Quando
o Kiko chegou reparei logo pelo seu andar que trazia uns sapatos novos, o que ele
confirmou ao reparar em mim mirando-os, focado na lustrosa pele de cobra e no
barulho do tacão batendo o chão. Arregaçou então a perna da calça, para que os
visse bem, enquanto agitava os pulsos frente aos meus olhos fazendo-me ouvir o
tinir das pulseiras de oiro.
-
Invejinha ! A vida nunca correu tão bem cá ao nino Kiko m’ermão !
O
resto era o habitual nele, a camisa branca impecável, desabotoada apesar do
frio do dia e expondo o peito aberto, e um fio, não um qualquer fiozinho mas
antes uma grossa corrente também de oiro, reluzindo sobre os cabelos negros do
peito musculado. Olhando por cima do meu guarda-chuva para as duas faixas negras
encimando a entrada, perguntou sem esperar a minha confirmação se era aquele, e
era, pelo que ao vê-lo entrar sem o mínimo receio tive a certeza de que me
trazia a encomenda. Sem isso nem se atreveria a aproximar-se sequer do lugar,
pelo que entrámos, ele mirando tudo em redor como que para confirmar o pedido
que lhe fizera, estranho em mim, e escolheu um lugar central sentando-se sem
hesitar e puxando uma cadeira cá p’ró rapaz.
Perguntei-lhe
pelo meu irmão e fi-lo sorrir.
- A
ele se devem os nossos últimos êxitos m’ermão ! As letras daquelas canções deram-nos
dois discos de platina em dois anos ! O teu mano tá uma mánika !
Não
será bem assim como o Kiko disse, a banda* tem somado êxitos é certo, mas tal se
deverá certamente a todos, em especial à sua voz e ao seu flamenco, claro que a
música é importante e o mérito será de todos eles. Fiquei satisfeito e mandei
um abraço ao mano que não vejo há mais de dez anos, mais precisamente desde
aquela noite fatídica em que numa luta e em legítima defesa foi obrigado a mergulhar
uma pequena navalha na barriga de um desgraçado, que por um daqueles azares
impensáveis viria a falecer quando a ambulância que lhe acudia, de pirilampo
aceso e em marcha urgente chocou com uma procissão, virando-se e incendiando-se.
Complicações, até Deus foi acusado de tantas mortes, e no meio dessa confusão,
m’ermão temendo a confusão da nossa justiça, pôs-se a milhas pois nunca tivera
nem tem contas em offshores.
Enquanto
bebíamos café o Kiko abria uma garrafa de Pedro Domec, tirada do casaco como
quem tira um coelho da cartola e fomos bebendo brindando e olhando o lugar que era deveras antipático e não por acaso, havia ali intenção subtil mas declarada
de disfarçar aos demais uma hostilidade latente e preconceituosa, efectivamente
bastava reparar com atenção na cor base da decoração, estava presente um apelo
à espiritualidade, à intuição, portanto, uma cor metafísica, nada concreta, a
cor da alquimia e da magia, uma cor mística, e que tanto pode simbolizar
respeito como piedade, é uma cor dúbia, demonstrativa, já que, não sendo carne
nem peixe, era todavia de uma tonalidade conotada com o misticismo, o mistério,
o espiritismo, tudo auras que invocam e apelam aos sacrifícios e à morte. Quem
quer que fosse que tivesse dois dedos de testa não deixaria de ver naquela
decoração uns laivos de lembranças ou de memórias passadas e de miséria. Há
três ou quatro décadas ainda se usavam colchões de palha de folha de milho
revestidos com um tecido barato, pobre, que tinha contudo a particularidade de
apresentar os mesmos padrões e disposição de cores, senão exactamente aquela
mesma cor. Mas, dúvidas havendo, lá estava, e está, bem visível a quem entre, e
em cima do balcão o inefável sapo de loiça, o expediente vulgarmente usado para
afastar ciganos, é xenófobo e racista, e não raro convoca discursos ou atitudes
violentas, atrai maus agoiros, joga com as superstições desse povo espantando
os ciganos e confirmando os preconceitos que as cores da decoração interior
deixam perceber, antever. Mesmo ao lado uma imitação barata de um castiçal
tentando salvar as aparências, eu sugerira já a utilização de um pratinho ou de
um pires com água benta para molhar a ponta dos dedos antes da persignação. Portanto
não há ali uma descuidada casualidade, antes uma premeditada e propositada
causalidade no sentido da discriminação de uma minoria étnica claramente
identificada. Torcendo o nariz Kiko deu-me razão,
- São
mesmo preconceituosos m’ermão, mas contra juízos de valor deste quilate o mano
Kiko traz-te aqui uma mézinha milagrosa.
E
puxando um envelope do bolso interior do casaco como quem puxa de uma dose de
heroína ou cocaína, passou-mo sorrateira e disfarçadamente para as mãos,
fazendo notar que desde a România até ali tinha sido despendido um esforço
enorme por uma catrefa de gente solidária, e que eu não devia esquecer ao
espalhar como um alquimista os pozinhos milagrosos, guardados naquele envelope
melhor que os segredos dos deuses na Arca da Aliança, de proferir em simultâneo
a ladainha à Cigana Rainha do Oriente, recomendando-me vivamente que
praguejasse baixinho pois não seria a gritaria a surtir efeito mas a fé e a
devoção com que entregasse as minhas rezas a Santa Sara Kali.
Dir-me-ão que nos preparávamos para atacar um preconceito com outro preconceito, a
verdade é que aquela mistura, uma mistura calibrada de pó de osga seca e moída,
sementes de erva-do-diabo q.b. e merda de morcego das cavernas a que se junta a
dose certa de rabos de lagartixas apanhados vivos estava há muito provada e
comprovada e, se fosse espalhada de acordo com a tradição faria por si só com
que todos gradualmente fossem tentados a desviar-se e a evitar aquela casa,
fossem ciganos ou não.
A
morte do lugar estava assim anunciada, depois disto vamos ver quanto tempo as
portas ainda se aguentam abertas, mas mesmo antes de estar já o estava, sobre a
entrada duas agoirentas faixas negras estendiam-se de um lado ao outro do
estabelecimento, nelas estivera em tempos inscrito o seu nome, que não foi
renovado, e o que não se renova morre. É a lei da natureza, é uma questão de
tempo, até a cor interior invoca os ritos da paixão e da morte, basta esperar
que a feitiçaria se volte contra o feiticeiro.
Cá
se fazem cá se pagam…