sabida do que eu que, embora tivesse sido beneficiado com a aprendizagem proporcionada pelas minhas primas, ao pé dela e em certas coisas era um leigo. Contudo não fui arrastado, as hormonas falaram mais alto e ainda que não lembre bem o que lhe atirei como provocação, a resposta dela ecoa no meu espírito como se tivesse sido dada ontem;

- E o que têm as outras que eu não tenha, dizes-me ?

Haja honestidade, porque em boa verdade tinha, realmente tinha, nem demorámos a tirar quaisquer dúvidas. Foi um período empolgante, em especial quando passou a olhar-me com a mesma admiração com que mirava os cactos mais altos, que olhava meditativa, com reverência. Eu não me sentia um cacto, mas sentia-me um gigante, grande, enorme, alto, o maior. Era já espigadote, desde muito cedo fui alto, mas a questão não era essa, era o meu ego, percebi isso muito depois, quero dizer, quando já era tarde, tarde demais para mudar fosse o que fosse. Tive que admitir que a Ana me manobrara, bem, manobrara não teria sido, eu também fui culpado, eu também gostava da coisa, eu também queria, assumir que ela me manobrou é esquecer que também a procurei, a desejei, a fiz minha. Outros dirão que ela me fez seu, pontos de vista, opiniões, não contesto.

Não sou um salta-pocinhas, não sou um pinga amor, prova disso é estar prestes a comemorar trinta anos de casado sem um sobressalto, e conheci a Luisinha logo após o desaparecimento da Ana, sou um tipo estável, fiável, com carácter, com personalidade, bom pai, e aqueles tempos de delírio com a Ana foram excepção, eu andava enfeitiçado, e aquela tatuagem dela no ombro direito, para ser honesto não foi só a tatuagem a culpada, toda ela era um bibelot, como diríamos agora, uma Barbie, uma boneca, e como eu lhe dizia brincando, não era uma viola nem um violão, era uma violinha, um cavaquinho. Foram tempos inesquecíveis, muito eu aprendi com ela e alguma coisa lhe devo ter ensinado.

Foram meses muito curtos mas intensos, sim porque acho que nem um ano andámos juntos, foram dias extremamente intensos, foi um tempo em que para além de tudo que vos conto eu me debatia com os preconceitos, e nem sabia que os tinha, depois, repentinamente, eles a barrarem-me o caminho, eu num dilema, eu querendo avançar e eles reprovando-me a conduta, tempos terríveis esses, como se ultrapassa um preconceito ?                                  
                             

Muitos dirão que com amor, é o amor sentenciarão outros, e realmente o amor preenchia-nos os dias, todos os dias, todo o dia, a bem dizer o problema nem foi esse, não foi a rotina, nem sequer o facto de, por causa dela eu ter feito tudo para atrasar a minha incorporação, a tropa que esperasse. Não, minto, foi antes, foi pelo S. João quando da vinda do Circo Cardinal, onde ela fez novos amigos do pé para a mão e quase me esqueceu de um dia para o outro. Não digo que a rotina não tenha tido a sua quota-parte, mas foi sobretudo o circo quem nos afastou. Nunca soube onde desenterrara ela os dotes que depois tive que reconhecer-lhe, montava uma bicicleta de uma roda só melhor que eu uma de duas ! Fazia-o mesmo que o assento estivesse a três metros do chão ou dos pedais ! Uma coisa impressionante e que, a somar ao vestido de lentejoulas com que passou a actuar a enlouqueciam completamente.

Entre as matinés e as soirées, por vezes enquanto treinava novos números com a sua trupe de ciclistas brincava comigo, que ali ficava especado adorando-a, quero dizer reinava comigo, gozava-me pegando em meia dúzia de ovos ou pequenas bolas que atirava em arco pelo ar e de uma mão para a outra, mudando-as de mão para mão sem deixar cair nenhuma ! Mas, uma vez em que pretendeu mostrar-me que passara a artista pirofágica chamuscou-me as pestanas, ia-me incendiando os cabelos e as coisas azedaram. Quero dizer, eu já andava fartinho da cena do circo e mortinho de amores pela Luisinha e, aquela cuspidela ardente veio mesmo a calhar.

Se quiser ser franco devo admitir que já andava a ficar farto percebem ? Sim, era verdade que eu devia muito à Ana, ensinara-me a conter-me, a fazer durar, a aguentar e só depois explodir, com violência, com intensidade, um relâmpago, breve mas intenso, ou de modo a ir devagar, com um fulgor menos marcante mas mais duradoiro. Então era assim, intenso e explosivo nos dias especiais e em que matávamos saudades ou precisávamos de dormir bem, calmo e demorado, saindo em fiozinho, não em jorro ou jacto, para os dias normais, o que era menos exigente e até menos cansativo. Mas não era fácil fazê-lo com uma anã percebem ? Se a beijava na boca não coiso, percebem ?  Se a coisava não conseguia beijá-la na boca entendem ? Se tentava as duas coisas dava cabo das costas, ainda hoje tenho um sério problema numa das vértebras designadas dorsal baixa, a L2, depois, como se tudo isso não bastasse vinham os problemas de consciência, o emergir dos preconceitos, evitávamos os amigos para que não fossemos criticados ou gozados, era uma situação penosa para ambos e o circo acabou por ser mais que uma desculpa, foi uma sorte, conjugados os prós e os contras, e somando a rotina que nos estava a matar, aquele amor estava condenado.

Ainda guardo dela uma foto que os anos amareleceram, parece sépia, e nas últimas semanas recebi vários pedidos de amizade na minha página duma rede social que me pareceram perfis falsos, todavia todos apresentavam uma curiosa particularidade, fotos de cactos gigantes. Redobrei de atenção e meti-me à coca, metade deles já os apaguei, eram de gentinha que quase nos mostrando as mamas vai impingindo-nos propostas de créditos tal qual as moscas cagam no écrans dos monitores, porém os restantes não eram dela. Nenhum era dela, de quem de repente me recordei e me merecia toda a consideração deste mundo. Meti-me em campo, fiz telefonemas, visitas, perguntas, montei-me na mota e desloquei-me à aldeia da família mas há muitos anos que deixara de ali viver.

- “Précure” em Estremoz, nas Quintinhas ! 

           Alguém me aconselhou e bem, porque foi lá que dei com uns ciganos que cantam e fazem malabarismos* e que por sorte se lembravam dela, que era meio cigana. Uma velha cartomante aproveitou o ensejo para me extorquir umas moedas lendo-me o passado,

- Morreu no ano em que Guterrez festejou a primeira vitória eleitoral senhor. Morreu bonita, morreu feliz, foi de repente e nunca o esqueceu meu senhor.

Jesus ! Há mais de vinte anos ! Nem acreditei.

- Se não acredita vá ver os registos, morreu aqui mesmo nesta terra de pedras brancas senhor. Um acidente numa pedreira meu senhor.

Era tarde, voltei no dia seguinte, e depois de uma manhã inteira consultando o velho arquivo de um velho jornal lá dei com a noticia, e a foto, bastante esbatida, de uma grua retirando de um lago formado numa profunda e antiga pedreira o carro cor de mármore em que ela numa noite fatídica caíra à agua. 

              Era curta, nunca se ajeitara com os pedais dos carros aquela Ana.

Paz à sua alma.