sexta-feira, 15 de abril de 2016

334 - CÁ SE FAZEM CÁ SE PAGAM ……...........…...



Quando o Kiko chegou reparei logo pelo seu andar que trazia uns sapatos novos, o que ele confirmou ao reparar em mim mirando-os, focado na lustrosa pele de cobra e no barulho do tacão batendo o chão. Arregaçou então a perna da calça, para que os visse bem, enquanto agitava os pulsos frente aos meus olhos fazendo-me ouvir o tinir das pulseiras de oiro.

- Invejinha ! A vida nunca correu tão bem cá ao nino Kiko m’ermão !

O resto era o habitual nele, a camisa branca impecável, desabotoada apesar do frio do dia e expondo o peito aberto, e um fio, não um qualquer fiozinho mas antes uma grossa corrente também de oiro, reluzindo sobre os cabelos negros do peito musculado. Olhando por cima do meu guarda-chuva para as duas faixas negras encimando a entrada, perguntou sem esperar a minha confirmação se era aquele, e era, pelo que ao vê-lo entrar sem o mínimo receio tive a certeza de que me trazia a encomenda. Sem isso nem se atreveria a aproximar-se sequer do lugar, pelo que entrámos, ele mirando tudo em redor como que para confirmar o pedido que lhe fizera, estranho em mim, e escolheu um lugar central sentando-se sem hesitar e puxando uma cadeira cá p’ró rapaz.

Perguntei-lhe pelo meu irmão e fi-lo sorrir.

- A ele se devem os nossos últimos êxitos m’ermão ! As letras daquelas canções deram-nos dois discos de platina em dois anos ! O teu mano tá uma mánika !

Não será bem assim como o Kiko disse, a banda* tem somado êxitos é certo, mas tal se deverá certamente a todos, em especial à sua voz e ao seu flamenco, claro que a música é importante e o mérito será de todos eles. Fiquei satisfeito e mandei um abraço ao mano que não vejo há mais de dez anos, mais precisamente desde aquela noite fatídica em que numa luta e em legítima defesa foi obrigado a mergulhar uma pequena navalha na barriga de um desgraçado, que por um daqueles azares impensáveis viria a falecer quando a ambulância que lhe acudia, de pirilampo aceso e em marcha urgente chocou com uma procissão, virando-se e incendiando-se. Complicações, até Deus foi acusado de tantas mortes, e no meio dessa confusão, m’ermão temendo a confusão da nossa justiça, pôs-se a milhas pois nunca tivera nem tem contas em offshores.

Enquanto bebíamos café o Kiko abria uma garrafa de Pedro Domec, tirada do casaco como quem tira um coelho da cartola e fomos bebendo brindando e olhando o lugar que era deveras antipático e não por acaso, havia ali intenção subtil mas declarada de disfarçar aos demais uma hostilidade latente e preconceituosa, efectivamente bastava reparar com atenção na cor base da decoração, estava presente um apelo à espiritualidade, à intuição, portanto, uma cor metafísica, nada concreta, a cor da alquimia e da magia, uma cor mística, e que tanto pode simbolizar respeito como piedade, é uma cor dúbia, demonstrativa, já que, não sendo carne nem peixe, era todavia de uma tonalidade conotada com o misticismo, o mistério, o espiritismo, tudo auras que invocam e apelam aos sacrifícios e à morte. Quem quer que fosse que tivesse dois dedos de testa não deixaria de ver naquela decoração uns laivos de lembranças ou de memórias passadas e de miséria. Há três ou quatro décadas ainda se usavam colchões de palha de folha de milho revestidos com um tecido barato, pobre, que tinha contudo a particularidade de apresentar os mesmos padrões e disposição de cores, senão exactamente aquela mesma cor. Mas, dúvidas havendo, lá estava, e está, bem visível a quem entre, e em cima do balcão o inefável sapo de loiça, o expediente vulgarmente usado para afastar ciganos, é xenófobo e racista, e não raro convoca discursos ou atitudes violentas, atrai maus agoiros, joga com as superstições desse povo espantando os ciganos e confirmando os preconceitos que as cores da decoração interior deixam perceber, antever. Mesmo ao lado uma imitação barata de um castiçal tentando salvar as aparências, eu sugerira já a utilização de um pratinho ou de um pires com água benta para molhar a ponta dos dedos antes da persignação. Portanto não há ali uma descuidada casualidade, antes uma premeditada e propositada causalidade no sentido da discriminação de uma minoria étnica claramente identificada. Torcendo o nariz Kiko deu-me razão,
- São mesmo preconceituosos m’ermão, mas contra juízos de valor deste quilate o mano Kiko traz-te aqui uma mézinha milagrosa.

E puxando um envelope do bolso interior do casaco como quem puxa de uma dose de heroína ou cocaína, passou-mo sorrateira e disfarçadamente para as mãos, fazendo notar que desde a România até ali tinha sido despendido um esforço enorme por uma catrefa de gente solidária, e que eu não devia esquecer ao espalhar como um alquimista os pozinhos milagrosos, guardados naquele envelope melhor que os segredos dos deuses na Arca da Aliança, de proferir em simultâneo a ladainha à Cigana Rainha do Oriente, recomendando-me vivamente que praguejasse baixinho pois não seria a gritaria a surtir efeito mas a fé e a devoção com que entregasse as minhas rezas a Santa Sara Kali.

Dir-me-ão que nos preparávamos para atacar um preconceito com outro preconceito, a verdade é que aquela mistura, uma mistura calibrada de pó de osga seca e moída, sementes de erva-do-diabo q.b. e merda de morcego das cavernas a que se junta a dose certa de rabos de lagartixas apanhados vivos estava há muito provada e comprovada e, se fosse espalhada de acordo com a tradição faria por si só com que todos gradualmente fossem tentados a desviar-se e a evitar aquela casa, fossem ciganos ou não.

A morte do lugar estava assim anunciada, depois disto vamos ver quanto tempo as portas ainda se aguentam abertas, mas mesmo antes de estar já o estava, sobre a entrada duas agoirentas faixas negras estendiam-se de um lado ao outro do estabelecimento, nelas estivera em tempos inscrito o seu nome, que não foi renovado, e o que não se renova morre. É a lei da natureza, é uma questão de tempo, até a cor interior invoca os ritos da paixão e da morte, basta esperar que a feitiçaria se volte contra o feiticeiro.

Cá se fazem cá se pagam…