terça-feira, 10 de outubro de 2017

468 - AS MAMAS DA GRACINDA BRÀS CUBAS ...



A amiga nem tanto, mas ela sim, deixava-a a um canto. Tanto, canto, ta bom e rima, estou inspirado hoje, talvez saia alguma coisa de jeito. A amiga, comecemos pela amiga, vinha acompanhada de um sujeito franzino, com cu de mulher, daqueles cus demasiado largos para homem. Como sabemos um homem deve ser talhado a direito de cima a baixo, mas não aquele que tinha uma cintura adelgaçada, as ancas largas e um cu grande, metido debaixo dos braços, quero dizer não tinha tronco ou parecia nem o ter. O maroto do Álvaro deu-me uma cotovelada mas respondi-lhe entredentes que já a tinha visto, aliás vira-a primeiro a ela e só depois à amiga. No tipo com o cu de gaja só reparei quando começou a dançar impaciente junto do balcão, talvez carência da bica, da cafeína, ou teria bichos carpinteiros…

O maroto do Álvaro tinha sido meu aluno no último ano antes de me aposentar, era um pinante, birrepetente, nem seria naquele ano que acabaria o nono, para além de História e Geografia, as duas que eu leccionava, estava chumbado a mais duas e ultrapassadas as três estaria fodido, iria ficar mais um ano a patinar. Para surpresa de todos na sessão de cante das notas passei-o nas duas e levantou-se um clamor de exclamações pelo meio do qual ele teve que passar a fim de ir à vida e deixar a escola e a todos nós pelas costas. Não mais castigou os contribuintes e tornou-se um dos melhores técnicos de frio e refrigeração no nosso distrito e, se tenho continuado a teimar no ensino hoje ganharia seguramente mais que eu, fiz bem em reformar-me, este país nunca esteve tão bom para quem não faça nada, mas estou a distrair-me, fixava eu os olhos na camisola que ele trazia envergada, com uma icónica imagem do CHE gravada no peito quando a loura, pousando-me a mão suavemente no ombro:

- Posso ?

O bom do Teles ia derribando as cadeiras ao recuar para lhe dar espaço, realmente a amiga nem tanto, mas ela sim, deixava-a a um canto, a milhas como o Ricardo diria depois delas abalarem, mas também ele lhe cedeu lugar e ela sentou-se, eu estranhei mas mal lhe senti o perfume recordei anos e anos de camaradagem em segundos.


Isso e a admiração pelas mamas dela, inda hoje as mesmas, sem querer o olhar fugira-me, fugiu-me e traiu-me,

- Inda gostas delas ?

fiquei embaraçado, embora os outros não percebessem patavina da conversa eu percebia-a e bem, não nego, apesar do meu feitio extrovertido corei, corei e pedi desculpa por não a ter reconhecido mas com aquele cabelo e penteado quem a adivinharia aqui? E a Guarda, ou o Fundão ou lá o que é, como estavam ?

- Estão no mesmo sitio, disse ela, na Serra da Estrela, onde haveriam de estar ? E tu meu caramelo, como vais ? Estás mais velho, mais velho e mais bonito.

Pronto, estava armada a barraca, rebentou-me com o ego, havia autoconfiança e auto-estima pairando no café como se repentinamente algo num forno tivesse jorrado fumo sem fim, por momentos cheirou-me a torradas queimadas acreditem. Claro que o resto da conversa nem se aproveitou, nem o Álvaro ou o Teles pescaram o que quer que fosse, e enquanto o Ricardo foi à rua queimar um paivante ela aproveitou p’ra recomeçar, digo teimar e rememorar:


- Eram uma ambição minha desde os catorze tu sabes e quando cheguei aos dezoito já eram assim, tu lembras-te, impossível teres-te esquecido. «A tua amiga é que saiu ao pai, tem uns peitos que mais parecem uma tábua» acrescentei.

- Não sejas maluco, és um parvo, tótó, ganha juízo e fica bem que eu tenho que ir fazer uma mamografia e não quero atrasar-me.

E lá foram, ela, a amiga de passar a ferro e o cu com pernas, porta fora em fila indiana e, comandando a traquitana ela, como sempre.

- Quem era prof. ?

Uma colega da minha irmã e também minha amiga, já não a via há uns tempos, por quê ?  Queres assassiná-la ?

A do assassinar atirei-lhe como provocação aludindo à camisola que trazia, o rosto do CHE, como já dissera, e por baixo em vermelho bem vivo a palavra KILLER.

Apercebi-me ao longo dos tempos que a maior parte do pessoal quer o admire quer o abomine não conhece o CHE, não conhece patavina mesmo, tristemente nem fazem por conhecer, então perguntei-lhe com a minha velha paciência de santo de antanho se conhecia a teoria da relatividade de Einstein, ou o conceito de “relativismo” ao que me respondeu prontamente ter uma outra camisola daquelas com a imagem de Einstein de cabelos em pé, e nada mais, nada mais sobre Einstein, nada mais sobre o CHE, o assassino, segundo ele.


O retorcido do Teles que chegara a fazer dois ou três anos de sociologia acompanhava a conversa interessado, tendo balbuciado qualquer coisa como as circunstâncias, Ortega e Gasset, o homem e as suas circunstâncias, bla bla bla, o CHE não foi um assassino, foi um comunista feroz, um animal feroz gracejou, pelo que aproveitei, puxei da maiêutica e estendi-lha na frente como uma passadeira a fim de que os dois descobrissem por eles as verdades que não viram ou que não tinham visto, tendo acabado os dois por me explicar que bem, não era bem assim mas, quer dizer a coisa é complexa, não pode ser vista só por uma óptica, isto é naquela altura…

E assim fiquei sabendo que o regime de Baptista, exercendo uma repressiva ditadura sobre Cuba e assente numa policia politica impiedosa jamais aceitaria o jogo democrático, pelo que não restaria outra solução que não a via armada, aliás aceite pela própria ONU, e claro, quem vai à guerra dá e leva, morre e mata, erros há sempre, sempre os houve e sempre os haverá, embrulharam-se os três, afinal o CHE já não era KILLER afiançava o Teles, nem tão pouco comunista garantia o Ricardo, fora ministro dos estrangeiros e da economia mas depois de visitar a China e a URSS apercebendo-se de como era o mundo e o rumo totalitário que se abria à sua frente abandonou Cuba e os privilégios que tinha, foi lutar pela liberdade, dignidade e libertação onde quer que um povo estivesse reprimido, primeiro para África, Congo, depois para a Bolívia mas já tinha a CIA no encalço que lhe fez a folha, digo a cama, que o terá feito fugir a sete pés duma revolução que amava e pela qual matou para não ser morto ? 


Eles nisto e eu pensando nas mamas da Gracinda, sim foi a CIA, mamas grandes auréolas grandes, pois a CIA armou-lhe uma cilada, já aos dezoito anitos toda ela eram só mamas, se calhar quando começava a saber alguma coisa da vida morreu, coitado, uma mulher perfeita como diria um primo meu, olha tem graça tu falares nisso, morrer quando começava a saber alguma coisa, e não é sempre assim? 

Agimos mais vezes animados pela ignorância que pelo saber e experiência das coisas, infelizmente é assim, tantas vezes, vezes demais, estou aqui lendo a entrevista do Carvalho da Silva ao Observador e a lembrar-me se nada disto que aborda e diz lhe veio à memória quando era sindicalista, agora é que certas coisas lhe dão cuidados, não se lembrou delas a tempo, ou não as conhecia, não as sabia, não sabia que era assim, mais um agindo sem saber e agora já entradote e indo p’ra velho é que está aprendendo, vendo o que nunca viu, não me recordo de o ver preocupado com o investimento estrangeiro que anda a zero há alguns anos, nem com esse nem com o nacional, a produção nunca lhe interessou mas agora está preocupado em que não baixe o nível dos impostos cobrados, inacreditável como com meia dúzia da patacoadas tira o crédito a outras tantas que disse acertadas, se não visse nem acreditaria, está como o CHE que deve ter somado dois mais dois e se meteu a milhas mal as coisas em Budapeste foram espremidas e antes que lhe fizessem o mesmo ou o atirassem para o saco de gatos em que a história se estava transformando.

Cada vez me convenço mais que os governos nunca deveriam ser entregues nem a gente com menos de sessenta anos nem a ignorantes, é um perigo, veja-se o Trump, o Maduro, o Kim Koreia, o Socas, o Passos, o Puigdemont, o Macron, o Costa e tantos outros…

Quem sabe o que teria sido de Cuba se o bloqueio americano não a tivesse atirado para os braços de Nikita Khrushchev. O bloqueio económico foi mais um erro de gente nova, Kenedy estava verde e muito muito longe dos sessenta anos… Claro que tudo isto são suposições, não há uma história dos “ses” nem nunca haverá…

- E a outra prof. quem era a outra ?

Qual outra pá ? Quais mamas meu ? Se não fossem elas como teria eu conseguido a vossa atenção e que lessem todo este arrazoado que hoje tenho para vos oferecer ? Foste enganado parvalhão ! Com verdades te enganei !

HASTA LA VITÓRIA SIEMPRE COMANDANTE CHE GUEVARA ! 


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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

467 - O SOLDADO PRÁTICO, by Diogo de Couto ...

Ao centro Diogo do Couto, pelo Grupo de Teatro Maizum. 

Ao contrário do que acontecia na época de quinhentos, em que tudo e todos enganavam o rei (no caso o nosso, imagino que ao de Espanha também), a actualidade é agora a marca dos dias, nada ficando por saber-se ou conhecer-se pelo que o reflexo das coisas é imediato, tendo sido aqui que senti algo ou alguém meter a mão nos estudos que desenvolvo sobre o nosso compatriota Diogo do Couto,* historiador, aventureiro, samaritano, marinheiro, mentiroso e trapaceiro q.b., como era então voga, historiador que contudo não se coibiu de criticar quer os abusos quer a corrupção e a violência decorrente ou provocada pelos citados compatriotas na Índia portuguesa de quinhentos, tendo activa e civicamente protestado abertamente contra eles.

Pois este nosso conterrâneo que larga e levianamente adjectivei soezmente, era em simultâneo um homem de bem e de honra, diga-se em seu abono ter sido amigo íntimo de Camões, que inclusivamente veio a descobrir naufragado na Ilha de Moçambique nos idos de 1569, a quem sem rodeios acudiu. Diogo de Couto partilhava a ideia de que a história devia versar a verdade sem quaisquer restrições, tendo plena consciência de que já nessa época quem o fizesse acabaria sofrendo repressões, criticando e alardeando sem temor essa  censura violenta e garantindo por experiência própria quanto a objectividade incomodava, caso em que se encontrariam “Os Lusíadas” obra que envolveria muitos nobres cujos familiares e antepassados estariam envolvidos nos acontecimentos que o poema narrava. Encontrando-se Camões com dívidas e sem dinheiro para voltar de pronto Diogo de Couto acorreu em seu socorro, portanto devemos-lhe a chegada até nós do épico de Camões, cujo manuscrito o bardo mantinha como único espólio do naufrágio que sofrera.

Diogo do Couto era homem de letras, já dera à estampa (nessa época a imprensa, embora rudimentar já existia) um completo e tão comovente quão impressionável relato do naufrágio da Nau S. Tomé, uma das naus da carreira das Índias, relato que o tornou famoso na nossa História trágico-marítima. Fora um dos protegidos do infante D. Luís,** e cursara latim e retórica no Colégio de Santo Antão e filosofia no Convento de Benfica. Pela morte do infante D. Luís e sentindo-se desprotegido (ficou sem padrinho, ontem como hoje os padrinhos eram,  são em tudo semelhantes) partiu para a Índia com 17 aninhos, de onde somente viria a regressar volvidos dez anos. Porém volveu de novo ao Oriente, o infante Filipe II incumbiu-o da missão de dar continuidade às Décadas de João de Barros. Sabe-se que deu corpo às que vão da IV à XII, tendo publicado completas apenas a IV, V e VII e o resumo das VIII e IX. Para sua e nossa infelicidade a VI ardeu e a VIII e IX foram-lhe posteriormente roubadas, enquanto a XI se perdeu. A XII embora postumamente viria a sair. 

Diogo do Couto era um estudioso com uma concepção diferente da história, muito diferente de João de Barros, e quanto a mim mais interessante pois entendia que as "verdades" deveriam ser ditas, doesse a quem doesse. Não por acaso e provavelmente para abafar a verdade algumas das suas "décadas" (VIII, IX e XI) levaram sumiço antes de irem ao prelo. É evidente que não poderemos afastar as suspeitas de que alguém, a quem não conviria a sua divulgação tenha estado na origem desse "sumiço". Por sua vez e na mesma altura El-Rei Filipe I nomeou-o em 1595 cronista oficial da Ásia Portuguesa e guarda-mor da Torre do Tombo em Goa, o que fez e lhe permitiu dar continuidade às Décadas da Ásia de João de Barros, encomenda do infante Filipe II como atrás ficara dito. De modo competente organizou esse novo arquivo, vindo a morrer nessa cidade de Goa a 10 de Dezembro do ano da graça de 1616.

Uma, ou essa concepção mais "realista" da história advinha-lhe da vantagem de ter vivenciado a colonização portuguesa no oriente, onde viveu grande parte da vida.  Observou os seus compatriotas as suas atitudes e comportamentos, tanto quanto a reacção dos nativos aos mesmos. Assentará aí a explicação para que vejamos os seus relatos mais próximos da verdade que a narrativa heróica de João de Barros. Também contribui para tal entendimento o facto da linguagem de Diogo do Couto ser mais simples mais viva e pitoresca do que a de João de Barros sobretudo por incluir alguma ironia e humor na narração d'alguns factos relatados. 

 Para além da continuidade por ele assegurada às “Décadas” de João de Barros, Diogo do couto celebrizou-se especialmente pelo testemunho do “Diálogo do Soldado Prático” livro que nos legou contendo uma critica mordaz ao funcionalismo público, na altura ao da Índia, cujas mazelas mete a descoberto, da ambição à riqueza por quaisquer meios, do vicio do amor ao luxo, da opressão sobre os pobres à falta de dignidade e às mentiras com que endrominavam com despudorada deslealdade El-Rei. 

Nada a que não assistamos hoje em dia. Uma pertinaz crítica ao sistema administrativo, militar e político da época de quinhentos perfeitamente adaptável aos nossos dias, pois se o Soldado de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto se queixava dos desmandos no Reino e na Índia, os militares de hoje fizeram o 25 de Abril por se queixarem dos desmandos que nesta republica lhes aconteciam, sendo ignorados os seus feitos, carreiras e anos de efectividade tendo sido preteridos em promoções e ultrapassados pelos designados milicianos. O nosso país sempre foi palco de queixas, de furtos, de sonegações, e de igual forma sempre existiu cá quem a  isso fizesse orelhas moucas.

 “O Soldado Prático” é-nos apresentado sob a forma de um diálogo entre um soldado sexagenário, experiente, um fidalgo ex-governador da Índia e um despachante oficial ou secretário d’El-Rei. Curiosamente o original de “O Soldado Prático” fora furtado ao autor, somente através de cópias que dele havia se pôde proceder à reconstituição do mesmo, isto cerca de 1610. O livro impressiona pela narrativa, apoiada na experiência dos negócios pessoais do autor e dos que tinha conhecimento, nas suas amarguras pessoais, na visão pavorosa da decadência do império e do reino, as quais dão à narração um calor e uma violência que torna a verdade patética e elevando a obra “O Soldado Prático” a uma das obras mais honrados da nossa literatura. 

As palavras de Diogo do Couto são as palavras de quem viu e viveu as situações e os factos que descreve. Existe na obra um conhecimento pessoal dos factos por parte de quem a escreveu, daí haver quem recomende a sua leitura imediatamente a seguir à leitura d’Os Lusíadas. Meditemos. 

“O Soldado Prático é uma obra fundamental do corpus da literatura da expansão portuguesa. Rodrigues Lapa considerava o diálogo de Diogo do Couto uma das obras mais “honestas” da literatura portuguesa, Efectivamente, trata-se de um diálogo que nos permite conhecer o lado pragmático da expansão e a ideologia que lhe subjaz. Enfim, trata-se do texto que enceta a lenda negra do império português. Por todas estas razões, O Soldado Prático é um livro fundamental para os historiadores da expansão e do império português, sendo, como é, uma obra que faz uma análise atenta das misérias humanas numa sociedade de grande complexidade.” (Prof. Drª Ana Maria García Martín).



** D. Luís de Portugal era filho do rei Manuel I de Portugal e da infanta espanhola Maria de Aragão. Foi 5.º Duque de Beja, 5.º Senhor de Moura, 9.º Condestável de Portugal e Prior da Ordem Militar de S. João de Jerusalém, com sede portuguesa no Crato. Nascera a 3 de Março de 1506, em Abrantes vindo a falecer a 27 de Novembro de 1555, na actual freguesia de Marvila, Lisboa. Foi membro da célebre Dinastia de Avis e pai de D. António de Portugal, mais conhecido por Prior do Crato.




Diogo do Couto, Torre do Tombo.

466 - ERA UMA VEZ UM ALENTEJANO MALTÊS.



            "ERA UMA VEZ 

      UM ALENTEJANO MALTÊS" 

                                                                         

           HUMBERTO BAIÃO

 

                                             INTRODUÇÃO


        ERA UMA VEZ UM ALENTEJANO MALTÊS” é um poema épico sobre o Alentejo, resultante duma colectânea de contos encadeados vividos por um personagem ubíquo, numa sequência cronológica e ficcional que acompanha esta nossa terra da pré-história aos dias de hoje, pois mui antigo é o mundo, disso no-lo dão conta a história, lendas e mitos. Qualquer que seja o lugar do mundo onde nos encontremos será chão pisado e percorrido por magotes de gente, prenhe de aventuras e desventuras, não sendo Portugal ou o Alentejo excepção, antes lugar marcado e marcante por essa mesma história.

        A riqueza patrimonial em factos e  presenças, aqui assinaladas, quer material quer imaterialmente, são um espólio valiosíssimo de que os alentejanos se podem orgulhar. Porém essa riqueza, nem sempre visível ou cabalmente avaliada e divulgada, poderá ter passado despercebida a muito boas gentes, entre as quais os próprios alentejanos.

        Cabe ao historiador trazer ao cimo das águas essas histórias, lendas e mitos, tarefa que também cabe ao prosador, ao poeta, ao contista e ao romancista. Que as  instituições culturais alentejanas tutelares se tenham finalmente preocupado com o incentivo moral e material à sua  expressão e divulgação é medida que a pecar, só por tardia.

        Tão rica de factos e de personagens é a história do Alentejo que de pronto me disponibilizei a contá-la, literalmente contá-la já que de um conto se trata, um desafio à articulação do logos e do cronos e à criação de uma personagem que sobrevoasse factos e tempos a fim de no-los contar, no-los dar a conhecer pois são de uma riqueza impar em diversidade e alumbramento tais cuja partilha seria uma pena não ser divulgada entre nós portugueses e em especial entre nós os alentejanos que esta epopeia traz à liça.

        Naturalmente meditando nessa diversidade e divulgação optei por um género narrativo de   estrutura permeável ou flexível capaz de, sem quebra dos cânones, narrar essas histórias, não forçosamente em prosa, que inspirando-se em eventos reais ou de natureza fictícia poderia fácil e simplesmente deixar correr, mas numa modalidade onde as cenas se desenrolassem de forma consecutiva e ininterrupta no espaço e no tempo. Natural, formal e estruturalmente a opção recaiu  na apresentação duma complexa tramóia com início,  clímax e conclusão, onde todavia a produção literária enquadrada não deixa de trazer consigo uma trama ou enredo integrais, com marcas ou balizas temporais, cenários e personagens determinados com precisão, desse modo ajudando à compreensão da história, do seu momento e mui especialmente do seu enquadramento.

        Como acontecera com os ancestrais e clássicos contadores de histórias optei pelo género epopeia, o veículo onde melhor assentou a tradição oral, pois a história do povo do Alentejo tem sido uma verdadeira epopeia estendida por vários séculos, epopeia em que a criação ou introdução do estilo fantástico não compromete, antes enriquece as esferas do real e do imaginário. O(s) personagem(s) que desfila(m) por estas histórias ganham de motu próprio um caracter se não imortal pelo menos imorredoiro, cuja intenção é não o(s) limitar a uma vida curta como sabemos ser a humana, o que não possibilitaria a sua ubiquidade histórica, particularidade que lhe(s) permite contar ou difundir a vivência ou testemunho vívido da história e submetê-la de imediato a uma apreciação simultaneamente ética, estética e moral.

        Sendo o conto uma obra ficcional por natureza intensa em conteúdo e breve na forma, no presente caso foi a mesma engendrada a partir de eventos reais acrescidos de figuras imaginárias, ficcionadas, onde a realidade é abarcada pelo deslumbramento do fantástico, modo de cronicar a história isento de qualquer formalidade que não a satisfação do leitor, traduzindo sempre os factos e os acontecimentos dessa história numa linguagem informal, coloquial, clara e sucinta, bem acessível ao vulgo popular a que primordialmente se destina.

        Esses factos e acontecimentos, apresentados como histórias dentro da história, contos dentro de um mesmo conto, são aqui e ali salpicados com pitadas de ficção e de crítica, são passagens do texto onde o personagem  apresenta os seus conceitos, críticas e ponderações éticas, morais e filosóficas sobre esses factos da história do Alentejo e dos alentejanos, o que no nosso caso é um tópico determinante a que a obra se submete.

        Ele, o texto, a narrativa, é o mais informal possível sem porém deixar de obedecer aos códigos estéticos vigentes desde Platão  à Poética  Aristótelica e ou à retórica de Horácio, de Cícero e de Quintiliano. É verdade que na teoria da literatura do século XX não se faz qualquer distinção entre géneros, nem outra critica que não a observação das grandes motivações que procuravam agradar a um público letrado, exigente mas escasso, da concordância com os cânones clássicos. 

        Contudo é importante lembrar que o renascimento nunca pretendera  discutir livremente a literatura, esta só começaria sendo colocada em causa com a Idade Moderna procurando-se então reflectir sobre aspectos mais ligados à pureza dos géneros literários, não repudiando a mistura de vários estilos, temas ou emoções num mesmo texto, voltando a epopeia e a tragédia a ser vistos como géneros maiores e a ser aceite a criação de novos géneros literários ou de novas expressões culturais, foi este o momento em que da epopeia viria a nascer o romance e deste a novela e o conto, cujo primo protagonista foi Miguel de Cervantes com Dom Quixote de La Mancha. 

        Em finais da Idade Moderna entraria em acção a influência da sociologia nos géneros literários, fenómeno a que o filósofo inglês Thomas Hobbes não é alheio e, para além de alguns aspectos hoje considerados risíveis,  Hobbes editou uma sua tradução da Odisseia  cuja introdução reflecte sobre esse género literário maior, a epopeia,  dando-nos o seu conselho sobre o modo de construção do poema épico, tendo sido os seus conselhos que no caso da epopeia do maltês alentejano foram não total mas cerimoniosamente seguidos.

        Optei por um estilo natural, minimamente preso a regras e livre da submissão a rima e metro, privilegiando a narrativa, o contar da história, num modo de apresentação coloquial que percorre todo o poema. Que a narração seja feita pelo poeta ou pelas personagens, obedecendo à natural e histórica sequência temporal e cronológica dos factos narrados é indiferente, nada alterando. A inspiração poética foi todavia moderada pela razão e pela verdade, porém permitindo a coexistência com as atrás citadas criações fantásticas e maravilhosas projectadas pela ficção, sem contudo lhes autorizar traírem o bom juízo e o respeito pelas figuras e pela veracidade histórica, isto é, consentindo os devaneios de estilo mas obrigando a destacar essa autonomia da criação literária, isto é, balizando mas aceitando a multiplicidade e a diversidade criativa do autor não lhe coarctando a realização subjectiva e objectiva da imaginação artística.

        De realçar que durante o  século XIX a génese dos géneros literários foi liberalizada porque interpretada em tom evolucionista, decerto influenciada pelas teorias Darwinistas da época, tendo  a literatura sido vista como mais um organismo vivo que nasce, vive, se desenvolve e morre, aproximando-se esta teoria de outras formas de pensamento liberal muito marcantes hoje em literatura. Em termos actuais o fenómeno literário está indissocialvelmente ligado à criatividade artística, por isso actualmente poucos autores resistem ao desafio das convenções optando pela mobilidade dentro da diversidade de cânones que ao longo da história têm tido preponderância, daí resultando estilos próprios e inconfundíveis como acontece com António Lobo Antunes e José Saramago, para citar somente  dois exemplos.

        Não deixa de ser notável que a poesia lírica, aquela em que o poeta se exprime sentimental e intimamente, assim tenha sido chamada por o fazer acompanhado de uma lira, instrumento musical muito comum na Grécia antiga, com a qual imprimia um tom melódico à poesia. Fazia-o imprimindo ritmo à melodia, embalando os versos, ganhando estes uma sentimental e intensa sonoridade. Resumindo, a palavra “lírico ou lírica” tem origem no latim e vem do vocábulo “lira”. A realidade é que os aedos e ou poetas, acompanhados de uma lira e explorando o ritmo musical cantavam as epopeias, que assim eram mais facilmente apreendidas, aprendidas ou decoradas, uma vez que a sua transmissão se fazia pela palavra e a oralidade era por esses tempos rainha. Homero, autor dos dois mais famosos poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia, deixou-nos testemunho de que a poesia surgiu nos primórdios da actividade literária, no tempo do classicismo grego. A prosa surgiria somente na idade média, sendo a prosa poética a manutenção dessa sonoridade musical vinda dos clássicos e oriunda do canto da epopeia, acompanhando agora harmoniosamente frases e parágrafos, garantindo a continuidade da tradição de modo subconsciente mas não irreflectido e  quiçá a passagem oral das epopeias numa época sem imprensa capaz de sustentar o romance, romance que daria origem à prosa e fenómeno já aqui abordado. Posto isto ocorreu-me, quem sabe se quando do seu aparecimento a prosa poética não seria cantada, digo igualmente musicada, isto é acompanhada à música  ?

        É hoje ponto assente que todo o acto que envolva criatividade não é  susceptível de ser guardado numa categoria intemporal. O universo da criatividade é coisa individual e íntima, pode estar sempre a ser (re)descoberto e a (re)inventar-se, obrigando-nos a rever constantemente as teorias dos géneros literários e a adaptá-las ao autor ou autores. Importante é nunca submeter estes à escravatura das regras e das normas. Vive-se o tempo da multidisciplinaridade, da intersecção, da inter-relação discursiva, da promiscuidade entre os géneros literários. Como alguém disse; “Não há ficcionismo inclassificável é uma realidade, como não haverá textos narrativos de ficção desprovidos de género. Um texto literário não pode escapar ao género a que pertence, mas pode desafiar a contextualização em que o tentarem aprisionar” …

        E dito isto, vamos ao era uma vez um alentejano maltês.

        Boa leitura e obrigado.  



“ ERA UMA VEZ UM ALENTEJANO MALTÊS “…

 

I – APRESENTAÇÃO DO MALTÊS

 

Era uma vez um alentejano maltês…

Vos direi aqui como conheci este português,

um maltês contido, não como qualquer outro.

 

Contar-vos-ei como eu mesmo me  tornei maltês,

como tal sucedeu nem eu sei bem,

sei apenas que,

contra todas as expectativas e meus hábitos,

contra as atitudes ponderadas que me caracterizam,

embarquei nessa aventura.

 

A custo embarquei na descoberta do Alentejo

e assinalei o facto lançando foguetes,

dando ordens à banda p’ra tocar e festejar,

porém obriguei-me a ficar contido, expectante,

não fosse inexplicavelmente arrepender-me.

 

Por uma vez na vida procurei aventura,

e p’lo Alentejo aceitei sacrifícios,

tanto mais se, como achei, a coisa valesse a pena.                                                                7

 

Nem será pelo valor de qualquer prémio,

que poderá nem estar em causa

devido a eventual  incapacidade de avaliação,

ou do estabelecimento dos seus limites,

por uma questão de ética, ou de princípios,

por uma questão de opinião,

coisa em que fui educado a rigor,

portanto jamais ousaria sequer supor,

que possa não ser discutida esta epopeia.

 

Fico-me pois, quieto e calado, mudo e quedo,

em alegria interior por  ser d’uma epopeia que se trata,

epopeia que por solidariedade reparto e egoisticamente fruirei.

 

Por momentos pareceu-me o planeta ter parado, estacado,

enquanto eu, contido, imaginando gozo

e desfruto esta sensação inenarrável,

cambiando em remanso toda a visível inquietude do mundo.

 

Até o sol me pareceu ter ficado momentaneamente

suspenso no seu movimento de rotação,

as aves quietas, pairando imóveis nos ares,

 

enquanto eu, travando a fulgurante,

impetuosa ou arrebatada e fogosa exuberância que me anima,

estoicamente subjugo o espartano que sou,

que sempre fui,

para vos contar esta epopeia,

a epopeia de um maltês alentejano.

 

Por uma vez na vida tomei uma decisão em três minutos,

por uma vez na vida espero não pagar cara esta decisão,

inda hoje não sei se por ter sido demasiado breve,

e espontâneo na resposta ou se por ter demorado muito mais,

sou por vezes ou quase sempre,

como o cobrador de bilhetes de uma montanha russa.

 

Muita gente o sabe e jamais lhes ouvi um queixume,

os amigos próximos conhecem-me melhor que ninguém,

e nunca lhes escutei um único lamento,

comigo nunca há desânimo,

nem a vida fica parada, mas por esta vez,

três semanas de meditação me aconselhei e impus,

porquanto sei que por mor desta epopeia,

quão pesadas, analisadas e ponderadas serão as minhas palavras.

 

Arriscar-me-ia apostar que à milésima,

e submetidas no final a severo escrutínio,

a um coeficiente de ponderação cuja amplitude

ou margem de erro adivinho ínfima,

tudo porque contra todas as expectativas,

e contra tudo que são os hábitos que me caracterizam,

me contive, a custo mas contive-me,

contive-me, mas pensei e aceitei.

 

Agora é já um outro tempo,

é tempo de dar tempo ao tempo,

de deixar assentar a poeira,

de me remeter a um período de resignação,

de contenção, de renúncia, contemplação,

de abdicação e sujeição a outros desígnios.

 

Com paciência me conformei já,

e de antemão confirmo não ser eu o mesmo,

agora privado da minha impetuosidade orgânica,

da minha impulsividade natural, pelo que,

durante nem sei quanto tempo,

provavelmente nem me reconhecerão como sou,

 

mas como um outro, um maltês alentejano,

a quem uma oportunidade tenha sido dada e que,

cabisbaixo, imaginativo, sonhador e esperançoso,

caminhe por uma vez como alguém designou,

nem sei com que autoridade,

por “caminhada com os pés assentes no chão”.

 

Pois que pelo menos a alguém sirva esta atitude,

esta imolação, da história e da epopeia do Alentejo,

e já agora haja alguém cuja subtileza capte o sacrifício,

e quanta abnegação coube neste tão pequeno quão grandioso gesto.

 

Durante dias, qual estilita, ou asceta,

de olhos semicerrados, ou fechados,

observarei as condutas do mundo,

a história do Alentejo e do mundo,

as consciências do mundo,

a elas me submeterei com parcimónia,

examiná-las-ei,

e sem a mínima severidade vos juro,

tentarei tantas vezes quão as necessárias saber,

para que serviu,

 

e qual o proveito de mais de dois milénios de história,

mas igualmente vos garanto,

que se o resultado a que chegar,

concluir nada ter de proveitoso ou sequer valer a pena,

erguer-me-ei do chão e do recolhimento,

para que façamos o que nunca fizemos,

gritar que não !

que não vale a pena isto !

que não aceitemos esta vida !

esta unilateral, falseada e redutora forma de vida !

queremos ser nós porra !

 

Deixai-nos ser nós !  

deixai-nos !

 largai-nos da mão ! 

estais todos loucos !

sois todos loucos !

mas eu ainda não !!!!!

 

II – O CENÁRIO EM QUE CONTRACENA O MALTÊS

 

Era  portanto uma vez um gato maltês,

um alentejanês, um alentejano maltês,

numa planície sem fim, de campos verdes e aloirados,

prenhes de vida e esperança,

ou a esperança prenhe de vida,

de história mater  prenhe, Éden intocado.

 

Era uma vez o mundo…

bola suspensa em devir, rodopiando como carrossel,

subindo e descendo, subindo uns, descendo outros,

sobe e desce, desce e sobe, uns aqui, outros ali,

num girar celestial onde, quem pode quer e manda,

ou rasteira, ou mete o pé,

e nós vendo,  uns caindo, outros partindo,

no velho globo girando e c’ o girar  vão migrando,

abalando…

 

III – OS PRIMEIROS A CHEGAR…

 

E nesse abalar errante, avançarão até chegarem,

seduzidos p’la terra,

se o mar os não engolir, antes mesmo de aportarem,

ajoelhando ao chegarem,  persignando-se,

onde quer que tenham assentado,

e com a sorte sido contemplados,

largando a trouxa, ficando,

ou pela força, ou empurrando,

ajeitando-se,

que isto de assimilações sempre deu complicações.

 

Era uma vez um povo errante mas,

no final eram já três os bandeirantes,

por aqui deambulando, procurando,

a quem coube naturalmente um quadrante,

os que ficaram cavaram, semearam e pescaram,

nómadas eram sedentários se fizeram,

abraçada a terra aqui poisaram,

harmoniosa ou insidiosamente,

aqui aterraram Suevos, Alanos,

 

Vândalos,

e tão bons eram estes últimos  que,

com violência os confundiram,

a ela dando nome no dicionário.

 

Depois desses porém, outros vieram,

sabemos que o mundo gira, e ao girar,

baralha, confunde, rodopiam os dados,

tendo sido assim que nos apareceram,

Fenícios, Cartagineses,

esses bardos, comerciando e minerando,

lançando arraiais e feitorias,

subindo o Odiana e o Arade,

apalpando, explorando,

fundando colónias, hoje cidades.

 

E enquanto aqui as musas descansavam,

e tágides se banhavam cantando felizes,

lá longe Rómulo e Remo cresciam,

como crescia Roma em tamanho e ambição,

comendo em malga a que o destino provia,

e reclamando poder, hegemonia e expansão,

 

p’la força aqui chegados,

Viriato e Sertório ultrapassaram,

e foi vê-los altruístas e avaros,

distribuindo parcimoniosamente paz e liberdade,

a sua paz,

a sua liberdade,

o seu direito,

a sua vontade,

a sua moda,

o seu preceito,

foram mundo novo aqui chegando,

gládio numa mão, civismo noutra,

engenheiros de vontades, mentes, almas,

construtores de pontes,

alianças,

acordos,

aquedutos,

templos,

em Roma sê romano,

 e assim se fez


IV – MODOS DE VIDA …

 

Mineraram e cultivaram quanto quiseram,

viveram e gozaram quanto puderam,

venceram, subornaram, submeteram,

alimentaram o império, falanges, legiões,

senado, república, centuriões,

mas também ergueram a pax romana,

e Pax Júlia,

Liberalitas Júlia,

Calipólis,

Cetóbriga,

Aruicitana,

Conistorgis,

Métalo Vispascense,

Miróbriga,

Mírtilis,

Porto Alacer,

Salácia,

Abelterium,

S. Cucufate,

testemunhos desses idos d’então,

 

dos tempos dum império,

tempos de entranhada decadência,

do horror ao vazio, de cobiça,

de bárbaros nas filas para entrar,

forçando a entrada aos tropeções e,

banidos os romanos,

rodou de novo a roda da fortuna,

desviai-vos,

saí da frente que atrás vem gente,

gente para quem  raça não é  trapaça,

e se olham e se apaixonam,

entreolhando-se, como dois cínicos,

cada um ciente da sua verdade,

pés fincados para não cederem,

não se olhando como dantes,

mas agora felizes, embevecidos e arrebat

 

V – VIERAM DO LEVANTE…

 

Desta vez entreolhando-se com vontade,

iberos e mouros, imagine-se,

vontade de se olharem  nos olhos, 

como quando neles a esperança,

a paz e a harmonia do mundo.

 

Desta vez com pé fincado na certeza,

na certeza das certezas absolutas,

na firmeza de convicções inabaláveis,

como se o mundo um lugar deles,

onde a sua voz valesse e ambos cegos,

cegos ao facto de sempre o terem sido.

 

O único mundo que tiveram foi aquele,

este de que agora abrir mão nenhum deles queria,

convictos de certezas que só o eram, ou foram,

enquanto durou aquele mundo seu, que construíram,

e que na cegueira do momento julgaram eterno,

assim eles nasceram no mundo dos iberos.

 

VI – A FIXAÇÃO POR ESTA TERRA

 

Continuemos outra vez,

desta vez um sarraceno gato maltês…

que vindo de Fez atravessou o estreito,

miou uma vez, miou outra vez e por cá ficou,

uma mão no timão outra no Corão,

construindo califado após califado,

os tentáculos por aqui vingando, alastrando, aprofundando,

tomando a península a Cónios e Iberos,

e a este cantinho as terras apanhando, e amanhando.

 

Terras transtaganas divididas p’lo Tagus,

a riba dele o riba Tagus,

a sul dele o além Tagus,

este mundo tomando nova forma, uma outra forma,

ninguém adivinhando até quando ?

 

Porque o amor a todos prende à terra, ou à beleza,

a mim foi a beleza a minha desventura,

pois a ventura começara com convite de grão-vizir,

para que vivesse naquela fortaleza.

 

VII – UMA PAIXÃO

 

Desde então,

lembrai-vos que os animais falavam,

seduzido p’la beleza da paisagem e p’lo mar azul,

por ali ficava metade do ano em que nos pólos faz frio,

e no equador calor em demasia.

 

Não só por isso me avezei àquele sacro lugar,

banhado por tépidas águas onde nenúfares perfumavam o ar,

servindo de leito a dezenas de sereias que,

fugindo aos rigores gelados ou cálidos de seu mundo,

 ali passam indolentes o período estival e, de entre elas,

uma teve o condão de me encantar com o seu canto,

loira, de uma beleza ímpar para sereia,

cabelo caracolado,

trocava comigo insuspeitos e cúmplices olhares e intenções,

tendo mesmo chegado a deixar livre para mim,

um dos gigantes nenúfares onde se espraiava

tomando sol, cantarolando e atraindo com o seu canto,

depois do poente, navios e marinheiros.

 

Naquelas águas calmas, prateadas,

vi passar ao longo dos séculos navios negreiros,

navios piratas e muitos, muitos outros carregadinhos de café…

o aroma forte do café tornando este califado acolhedor,

provocando em mim o desejo quando,

da fortaleza de Odemira,

vi de novo nas águas as luzes refulgindo e,

veio-me à memória essa sereia.

 

Esperei-a,

hoje e sempre,

imaginando os oceanos lindos por onde andará,

espero-a ainda,

e sonho percorrer com ela mares enigmáticos,

espero-a e recordo-a nas lufadas carregadas do odor forte do café,

olor que até mim chega ondulando sobre  as águas azuladas,

o mar feito um lago lindo donde ela emergirá,

mais bela que nunca, mais sedutora que nunca,

ela linda, eu feliz a seu lado, eu feliz como jamais estivera,

como se há tanto tempo….

por isso recordo como se ontem, como se hoje,

o canto harmonioso,

 

as palavras e os modos dessa deusa marinha,

a delicadeza feminina e simultaneamente diáfana.

 

Sonho-a, sonho o mar numa tarde de solstício,

o seu olhar, os seus olhos,  o seu sorriso,

beijos, carícias, desejos que são os meus,

o seu corpo jovem, o odor a mar,

os cabelos em minhas mãos,

ela em minhas mãos e eu,

no azul tépido e escuro daquelas águas,

cativado com tanta ternura,

mãos cheias c’os seus seios fartos, túrgidos,

lindos, excitantes,

ela tão doce, tão querida, tão meiga…

eu, velho de séculos,

sei-a de cor, ainda hoje a sei de cor...

 

E jamais um café sem que a evoque,

sem que nos lembre,

 esqueço-me de o beber olhando-o,

desligado do tempo infindo em que perduro,

até o beber frio,

 

e se frio… não me queixo,

há cafés e cafés,

depende do que nos recordem,

e então sim, uns sabem bem… outros a nada,

outros ainda a saudade e a ausência,

a desejo, a ansiedade, a tormento,

e tanta coisa nos diz um café,

virado espelho de água com nenúfares,

jamais me ocorrera tanta coisa numa chávena de café,

todo um mar florido por exemplo.

 

E nesse mar eu e ela,

e todo aquele dia dentro,

banhados nas águas do seu mundo.

 

Como de outro modo senão numa chávena de café?

Se até numa simples flor uma memória,

reminiscência memorável,

e fico olhando o fundo,

não as borras , que as não tem,

mas o fundo, o resto do café bebido,

e vejo-a reflectida em cada chávena,

 

e sorri-me, recordando-me o melhor dela,

como não o melhor se não lhe conheci defeito,

apenas a beleza etérea… o sabor a salmoura dos seus beijos…

o calor das águas em que nos banhámos,

o fulgor do céu que nos cobria,

a profundeza do mar em que nos atolámos…

 

Já me habituei ao café longe de olhares,

longe do bulício, no canto extremo de qualquer balcão,

para ficar sonhando-a, recordando-a,

amando-a numa chávena de café…

 

Estarei lúcido? Estarei sóbrio? Será possível?

Queria beber com ela cada café da minha vida,

e tantos dias, tantos cafés, tanta felicidade,

e agora…

 

Nem a esqueço vez nenhuma,

 justamente por me ver e a ver a ela,

no fundo de cada chávena de porcelana.

 

Sitio lindo o desta fortaleza alentejana.

 

Este mar florido e tépido,

o seu sorriso,

beijos, carícias, desejos, que eram os meus,

o corpo jovem de ninfa,

o odor a algas salgadas,

os cabelos nas minhas mãos, ela nas minhas mãos,

revejo-me nas profundezas do mar,

onde me levava e donde me mostrava o céu cobrindo-nos,

eu embevecido com tanta ternura,

com os seus seios cheios, lindos, excitantes,

ela tão doce, tão querida, tão meiga…

 

Temo desde há séculos a morte dos nenúfares,

lendas dizem que a cada um corresponde uma sereia,

uma sereia que morrerá com ele,

por nada deste mundo queria perder aquela que,

de entre tantas logrou encantar-me.

 

Temo desde há séculos a morte dos nenúfares,

lendas dizem que em cada um uma sereia que morrerá,

e por nada deste mundo queria desencantar-me...

deste lugar encantado de Odemira.

 

VIII – A FUNDAÇÃO DO REINO

 

Todos quantos vieram fundaram cidades,

misteres e boticas, oficinas, saberes,

importaram,  exportaram, e,

nem a placidez do mundo por uma só vez,

se atravessou de viés ou sonhos lhes desfez,

até que um dia… até que uma vez…

 

Era uma vez um rei português que pariu um reino,

e quis para si todas as terras avistadas e ocultas,

e as que a sul nem via, sabendo-as as mais bonitas, encantadas,

canto contado p’los pios duma cotovia, como fada no ombro pousada.

 

Terras encantadas de além Tagus em mãos infiéis,

foi certo e suficiente para que esse rei, primo e esperto,

desde logo para si todas elas quis, querer é poder,

que é como quem diz, quero posso e mando,

determino e ordeno, que se avance de vez,

contra as gentes de Fez, que a Ele nem respeita.

 

Vieram cavaleiros, vieram cruzados,

vieram besteiros, e gatos pingados,

vieram frades, vieram abades,

vieram vontades,

vieram Templários,

vieram estandartes,

e tudo que honrando a cruz e o rei por eles lutasse,

que o mesmo é dizer por Ele e p’la grei…

 

Era uma vez um rei português,

que convidou todos a galgar o Tagus,

a pé, a cavalo, de burro ou carroça,

dilatar a fé, marchar p’ró Al Gharb.

 

Eram uma vez, ou por mais que uma vez…

estas vastas planícies convocando, convidando,

obrigando a heroísmo forçado, desmedido,

desafiando o vingar da coragem pois, por mais que se ande ou se fuja,

não há onde esconder-se e os homens,

enfrentam-se de cara a cara, peito a peito,

as cimitarras silvando, as lanças voando,

as espadas ferindo e cortando, cabeças rolando,

 

espalhando p’la planície um clamor infame,

sem muros nem ecos, somente vastidão sem fim,

um sol inclemente crestando os feridos,

secando o sangue das batalhas, endurecendo a terra ensanguentada,

depois,

Primavera após Primavera, tudo será escondido,

tornado pó e esquecido até que, novamente, uma e outra vez,

estas ou outras gentes de novo se engalfinhem,

junquem de corpos a terra ardente,

voltando esta  a aninhá-los no seio como mortalha,

e quando olharmos,

quando mirarmos o reverberar das searas aloiradas,

serão as almas dos mortos, serão elas que veremos pairando,

flutuando no éter,

também aqui nada se perde e tudo se transforma,

as terras transtaganas não traem, guardam, resguardam, prendem,

embrulham no seu manto os que nela tombam,

como túnica ou sudário eterno, regaço materno,

abraço de esposa, ventre primitivo,  

 

Ourique 

 

IX - ÉBORA

 

Era uma vez o que um rei começou e outro acabou,

e de Guimarães a Ourique p’la fé se lutou,

em Évora um valente ajudou, e p’ra oferecer ao rei a cidade tomou,

valentia nos braços, no coração heroísmo, 

e em cada mão uma cabeça moura,

foi um desaforo este Sem Pavor, que perdão pediu e perdão ouviu,

el-rei lhe permitiu redimido ficar e,

para o homenagear, à praça maior o seu nome deu,

Geraldo Geraldes, o Sem Pavor p’lo rei perdoado,

venceu p’la coragem, venceu p’la bravura,

e nesta cidade nunca mais houve gente desta catadura.

 

Desta catadura ou desta craveira viriam depois,

do norte e das beiras, p’ra guardar fronteiras a sul do Tagus,

por el-rei perdoados e sacrificados, homiziados e outros aqui nados,

fé e violência marcou estas terras, que lealdade e  devoção tiveram por abraço,

do território um terço e quase sem gente, virou paraíso de viver indolente,

que a um outro rei coube repovoar e a um outro ainda semear e lavrar,

cumprindo-se assim Portugal, nascia o além Tagus de parto natural,

com ADN genuíno de gente plural.

 

Como tal aos transtaganos vieram a chamar,

passados muitos muitos anos, os alen tejanos.

 

Na Ébora liberta ouviu-se contudo um pio, uma voz queixosa,

lamúria de quem tarde desperta, de soneca enganosa,

de décadas prodigiosas de sublime prestidigitação,

de subtil e estudada artimanha, habilidosa e inútil.

 

Quedaram-se trespassados os brasões,

por quem na gesta manobra e esbulha,

garantindo a miséria, a pobreza aos milhões,

por gente somente vista dando e repartindo cartas,

tomai e embrulhai…

 

Coesão aqui, ali solidariedade,

caridade de um lado, piedade d’outro,

a mole humana avançando, de braço truncado,

a todos pasmando, chamando-lhes loucos.

 

Quedaram-se trespassados os brasões

por quem na gesta manobrava e esbulhava,

garantida somente a miséria e a pobreza a milhões.

 

Foi dar cartas, tomando e embrulhando…

Ali jaz Ébora, morta, sucumbindo exausta de tamanha luta,

ainda em pé e direita só a Travessa Torta,

provado que está e que assim ficará,

pois de boas intenções o inferno regurgita.

 

Quedam-se os brasões por quem na gesta manobrou e esbulhou,

garantindo miséria e pobreza a milhões,

queda-te cidade sem pavor e branca,

dobra-te às bandeiras negras,

resguarda em ti integridade e esperança,

dia virá que sacudirás jugo e feras

 

X – TODAS AS MALDIÇÕES

 

Era uma vez um dia negro, negras nuvens,

drama pintando de negro as terras transtaganas,

e Ébora sendo devorada pela peste.

 

Era uma vez um reino despovoado,

todo ele virado p’ra aventura e como castigo p’lo abandono,

a peste negra assomou danada, atacando a Évora desprotegida,

do estranho mal vindo da Europa, assolada pela doença malfadada,

desconhecida, temida, amaldiçoada.

 

Peste Negra lhe chamaram, à odiada,

 e arrasou Évora de maneira pior que fizera seculos antes Geraldo,

tanto ele como ela, um Pavor, ele sem, ela com,

conta a história.

 

Era uma vez um reino que quase ficara despovoado,

uma cidade sem gente e por peste atacada sem dó,

cidade além Tejo imenso, mas mar sem gente onde apoiar-se.

 

Aos poucos a judeus e mouros foi dado um tecto,

 

um tecto, um espaço onde construírem presente e futuro,

as judiarias, as mourarias, mas, nesta terra sempre ingrata,

aconteceu que da liberdade à imposição foi um passo,

ai daqueles que recusaram Deus, porque,

quase em simultâneo se expulsam uns quantos,

e se funda a Misericórdia misericordiosa,

misericórdia que não existira,

tolerância ausente … convivência mal tolerada …

mais forçada e vigiada que permitida,

vivência controlada, consentida,

até o Santo Oficio impor as regras.

 

Repor a ordem, sim, também em Évora,

agora palco de autos, mas não de Gil Vicente,

antes de fé, de devoção, de amor a Deus,

pois de amor e temor se vive agora,

vive-se a rigor e de rigor, o rigor mortis,

da peste bubónica, da praga dos ratos,

esse rigor mortis se espalhará p’lo Alem Tejo, horror,

mais temido que as naus, o mar tenebroso ou o desconhecido maravilhoso,

horror e fobia a cascas de noz e à madeira de Leiria.

 

 

E por falar em horrores, também os houve escaldantes…

 

Eram uma vez armas tinindo sob um sol sufocante,

o fragor da batalha queimando mais que o astro,

mas uma vez a peleja ganha a D. Afonso chamaram rei e aclamaram,

em Ourique morreu o condado, nasceu Portocale.

 

Muitos anos depois a coroa é depositada em figura sagrada,

Nossa Senhora da Conceição coroada e aclamada em Vila Viçosa,

tornada de Portugale padroeira essa vila, terra consagrada,

fiel depositária da real coroa, coroa que doravante rei algum haveria de usar.

 

Era uma vez o exército de Fez e dos sarracenos,

que expulsos daqui só o mar a sul impede perseguir,

ficou-se olhando-os, pensando no fulgor e riquezas das suas cidades,

quando, cobiçada essa ventura por ela somos empurrados,

fulgor alimentando aos infantes reais o cogito e,

serão minutos daí até que se ouça um grito,

foram momentos até que se ouviu bem alto um clamor,

daqui do Alvor, vamos a eles 

 

XI - ERA UMA VEZ UM TRANSTAGANO ALENTEJANO

 

Era uma vez um soldado maltês, um desconhecido,

ou um fenício,

um romano,

um suevo,

um alano,

um vândalo,

um cónio,

um ibero,

um árabe,

um beirão,

um cristão,

um galego,

um minhoto,

um bretão,

um galês,

um de riba Tagus,

um Templário,

um Hospitalário,

um de Cristo,

irmanados nessa roda que Deus fez e desfez,

 

caídos de carrossel rodopiando, girando,

girando como é próprio do mundo, que ao girar,

deu vida aos robertinhos transtaganos,

aos robertinhos deste mundo, deste teatrinho.

 

Era uma vez,  houve uma vez em que quase senti abissal êxtase,

arrebatamento, fragor de luta,

o tempo inclemente, um ferimento, um cansaço indolente,

a terra quente, o horizonte sem fim,

o chão ribombando, gentes clamando por mim,

e só depois vi, um físico prodigioso e um boticário junto a mim,

na mão, jasmim,

mais ali, um frade de burel ensanguentado e,

espetando neste chão sagrado a espada,

ajoelhando a meu lado, alguém que,

olhando-me ergueu a cruz ao alto, orando,

benzendo-me, oferecendo-me a extrema unção,

mas Deus não quis, e deixou que passadas horas me erguesse,

e caminhasse para que, mergulhando na ribeira me banhasse,

e me lavasse do sangue derramado, dos pecados cometidos,

e as feridas abertas curasse, nas águas redentoras da ribeira de Garvão,

 

XII – A MOIRA ENCANTADA


Era, uma vez mais eu,

era uma vez eu, um alentejano que, quem sabe se numa outra vida,

 lutei aqui por ti,

sinto-o, sinto que sim, que galguei estas muralhas que vedes,

sinto-me suando dentro do elmo, desta armadura em cota de malha d’aço,

sinto-lhe a brandura e o peso, sinto o punho da espada,

brando-a com vigor, o vigor que o amor à terra me concede,

ergo-a bem alto, desfiro o golpe, trespasso e mato sem amargura,

sinto-me herói,

a um firo, a outro mato, a um trespasso, a outros degolo,

olhai, estão aqui, aqui as tenho, uma em cada mão,

 basta-vos ? dai-vos por vencidos então ?

levai a El-rei tais cabeças,

dai-lhe testemunho do meu gesto destemido, dai-lhe tudo,

a vida, a honra, a cidade,

só à dignidade aspiro, sim, dizei-lho,

para que saiba, dizei-lhe o quanto amei sempre esta cidade,

esta cidade e uma moura encantada por mim mui amada,

por mim encontrada certa vez deitada num lago de um verde intenso,

ladeado por carreiro salpicado de frondosas e seculares árvores,

 

por baixo delas e de quando em quando, uns bancos em madeira,

um deles, aquele em que eu e ela tantas vezes nos  sentámos,

diria que onde nos habituámos pensar-nos,

debaixo dum sol tímido, dum céu azul ponteado por flocos de algodão,

tu e eu, nesse nosso banco preferido,

 tu sentada, eu deitado, de cabeça no teu colo, olhos fechados,

só esse momento existindo,

afagas-me o cabelo, enleio-te os caracóis, um a um,

deliciado pela sua maciez, cheirando a flores de laranjeira,

curvas-te para que lhes sinta o cheiro e,

a tua respiração quente no meu rosto enternece-me,

olho-te fundo nos olhos, ofereço-te a boca,

que unes à tua num longo e terno beijo, doce,

abandono-te os caracóis, divago …

o sol brilha aquecendo-nos de mansinho …… e …

sabendo nós quanto o futuro nos separa, entreolhamo-nos cúmplices,

e sem que o digamos, trocamos a realidade pelo sonho do momento,

a impossibilidade parecendo-nos mito de que desdenhamos,

recusamos aceitar um mundo tão curto e simultaneamente tão extenso,

um mundo nem feito para nós nem à nossa semelhança.

 

É agreste este mundo, cresta-nos toda uma vida, todo um futuro.

 

Nem é mundo que queiramos, nem vida que desejemos,

sabemo-lo.

 

Tão bem o sabemos que tudo fazemos para o ignorar e,

quanto mais nisso teimamos mais dele nos parece aproximarmo-nos.

 

Ilusão. Quão gritante e desesperante ilusão.

 

Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro,

forças ocultas recusam que este sonho seja concreto.

 

Frustrante, tão frustrante quanto o calor deste sol imaginário,

sob o qual porém buscamos comprazer-nos neste dia tímido de céu azul,

onde não pontilham já flocos brancos, algodoados,

antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos,

e prenúncios exasperantes de dias jamais cumpridos.

 

Não sonhes, não sonhemos, recusemos sonhos, ilusões, devaneios.

Cada um de nós tem um caminho a seguir,  um silício, cumpramo-lo,

que se cumpra na dureza dos dias, no tempo e vida que nos resta,

 

que o soframos com coragem, em intimidade e segredo,

com a mesma gana que para nós guardamos,

e aceitemo-lo sob esta frondosa árvore cuja sombra nossos sonhos acoita e,

porque embora o não queiramos,

sim, aceitemos que afinal há longe e há distancia,

reconheçamos quanto de impossível nos separa.

 

Aceitemos este mundo curto e extenso,

nem feito para nós nem com espaço para que nos cumpramos.

 

Sonhemo-nos,

como quando a tua respiração no meu rosto me enternece,

me leva a olhar-te no fundo dos olhos, a beijar-te terna e docemente,

e, num longo e aconchegado abraço,

chegar a mim o teu peito arfando, no qual me perco e afogo,

enquanto as mãos vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas,

que apertas como quem prende o futuro e o desejo  numa avidez não saciada,

exasperante,

e me solicitas que avance e te descubra.

 

E é quando te soltas e me aceitas que me perco deslumbrado,

extasiado na premência de ti e de mim, te percorro suavemente as curvas ,

 

sonhos dessa imagem que me tolhe, me tolda os sentidos,

e te sinto acariciando-me o peito, a boca sugando-me,

num ímpeto que te devolvo tremendo de emoção ao afagar-te, sôfrego,

os seios repentinamente endurecidos cujo odor adivinho,

enquanto os dedos por ti passeando colhem o cheiro inebriante da tua oferenda,

qual dádiva sacrificial de quantas promessas jurámos e jamais cumpriremos,

porque afinal, e por muito que o neguemos, há longe e há distancia.

 

Refreemos sonhos e desejos, ilusões, sentidos e emoções,

travemos promessas e esperanças e,

sabendo quanto de impossível nos separa,

recusemos cumplicidades, reneguemos o momento,

sonhemos a realidade.

 

Cada um de nós tem um caminho a seguir,

sigamo-lo nesta ilusória intimidade por partilhar e cumprir,

conscientes de que o pouco que de inolvidável possuímos,

jamais poderá ser esquecido,

por tudo a quanto platonicamente aspiramos.

 

Aceitemo-nos, cumpramo-nos na certeza do que somos e temos,

porque ainda que somente em sonhos, nos pertencemos.

 

Era uma vez a história do islão ocupando a Península,

califado em Córdova e pés assentes nas terras transtaganas,

terras de onde só foi expulso p’lo rei D. Afonso II,

pois reza a história que uma vez,

por volta do ano de setecentos e pujante na península,

o islão tentou a expansão natural, naturalmente p’rá Europa,

avançando p’los reinos francos,

e após ultrapassada com êxito essa barreira natural,

essa defesa natural, os Pirenéus,

os mouros viram contudo o sucesso perdê-los,

perdê-los a eles homens do islão,

digo que o sucesso os perdeu pois de sucesso em sucesso,

reinos francos adentro, foram indo cantando e rindo até QUE,

se confrontarem com Carlos Martel, em Tours, ou em Poitiers,

aqui as opiniões dividem-se,

tendo-lhes sido infligida memorável derrota.

 

Digo que as opiniões se dividem porque então, como agora,

as opiniões podem ser tantas quantas as cabeças,

as cabeças que as emitem ou formulam. 

 

À falta de jornais e televisões, máquinas fotográficas,

selfies que provem a veracidade da coisa,

os de Poitiers puxam pela brasa à sua sardinha,

fazendo os de Tours o mesmo.

 

Um pouco à imagem do nosso Vasco da Gama,

primeiro Almirante-Mor dos Mares da Índia,

que nos afirmam ser natural da terra dos bons vinhos,

a Vidigueira,

e o Gama era um apreciador do néctar dos deuses,

enquanto outros afirmam o contrário com a mesma convicção,

 ser o Gama natural de Sines,

terra e águas onde terá aprendido a manobrar o timão,

aprendendo, tecendo e entretecendo as lides de marear,

e a não temer o rei Neptuno nem o mar tenebroso,

certeza que inequivocamente conhecemos.

 

Apesar de ser apreciador dos vinhos da Vidigueira,

se me perguntarem direi que,

 sob o patrocínio deles o Gama não teria ido mais longe que o sofá da sala,

já quanto a Sines, chamo à colação António Sérgio  e Orlando Ribeiro,

não terei dúvidas em aceitar as explicações destes dois grandes,

 

grandes mestres em como a vila piscatória terá sido o seu berço,

seu do Gama.

A morte ocorreria em Cochim, India, nas vésperas de Natal do ano de 1524,

cidade que foi a sua honrosa tumba,

tendo em 1539 os restos mortais sido transladados para Portugal,

mais concretamente para a Igreja de um convento carmelita,

conhecido actualmente como Quinta do Carmo,

próximo da vila alentejana da Vidigueira.

 

Aqui estiveram até finais do seculo dezanove,

data em que de novo foram trasladados, para os Jerónimos,

há quem continue defendendo que os ossos do Gama,

inda se encontram na vila da Vidigueira,

daí a polémica quanto à naturalidade.

 

Mas voltando aos islamitas, tal deve ficar-nos na memória como exemplo,

p’ra que não sejamos invejosos, ambiciosos ou materialistas.

 

Os soldados do islão irromperam pelos reinos francos,

em campanha vitoriosa contando e cantando anos e anos de lutas,

e anos de lutas significam anos e anos de proveito e saques,

de experiência e despojos,

 

que é como quem diz toneladas e mais toneladas de despojos,

a sua riqueza, a sua fortuna pessoal, a sua pensão...

 

Resumindo, desfizeram-se do armamento essencial,

para manter o acessório, que contudo lhes garantiria uma reforma digna.

 

No ano de 732 Carlos Martel investiu contra esses materialistas,

contra um exército de soberbos a quem faltava o elementar,

o armamento, naturalmente,

e apesar da diferença numérica chacinou-os,

 obrigando-os a recuar para aquém Pirenéus, até hoje,

digo até ontem, pois acabaram por ser varridos daqui.

 

Há pormenores, particularidades, detalhes,

elementos e circunstâncias de que raramente nos lembramos,

ou desconhecemos, mas que se revestem de crucial importância.

 

Naquela época não se viajava de avião, nem de comboio ou ferryboat,

naquela época os exércitos arrastavam-se penosamente ,

sobre estradas por construir, em carroças rudimentares,

puxadas por cavalgaduras e carregadas de trigo,

aveia, cevada, favas, alfarroba, e tudo que roubassem,

 

calçado e tecidos, panos, toldos, tendas,

vasilhame, pregos, ferramentas, pedras de esmerilar,

fogões, fogareiros e forjas, carne salgada e fumada,

cestos de costura, temperos, ervas medicinais,

poções, amuletos, coisas que tais etc, etc, etc …

 

As carroças lá seguiam guinchando, ladeadas de carpideiras profissionais,

“parteiras”, “enfermeiras”, poetas e trovadores, jograis e escribas,

os soldados atrás carregando todo o seu armamento e espólio,

ou os despojos, de que não souberam despojar-se,

e atrás destes as mulheres, as suas e as outras, e as crianças,

e os sapateiros, os ferreiros, os físicos, os ferradores, os sangradores,

e evidentemente o putedo, as putas,

a mais velha profissão do mundo e presença incontornável,

pois havia que manter o exército permanentemente animado,

e entusiasmado,

nem todos eram casados ou amigados, e o casamento como hoje o conhecemos,

nem sequer tinha nascido por esses dias…  ou dado os primeiros passos.

 

Quem já viu o filme “Aníbal e os Elefantes”,

 ou leu “A Viagem do Elefante” de José Saramago,

terá uma ideia da dificuldade com que os exércitos se debatiam,

 

pelo menos enquanto marchavam, pois por aqui se mantiveram mui tempo.

 

Quem disse que o Alentejo não cavalgou a onda ?

quem disse que os nossos mares são somente de searas ?

quem disse que a charneca em flor só deu lavradores ?

sim foi a Florbela que o cantou, que a cantou.

 

Era uma vez um jovem português de nome Pêro de Évora,

que com Gonçalo Eanes  subiu o rio Senegal em 1487,

numa expedição ao interior africano até Tucurol e Timbuctu,

como estais  vendo o Alentejo deu exploradores, aventureiros, poetisas, e doutores,

Eça o foi no nosso distrito com o Distrito de Évora, perdoai-me a redundância,

e por aqui passaram outras luminárias, Vergílio Ferreira, José Cachatra,

António Palolo, não somos parolos, mas aventureiros, e para rimar,

em Arraiolos houve tintureiros, quem sabe se vindos do Magreb,

de Marrocos ou da Mauritânia,

a verdade é que naquela citânia foram descobertas tinas,

tinas de tintureiro, tinas de cores,

sabe Deus se das cores que precisaram para os tapetes,

os tapetes em que essa terra é famosa, se tornou famosa,

sim, que isto da história anda tudo ligado,

a própria Évora teve a sua história áurea,

 

mas também épocas de penúria, e p’lo menos uma vez  nesta cidade liberta,

se ouviu um pio, uma voz queixosa, lamúria de quem despertara só então,

de uma soneca enganadora.

 

Quedara-se a cidade sem pavor e branca,

dobrara-se ás bandeiras negras,

resguardara em si integridade e esperança,

dia viria em que sacudiria jugo e feras.

 

E foi nessa cidade d’ Évora que eu, maltês,

mais uma vez fui enfeitiçado, dessa vez por uma deusa num jardim,

e cingidos visitámos os lugares mais sagrados,

e outros, onde a luxúria e o sonho nos conduziram,

 quais príncipes encantados com a beleza desses dias e acreditando,

que dias de fome e pranto jamais viriam ensombrar estas praças, ruas e encanto.

 

XIII – O ESTABILIZAR DAS FRONTEIRAS

 

Era uma vez em que avançavam loucas as toucas de Abu – Yusuf Yaqub al Mansur,

subindo ao Tagus,

lanças ao alto, cimitarras silvando,

só Ébora escapando dessa vez.

 

Mas eis que finalmente Alcanizes fixa direitos e deveres,

o reino estende-se agora ao Al – Gharb,

c’a ajuda dos Hospitaleiros e dos Templários, dos homens da cruz de Cristo,

todos eles excelsos cavaleiros e ainda melhores guerreiros.

 

Estendida a paz era uma vez uma donzela chamada Inês,

dos Castros nascida e por Pedro tomada,

história de amor e violência com muita pendência,

historial de lutas enterrado em Alcoutim,

dada aos de Santiago,

no meio de cujo rio Fernando e Henrique se abraçaram.

 

Era uma vez Pedro e Inês, que viveram uma paixão imortal e infernal,

quem viveu pela primeira vez em Portugal um amor tal,

tão verdadeiro que jamais se vira igual, tão vero que o senti meu.

 

Quem o não invejaria ? Quem não o quereria seu ?

tão unidas duas vontades, dois amores, dois corações,

por isso, a quem traiu lealdades, p’las costas o seu viu arrancado,

amor plural, amor brutal, em todos os sentidos anormal,

nem isso as gentes estranharam, por amor toda a vida homens se mataram,

 matam e matarão,

por amor, pela posse,

 com ódio e violência,

impondo imposição, ou por submissão,

exigindo exclusividade, assegurando a propriedade,

fidelidade e morte lhe são pertença,

tudo que a espada toca o homem reclama,

a uns D. Pedro fez a cama, ele mesmo fizera a sua,

e quem boa cama fizer nela se deita,

e quem não que aguente, pois nela se deitará,

todavia,

Alcoutim tudo encerraria e faria esquecer,

até um dia…

 

Todavia D. Pedro devia ter-lhe dito, mas não disse, quem diria,

não fosse Inês temer o choque inesperado ,

choque que certa e provavelmente lhe provocaria.

 

Caos na bonança ou tábua de salvação na tempestade ?

D. Inês arrastava crise dinástica ou vã cobiça e interesses vários ?

 

Dir-lhe-ia, ou ter-lhe-ia dito…

quanta perturbação causavam a sua beleza, a sua presença,

e as suas palavras na corte portuguesa ?

 

Dir-lhe-ia quanto aqueles cabelos desalinhados seduziam e atropelavam pensamentos,

confundiam os sentidos baralhando tudo e todos, tirando-os do sério,

do regrado que cultivavam com parcimónia cortesã ?

 

Sabemos que a evitavam.

Evitavam-na pelo pavor de sucumbir à sua atracção, ao seu chamamento onírico,

aos sonhos… Confundidos com desejos, sentindo-se frágeis perante ela,

sempre prestes a naufragar sob as ondas intensas da sensibilidade que emanava,

sob a sensualidade que lhe servia de aura, como se fora uma santa ,

a quem entregassem vicissitudes, ensombrando-os, requebrando-os.

 

Dir-lhe-ia D. Pedro tudo isto, mas não disse,

receoso de que a sua atribulada vida mais se enovelasse,

enredasse, emaranhasse, e perdesse a bela Inês da sua alma,

sonhando-a, desejando-a,

 

pensando-a sempre a seu lado no caminho pedregoso que decerto seria o que pisassem,

por muito sol que o sorriso trouxesse à sua vivência,

à qual o calor da existência arrancara ao marasmo e,

atirara brutalmente às alterosas vagas uma vida em turbilhão constante.

 

Acossado regularmente pelas insinuações desabridas dos nobres,

 que finge cada vez mais não entender, não perceber, mas percebe,

alvoroça-se-lhe a alma cada vez que…

cada vez que finge ignorá-la quedando-se ante a sua aparição,

como devoto envergonhado pela sua devoção, temendo perder a compostura,

temendo perder o pé num mar de angústia, afogar-se onde mergulhasse ,

mau grado o desejo consciente e cego de simultaneamente nela se refugiar,

num gesto de protecção e fragilidade,

qual berço de serenidade perseguida mas não encontrada,

mas ele nada sabia…

 

Só se sabia porto de abrigo, ávido de acolher-se nela e nela se refugiar,

 ganhar forças para não soçobrar ante a tensão acumulada e calada,

cuja culpa por ela reparte,

qual desassossego que muito teme e ainda mais deseja, até ao dia em que,

finalmente, possa dizer-lhe vinde a mim senhora, tomai-me, somos uma sombra só,

um só caminho, acertemos o passo, descansemos do tumulto que nos consome,

 

sossegai, sou eu, estou aqui, abraçai-me, aquietai-me,

és tu minha bela Inês ?

 

Sou eu meu senhor,

já não vos temo, já não vos evito, já não frágil,

e convosco de novo um colosso,

e vossa mercê  já não mero sonho, já não somente desejo, já não simples aparição,

estais aí senhor, existis, sinto-vos o pulsar,

o bater compassado e ritmado do coração acompanhando o meu enquanto renasço,

e sinto a vida surgir novamente em torrente impossível de deter,

que não quero deter,

e repito-me,

sinto a vida aflorar em torrente, em golfadas, em êxtase e delírio incontidos,

sorriso nos lábios por vossa senhoria.

 

Esta paixão é torpor no meu corpo macerado, e por vós renascido minha bela Inês,

sou Fénix, sou Ícaro, sou Apolo, Deus… Assim me sinto quando me falais minha bela Inês,

quando me sorris senhora minha,

ter-vos-ia decerto dito há muito tudo isto se não temesse a reacção em mim,

a dor em mim,

o sofrimento em mim,

a frustração em mim…

 

Ter-vos-ia dito… mas não disse, jamais diria,

preferi  esconder o que mudaria o rumo ao mundo,

lhe deslocaria o eixo,

a terra move-se, a vida flui, os sonhos vivem-se no lugar próprio,

e eu senhora minha,

qual formiga no carreiro, recuso-me ao pontapé que enlouqueça o formigueiro…

mas sou eu senhora minha que enlouqueço, quem se deita  pensando em vós,

sou eu quem acorda sonhando convosco.

 

Oh !

como neste momento queria ter-vos,

numa cama baixa,

nem chão nem baldaquino,

nós dois num frémito,

de  visão toldada e c’a razão perdida,

nada mais pediria que beijar-vos os olhos,

morder-vos os lábios,

oh !

sentir as vossas coxas roliças contra as minhas,

abraçando-vos,

olhando-vos como a uma flor que se abre,

endoidando por adivinhar em vós um perfume no ar,

 

deixando-me embarcar numa vertigem escorregadia,

resvaladiça, movediça, lúbrica, quente, palpitante,

sentir em mim a pulsão bramindo,

contudo cortês, espero ansioso deslizar cortêsmente,

sem perder a calma, entregando-vos a alma, devagar, devagarinho,

no quentinho,

beijando-vos e abraçando-vos feito doido, doidinho,

o que tardava quero já, agora, devagarinho,

não me façais esperar senhora minha, agora,

quero-vos agoraaaaaaaaaaaa,

de modo ternamente violento, repentino, oh !!!!

 

vinde a mim o espasmo tão temido,

 

oh !!!

 

tão querida agora senhora, como me sois querida senhora minha,

querida amada não vos mexeis,

não tireis ainda,

deixai estar senhora do meu coração,

ooooo hhhhhhhhh !!!

minha tão querida senhoraaaaaaaaaa.

 

Chamais D. Pedro ?

sou vossa meu senhor,

descansai.

 

Descansou D. Pedro naquele quarto de tecto alto,

onde os cortinados mais pareciam panejões dum palco ,

mas pensados para uma alcova real e como tal ,

para casados,

uma larga cama de dossel, estrutura em baldaquino,

e na parede oposta viçosa lareira.

 

Naquele ninho acolhedor D. Inês sentir-se-ia rainha,

e não fosse a desmesurada altura das janelas, das portas e do quarto de dormir,

nupcial,

seria sinónimo de paraíso na terra,

mas o ar extasiado, absorvente e feliz que apresentava seria sempre notado,

ei-la entregue àquele adónis cheirando a barro, a papiro e pergaminho,

não pedira mas desejara-o fervorosamente, D. Pedro era o amor da sua vida ,

o milagre acontecera. 

 

XIV - A EXPANSÃO MARÍTIMA

 

Era uma vez um dia negro, negras nuvens,

eram uma vez armas brasonadas sob sol escaldante,

sonhos queimando mais que o fulgor do astro,

era uma vez Fez e os sarracenos, perseguidos até ao mar a sul e expulsos,

sim, e uma vez expulsos, ficara-se pensando nas suas cidades,

riqueza, ventura, cobiça e,

para elas nos sentimos empurrados, alimentámos o cogito do infante real e,

em minutos ouviu-se um grito,

foi um momento até que se ouvisse bem alto o tal clamor !

vamos a eles !

 

Com Castela acabara de ser  assinada  a paz,

olhos e corações olharam para o Saara,

não tardou que enfunadas as velas lhes atacássemos as cidadelas ,

desta feita transtaganos desbravando um estreito perigoso,

depois dele um mar tenebroso que afinal era só de enganos,

Ceuta,

Porto santo,

Madeira,

Açores,

 

o Bojador,

Angra dos Ruivos,

Rio do Ouro,

até que,

Tânger nos trava e D. Fernando aprisiona,

querem de volta Ceuta os infiéis,

a que Leiria nega provimento,

seguem-se Arguim,

Cabo – Verde,

Alcácer - Ceguer,

Serra Leoa,

Arzila,

e de novo Tânger,

que fora simplesmente abandonada e tanto nos custara quarenta e seis anos atrás,

por ela fora D. Fernando aprisionado,

agora vazia,

inútil,

ri-se a história, 

mas entretanto o refém é executado,

os sonhos têm preço, e os pesadelos preço ainda mais elevado,

Portugal cobiça agora o mundo,

avançámos aos saltos,

Portocale,  

além – Tagus,

Al – Gharb,

e dali o mundo numa casca de noz,

ao além Tagus fomos buscar a embalagem,

no Al-Gharb fincámos o pé para o salto,

e agora o mundo.

 

Era uma vez a ordem de Cristo,

fundada p’ra sobre a terra reinar,

e agora igualmente sobre o mar,

levando e esperança e a fé,

a  espada, a devoção e um padrão,

padrão granítico, símbolo eterno,

duma ordem criada p’ra vingar,

p’ra navegar, descobrir,

tomar, aprisionar, matar,

e em nome do Senhor se impor,

presente em cada padrão, em cada vela,

em cada caravela,

em cada espada desembainhada,

em cada chacina abençoada e perdoada,

contra o infiel marchar marchar,

levar a cruz, levar a luz,

levar la paroli di Dieu,

ao cego temos que ensinar,

doutrinar, converter,

levar a luz, para que veja,

levar a repressão que ilumine,

a força que domine,

a palavra, naturalmente a minha, a nossa.

 

Não é pantomina a história trágico-marítima,

é verídica, apostólica,

cívica, evangelizadora,

aterrorizadora,

mas moralizadora, morigeradora,

reveladora…

e nessa ordem de Cristo não por acaso foi ao tempo

nomeado administrador alta figura,

mui nobre criatura, filho ínclito,

D. Henrique , ele mesmo o infante,

corria o ano de mil quatrocentos e vinte,

a epopeia enfunara as velas,

o futuro era em frente,

o destino, dominar a terra,

erguer sobre ela a cruz de Cristo,

globalizá-la, globalizar a fé,

a descoberta das Índias, das Américas,

a circum-navegação de Magalhães,

sem o impulso de Cristo quem ?

quem empurraria o destino e manteria o rumo ?

quem manteria no eixo o mundo ?

 

Era uma vez à esquerda Castela…

à direita o mar,

e então que fazer ?

sim havia que fazer alguma coisa,

cuidar do mar,

cuidar de cuidar,

cuidar de manter Portugal na vanguarda,

agora que se estava construindo um mundo novo,

e se lhe calibrava o eixo,

havendo que cuidar do porvir,

pois estava por vir um novo mundo.

 

Era uma vez um maltês marinhando…

 

Sim vou conquistar o mundo nesta casca de noz,

e durante meses voguei em bem-aventurança pelo mar oceano,

ventos felizes e arcanjos perspicazes uniram-se para,

em harmónica simbiose darem corpo às linhas que,

na palma da minha mão,

desde a nascença,

marcavam um rumo, o qual,

durante anos se mostrara a toda a gente

incógnita insondável.

 

O mistério ter-me-ia sido desvendado anos depois,

quando em noite de insónia me senti levado, sonhando,

numa canoa oca e em  tão inesperada viagem,

a que  os Deuses concederam  desígnios tais que,

 há séculos teria sido invejado por Ulisses.

 

Desta forma inesperada marinhei incólume pelo mar da fantasia,

e p’lo oceano mágico do encantamento,

sem que uma vaga sequer ou um salpico ao menos,

me tivesse marcado o rosto tisnado por tanta felicidade,

recebida e aceite comigo incrédulo e extasiado pela prebenda.

 

Foram meses atento às vagas e  correntes,

aos sóis e às luas cada noite,

numa perdição completa de mim mesmo,

e numa entrega messiânica e devotada a tão feliz felicidade.

 

Jamais teria acreditado no suceder-me,

não tivessem sido cânticos por mim ouvidos,

oriundos da beleza indizível de uma sereia baixinha,

por artes mágicas atraindo-me e chamando-me a si.

 

Alucinado por este belo sonho me quedei,

em ilha mirífica onde o tempo não tinha fim nem principio,

o espaço nem alto nem baixo, direita ou esquerda,

e cada dia mais cônscio ser ali que desejaria viver e morrer,

ainda que os dias não tivessem fim,

apesar de recordar auroras indizíveis a oriente,

e um pôr-do-sol permanente e risonho a ocidente.

 

Foram tempos imemoráveis que nem sei a quem devo ,

e a razão de os não esquecer mas crer vivamente irrepetíveis,

tal a felicidade fruída e que julguei eterna.

 

O inimaginável infinito é contudo prenhe de mistérios,

que o homem não desvendará nunca e,

quando tudo julgava perene e imortal ilusão,

senti levantar-se um vento medonho,

vindo das profundezas da minha alma devotada,

vi o céu escurecer por artes negras,

e ameaçadoras montanhas de carregadas nuvens,

vagas erguendo-se em castelos terríficos ,

agitando-me o corpo e o ser numa cadeia de emoções

a que os sentidos se mostraram incapazes de responder.

Exausto, vencido,

quedei-me petrificado de terror no fundo da singela canoa,

não compreendendo por que pecado estaria sendo condenado,

visto nem a mínima indulgência me ser concedida, e,

interrogando-me perante tão desgraçada quão breve morte

a que a fúria dos elementos parecia destinar-me,

já que em serena canoa me parecia navegar ,

ou em casca de noz,

montanha-russa,

ora atirado e batido,

ora a cada vaga mais perto do fim,

até que outra vaga maior ainda me acometesse,

ora boiando num esquife malfadado que o Adamastor tivesse empurrado.

  

Incrédulo,


cansado e assustado com a minha sorte e previsível morte,

adormeci extenuado

e amedrontado ante aquele terror mais vero que imaginado,

recuperei os sentidos noite alta, mar chão,

 iluminado pelo que me pareceu o Cruzeiro do Sul,

apreendido como sinal maligno de um fim próximo.

 

Uma vez mais me enganaria,  tão depressa se fez dia que,

vendo nos céus monstros de papel e aves plásticas sob várias formas e cores,

me mirei e belisquei duvidando da vida em mim,

coberto de suores frios,

pingando em gotículas transformadas p’lo sol em miríades de cores,

tão admiráveis quanto as que a bela sereia reflectia quando,

na praia maravilhosa para que me arrastara,

suas escamas aquecidas sob o astro faiscavam.

 

Então tomei consciência de que a minha hora ainda não chegara,

aquilo mais não podia ser que  presságio benigno

de venturosos dias a viver,

cuja esperança me acalmou na bonança instalada,

e como que para avaliar o valor prodigioso da felicidade gozada,

por uma vez acreditei não ser em vão tanta meiguice,

tanta doçura e ternura, tanto amor e ventura.

Sendo indiscutível truísmo que,

 só depois de perdidas as coisas nos mostram o seu valor,

ou o alcance da perda,

logo ali acreditei que tamanho susto, e depois prazer,

mais não seria que uma partida dos deuses,

p’ra que jamais esquecesse a fortuna dos dias vividos ou a quem a devia.

 

Acordei em sobressalto, entre a noite alta e a madrugada.

 

Curiosamente chorava, contudo jamais saberei por quê,

se pelo maravilhoso sonho, pelo susto ou pela perda.

 

Era uma vez mais um maltês soez,

alistara-me,

à esquerda Castela, à direita o mar,

a fé foi o móbil, a cobiça a mola,

a aventura o meio, honra e glória o fim,

do Al Andaluz ali será um passinho,

será só atravessar este marzinho,

que esperamos senhor ?

 

XV – A PAIXÃO PELO DESCONHECIDO

 

E, firmadas as terras transtaganas o infante lança-se,

afoita-se ao mar, Ceuta primeiro,

até que, em Tânger o sonho se desfez,

mas não de vez, corrigido o rumo,

apontámos ao mundo com aprumo e,

fio de prumo sulca o Atlântico dividindo o globo em Tordesilhas,

enquanto no Sado o sal brilha e é rei,

e anos mais tarde em Alcácer-Quibir o rei nos morre,

tomando Castela isto, os holandeses aquilo,

a inquisição o resto.

 

Desde o  movimento inicial, o impulso primário,

desde a viragem, a partida para o mar,

que os oceanos não  param, expandem-se,

não indolentemente, mas submetidos ao nosso querer,

como o correr das nossas vidas e dos dias,

expandem-se,

nem casuística nem aleatoriamente,

expandem-se simplesmente,

traçados nas nossas cartas,

diria mesmo que no futuro os poderemos prever,

antever, adivinhar, intuir, inferir, explicar, projectar,

tanto o  caótico quanto o teórico e incerto,

quão o caos definido como origem de tudo.

 

No início era o Verbo, no início era Ptolomeu,

esse Ptolomeu que,

com a mesma aparente passividade que o infinito nos parece,

já que, expandindo-se, será finito a cada passo,

nos moldou, moldou e molda pensamento e medo,

esse Ptolomeu que nos forçou a transmutar os dias,

o porvir, umas vezes tornando ilusão o que foi,

outras inacreditável o presente e até previsível o futuro.

 

É-nos impossível adivinhá-lo,

quando muito temos dele uma ideia feita,

preconcebida,

projecção de rotinas, mas também de experiências,

 pisadas e repisadas na constância das vidas vividas,

como qualquer outro aceitámos,

como qualquer outro idealizámos,

cumprimos,

mas procurámos aditar a irreverência da exaltação,

ou a alegria das descobertas felizes.

 

Como é relativa a apreciação que cada ser faz desses momentos !

Não fora o sonho e eles seriam tão válidos como falácias,

foi o sonho quem comandou as naus,

foi o sonho que permitiu sobreviver aos momentos de aperto,

em que das naus tantas vezes se gritou socorram-nos !

 

Não fossem os sonhos e como suportaríamos o tédio dos dias,

a ocorrência das vidas simples, balizadas,

vidas mais dos outros que nossas ?

 

Por isso brindámos aos sonhos, aos dias então futuro,

e nos envolvemos, sim, neles nos envolvemos,

qual molusco em casca dura, e os tornámos fim e meta,

objectivo e escape de todo o povo,

de todo o reino.

 

Foi sempre na miríade de momentos felizes que sonhámos,

e nos julgámos centelha luzidia e fugidia de girândola,

girândola absurda em que nos queriam fazer acreditar vivermos,

tendo-nos acontecido crermo-nos e pensarmo-nos vogando de mãos dadas,

à beira do precipício onde diziam acabar-se o mundo,

olhando felizes e despretensiosamente o sem fim do mar,

ou, no regresso, os campanários das urbes,

os bandos de aves cruzando os céus ,

num V cujo vértice lhes aponta rumo e destino conhecido,

e, nesse item nos superam, nos superam a nós  vulgares mortais,

vogando em cascas de nozes e a quem foi dado o livre arbítrio,

mortais mas portugueses, e traçámos com ele um novo mundo.

 

Por isso, ao invés das certezas que às aves invejámos,   

nos quedámos sonhando,

capazes de tomar decisões e decidindo,

acreditando nas certezas tornadas aspiração e,

repetidamente,

teimámos nos mesmos sonhos como se,

desse modo,

pudéssemos alterar com as nossas mãos o mundo,

esse mundo e,

as linhas com que se cose e,

desde crianças nos limitavam o futuro,

esse mundo  se nos oferece agora,   

a terra, os meridianos, os paralelos, o eixo,

tornámo-nos varinha mágica, desenhámos um mundo novo,

cumprimos os sonhos, tornámo-los realidade,

viajámos de mãos dadas,

visitando lugares antes só em sonhos percorridos,

ou outros onde a luxúria das miragens nos conduziu,

 feitos príncipes encantados ou encantados com a beleza desses dias,

desses lugares,

como se num outro universo,

universo paralelo,

ou numa outra vida,

noutra dimensão,

de cujos céus roubámos as estrelas que pusemos nos ombros,

como dragonas de luz,

aliviando as dores, o sofrimento,

o peso das responsabilidades sofridas e que,

nem  carácter nem personalidade nos permitem alijar.

 

Então, mais uma e outra vez…

nem as rotas ficaram negras,

antes pautas musicais que um violão conjugasse,

nas quais caminhámos com destreza e velocidade,

nas cascas de noz em que nos sonháramos ,

percorrendo os mares dias sem fim,

sem nuvens ou escolhos que o sonhar travassem.

 

Fomos decerto nós mesmos quem,

sem passado nem peso,

eternamente sonhando a realidade sonhada ,

numa Primavera enfrentámos o mar sem princípio nem fim,

e os terrores que toldavam a razão,

fomos nós quem perpetuamente soltámos esperanças e flores ,

e as derramámos viçosas,

viçosas e belas sobre os mares tenebrosos,

e os tornámos coloridos e risonhos,

os sete mares do Quinto Império,

 primeiro Assírios, Persas, Gregos e Romanos,

depois o Grego, o Romano, o Cristão e a Europa mas,

após quaisquer deles sempre nós,

o Quinto Império Português,

desbravado numa casca de noz,

o mar agora tornado mar chão,

espelho mágico,

caminho livre,

como na história do feiticeiro de OZ.

 

Era uma vez um maltês buscando a Esmeralda perdida,

partindo de Sines, ou da Vidigueira,

rainhas do Alentejo entrincheirando-se,

afinal onde nasceu esse maltês ?

o Gama ?

o tal que em Cochim se foi findar ?

na Vidigueira gritam uns,

em Sines apostam outros,

mas onde quer que tenha sido,

era alentejano o homem dessa vez,

o homem que aos mares frente fez ,

o homem que o Adamastor derrotou,

o homem que seguiu em frente pois atrás iria gente,

na frente de outros ventos de outras esperanças,

tocará a India e regressará,

a fim de ser aclamado em Belém,

de cá,

por quem se brigarão sobremaneira,

os de Sines e os de Vidigueira,

porém,

quando o Gama  parece ter esquecido ,

uma e outra dessas duas vilas,

lembra-se El-rei de o tornar vice rei,

de meio mundo,

daquele outro lado do mundo onde caiu,

onde era tudo,

e nesse mesmo ano achou o louvor e a morte, 

tal foi a sua sorte , o seu azar.

 

Porém ficou na história do mar,

do navegar e deste Portugal que engrandeceu,

mar que o Gama e seus capitães dominaram,

mundo que depois Magalhães desenhou,

e foram feitos tais que exigiram demais,

a vida ao Gama, a vida a Magalhães,

mas foram do Gama os feitos que Camões cantou,

feitos valorosos, tenacidade inquebrável,

teimosia admirável,

caracter em ferro forjado,

arte eximia a navegar,

ele que melhor que todos soube ao mar falar,

acalmar, dominar,

com tudo quanto em Sines aprendera,

e com a voz d’El-Rei a ordenar,

enfrentou medos medonhos,

enfrentou pesadelos, sonhos,

foi ele ao leme e sete almas bentas quem

dobrou o Bojador e as Tormentas,

fez das fraquezas forças e das forças esperanças,

trilhando o desconhecido e sorrindo,

sorrindo e avançando,

destemido, ousado, decidido,

cortando a direito, justo,

prático, pragmático, oportuno,

directo, franco, grande,

como só os grandes sabem ser,

e a tudo e a todos enfrentando,

sem hesitar, sem temer, sem torcer ou vergar,

para o seu ou para o outro lado,

torcer ou vergar é ceder,

é sucumbir,  ser parcial,

ser sectário, partidário,

e o Gama estava ali mas sem ser ele,

ali ele era El-Rei de Portugal,

e almirantes dos mares,

senhor dos oceanos,

das rotas marítimas e estelares,

descobertas e por descobrir,

abertas e por abrir,

jamais se imaginara quão longe iria o lavrador da Vidigueira,

ou o pescador de Sines,

as duas vilas que inda hoje o lembram e disputam,

contudo, é assim sim.

 

Sim foi uma vez um navegador português,

alentejano,

pois terras boas dão boas castas, boas cepas,

melhores colheitas,

ou deverei dizer pescarias ?

melhores gentes,

se só no além Tejo podemos espraiar o olhar,

p’las planícies vastas, ondulantes,

esquecer as searas do reino p’ra se meter a marear ,

todo o reino se afoitou ao mar que amámos,

e tudo no reino abandonámos,

tudo mais ficou por fazer,

por cuidar,

o eldorado passara a ser o mar,

e quando faltaram braços,

as naus se encheram de devassos,

condenados,

prisioneiros,

bêbedos,

e todos quantos a ronda apanhasse,

ou arrebanhasse na sua rede.

 

Foi uma vez uma pequena nação,

por Deus empurrada  p’ra tão grande feito,

a que homens valorosos deram peito,

avançando destemidos,

tementes do desconhecido,

do fogo de Santelmo, do escorbuto,

do negro mar e estranhos céus,

por isso se inventaram astrolábios, cartas, nónios,

fixaram-se bússolas, clepsidras, ampulhetas,

cuidou-se do cordame, do pez,

do velame, da carne na salga,

mas foi o limão que milagres fez,

correu-se o mundo de alto a baixo,

sulcaram-se os mares de seca a meca,

dividiu-se, repartiu-se e,

parvo é quem parte e reparte não ficando c’a melhor parte.

 

XVI – TORDESILHAS

 

Era uma vez um faz que parte e reparte…

repartiu-se o mundo e a avidez, a cobiça,

todos podem descer das nuvens e caminhar sem medo.

 

Mas por que tínhamos medo ?

De que tínhamos medo ?

Por que até de sonhar tivemos medo ?

Quem nos diz ?

Quem nos mostra o cadáver dos escolásticos ?

Nós sim,

somos os donos de um saber feito.

 

Feito quando mares e céus infinitos nos pareciam,

inalcançáveis, intangíveis,

e tudo se nos afigurava impossível,

e acreditávamos que tempestades desabassem sobre nós,

e a solidão nos envolvesse e retirasse a esperança de dias felizes,

e o mundo, esse mesmo mundo que nos alimentou sonhos,

que nos enchia de ilusões e verdades,

também nos lacerou e angustiou,

por haver uma hora em que nos guardámos para as emoções,

e também outras em que todos estivemos,

algumas vezes por um triz, temendo a hora,

em que o dia não havia de, como era uso, nascer e correr ditoso.

 

Mas,

há sempre um mas…

 

XVII – O PERCALÇO FILIPINO

 

Uma vez mais as terras transtaganas voltam a brilhar,

Braganças e Vila Viçosa voltam a florir,

e em Évora um Manuelinho nos devolve a esperança e o sorrir,

no largo das alterações nos idos de 1637.

 

Era uma vez um jugo pesado,

pesado e louco sobre Portugal,

herança sebastiânica dum bravo imaturo,

jugo que a acalorada Évora sacudiu dos ombros,

tentou aliviar,

sacudir,

escorraçar,

houve altercações,

alterações,

prisões…

o Manuelinho arrastara multidões,

fizera ouvir a sua voz,

era hora ! era a hora !

 

Era hora d’os espanhóis s’irem embora !

porém,

Deus tal não queria ainda,

e não sendo daquela d’outra vez seria,

até que o entusiasmo alentejano transbordou,

arrastando consigo outros lusitanos,

e,

não tendo sido naquele dia,

não tardou,

foi decorridos três anos,

num primeiro de Dezembro,

um foi metido a andar,

chutado o Andeiro…

outro atirado p’la janela,

o Vasconcelos,

um terceiro deposto e recambiado p’ra Castela,

Portugal era de si,

de novo,

todo um manto negro cobrira o país,

desta vez fora um manto negro, Filipino,

depois da peste negra a peste dos Filipes,

o manto da sujeição, da submissão, do jugo,

uma autêntica prisão,

pois sabei ter sido na Évora esquecida que,

uma voz num peito soou tremida,

até deixar libertar um grito, destemida,

até o Manoelinho gritar bem alto.

Era uma vez um Portugal refém,

fora refém, prisioneiro,

fora Évora quem lançara lancinante o grito pioneiro,

grito derradeiro,

é hora !!

disse o Manoelinho,

é hora ! e ecoou pelo país,

foi hora, soou a hora, e foi como se,

se se abrisse uma janela, e por ela,

se atirasse um, dois, três, quatro,

começando p’lo Miguel, acabando no Vasconcelos,

e foi mesmo.

 

Foi uma vez o Manoelinho,

mas quem era esse maltês ?

cada vez mais amigas e amigos se interrogam sobre mim,

muitas mais vezes me dizem ser tempo de ganhar algum juízo,

outros,

com menos confiança ou que nem tão bem me conheçam,

chamam-me, na melhor das hipóteses e de quando em vez,

tresloucado, ou saudosista,

 nas piores louco.

 

 

Talvez por não suportarem a minha extroversão…

ou isso ou as saudades por D. Sebastião,

não que seja pretensioso, pois não sou,

talvez por teimar traçar minhas vontades,

chovendo, fazendo sol, noite ou dia,

cara ao vento, sempre tão alegre quão S. Bento,

absorvendo os raios que sobre mim incidem,

metamorfoseando-os em energia e vida,

como as flores, com a energia renovada,

assim sou eu, Manoel, Manoelinho,

nem louco nem tontinho,

ser feliz é tudo para mim,

pois descobri tarde que a vida é curta,

e não me merecem crédito os convencionais,

os suspeitos de que estamos rodeados,

nem d’eles beneficiei vez alguma vez por pouco que tenha sido.

 

Não busco prebendas, favores ou privilégios,

todavia não me sarrazinem,

 deixai-me viver como quero, sem peias ou imposições,

menos ainda inquirições, ou inquisições,

esta sociedade precisa mudança urgente e cuidada,

é moralista e puritana, tão falsa quanto pérola de pechisbeque,

sempre tentando balizar-me e conter todos dentro dos limites,

limites por ela impostos,

mas do reino e seus termos não cuida,

com o tempo perceberemos não se adequarem essas peias,

nem ao meu nem ao nosso carácter,

ao nosso modo de vida, já que Castela tem outras modas,

e o que desejamos é a vida que em nós vive,

resultante duma alegria digna de ser vivida e recordada vívida.

 

Claro está que acuse tiques saudosistas pois se os tenho,

apenas contesto imposições dum gosto deslavado,

porque venho sendo subjugado ao longo de anos,

e me obrigo e teimo marchar contra a corrente,

jamais esquecendo a única certeza da vida,

o fim dela mesma, o que não me assusta,

mas concita a valorar os minutos que me restam,

porque teimais vós não marchar contra a corrente,

não  sentis que seja a modorra uma loucura ?

 

Aprazai-vos a  obsessão pela ordem vivida,

o desvio a padrões de vida nossos ?

Amais tudo que  vos seja colocado frente à manjedoura ?

 

Comeis daí há demasiados anos e, que tendes aprendido ?

Entendo que enquanto cada um de nós se não libertar,

dos favores e do pensamento alheio e pensar por si,

não ides lá,

não chegais a lado nenhum,

não sereis nunca vós mesmos.

 

O que conta é o vivido, ouvi-me,

e jamais permitas a vida parada, ou comandada,

nem deixemos meia vida por viver,

nem vivamos a vida por delegação,

isso é lá viver, isso é viver a vida dos outros e,

infelizmente muita gente há sem vida própria,

mas vivendo-a por imitação, por delegação.

 

Vivamos cada um de nós a nossa vida,

e não uma vida alheia por procuração,

derrubemos Castela,

torneemos prantos ameaçadores e dores escondidas,

esqueçamos o medo, sonhemos !

Ao menos isso !

gritemos os Braganças ao poder  !

 

Alguém teceu a teia que nos trama,

tortuosa linha que no passado nos traçaram à frente,

Mas viver não pode ser este silêncio que ouvides,

ou uma canseira, isto é viver em ilusão,

meditemos, punhamos a funcionar imaginação e magia !

é hora ! está na hora ! sacudi o jugo !

 

Sorri minha gente, sorri muito,

não guardeis segredos nem encantos,

nem fecheis na palma da mão o pensamento como um tesouro,

ha que repartir este grito.

 

É hora !

Não acrediteis quanto é bom de vós gostarem,

só fareis do pranto canto quando alguém de quem gostardes grite convosco.

 

XVIII – O MANOELINHO DE ÉVORA

 

Chamam-me de vez em quando ou saudoso ou louco,

e eu, contente, vos digo que o digais quantas vezes vos aprouver !

Aí, entre vós encontro a certeza de pisar os meus caminhos,

traçar os meus percursos,

e a convicção de que o futuro é nosso,

e poderemos então cantar a vida por nós traçada.

O destino, o futuro,

esta minha vida de louco saudoso,

mais não é que um constante quebrar de tratados,

um lançar permanente de gritos de é hora !

um escancarar à vida todas as portas e janelas,

um convite a que entrais, que ficais, que vivais !

 

Traçai para vós propósitos e intenções,

enfrentai o que tendes fingido não perceber e o que não entendais,

não temais,

elevar-vos-eis onde nem imaginais !

 

Agigantar-vos-eis !

 

E a vossa vida, saudosa e louca, então despertará brilhando,   

jamais será tão apagada quanto o é a vida de um tambor,

manter-vos-eis em permanente alvoroço,

de coração agitado mas liberto de enigmas, grilhetas e sofismas.

Podereis então erguer-vos,

e exuberantes acreditar em mitos antigos ou modernos,

rir da ironia, e,

com zombaria,

olhar de frente para os vossos detractores,

reconquistar Portugal e entrar de novo no paraíso,

aí me vereis como sempre, Manoelinho,

nem tolinho nem louco,

desperto, exuberante, esfusiante, saudoso, triunfante,

talvez exausto mas liberto,

para vos dar a mão e conduzir ao céu !

lutemos !

 

XIX – LUTAS PELA INDEPENDÊNCIA NACIONAL

 

Era uma vez a hora, chegada que foi a hora,

que durante anos mobilizou exércitos,

padeiros e padeiras do Montijo,

de Aljubarrota outra vez,

das linhas de Elvas e do Ameixial onde,

levaram os espanhóis uma ameixoada, mas,

onde tudo ficaria finalmente claro foi em Montes Claros,

e assim voltámos de novo a rei nosso a quem ninguém empossou,

antes o povo aclamou, um rei nosso p’la graça de Deus.

Mas enquanto os exércitos avançavam para o confronto,

no  lugar de Montijo,  arrabaldes de Badajoz,

num deles, no nosso,

Bento Fogaça comandava uma das hostes,

hostes de fossados, hostes de vassalos,

o seu senhor confiava nele e havia algum tempo que,

na falta de um rei verdadeiro o armara ele mesmo cavaleiro,

garantira-lhe um bom lucro, uma boa parte nos despojos e pilhagens,

autorizara-o mesmo a beneficiar do resgate de prisioneiros,

ele e os seus seriam uma espécie tardia de vilãos e mercenários,

mas o soldo fazia-o sorrir, sorrir para si mesmo e sobretudo para ela,

ela, Madalena Perestrelo, viúva de um dos seus soldados, e roliça,

dar-lhe-ia bons filhos ainda pois seria nova a moçoila,

reza a história,

havia algum tempo que Bento não tirava os olhos dela,

que não fugia,

que não escondia os seus, seus dela, verdes como os campos,

a morte do bom Pêro de Sintra, extremoso companheiro, 

deixara-a desprotegida e Bento Fogaça,

paternalista,

olhando por ela, amava-a quando podia,

e quanto podia,

amavam-se fosse noite fosse dia,

mirava-a e media-a, fazendo planos,

sonhando-se e imaginando-se em seus braços,

sucumbindo às saudades e desejos de qualquer mortal,

e,

agora que ela tornou à terra natal,

deixando-o furibundo,

ficara-se meditabundo…

sentindo o aguilhão da saudade…

 

Tenho saudades de ti Madalena Perestrelo,

nem sei como não ter,

se tão gratos têm sido os momentos contigo repartidos,

saudades desses inolvidáveis momentos,

dos nossos momentos...

 dos bons e dos maus,

se bem que nenhum dos maus agora lembre.

 

Tenho saudades,

saudades das conversas de leito e sem leito,

das conversas com pés e sem pés nem cabeça,

conversas que abarcam todo este  mundo

em que vogamos,  grande,

 tão grande quanto as saudades que agora teço e não esqueço.

 

Saudades de discussões acesas num quarto apagado,

saudades do teu sorriso tantas vezes tacteado,

do teu sorriso se calhava falares em algo cómico,

saudades da tua cara de ódio que nunca vi nem pressenti,

saudades de quando querendo ou sem querer te irritavas,

saudades daquele amor intenso,

daquele odor suspenso,

daquelas manhãs dilatadas,

por vezes em tardes,

outras por noites e madrugadas,

saudades dos lençóis lavados e quentes,

do teu corpo escorregadio, fugidio,

sempre presente e entregue em volúpia e dádiva,

que suguei e amei e jamais cansei de tomar e agradecer,

saudades dos teus medos,

do modo peculiar com que cuidavas deles.

 Saudades do modo carinhoso e doce com que te preocupas comigo,

saudades do nosso primeiro encontro,

do primeiro beijo,

 e do último também,

saudades de quando surgindo do nada me fazias sorrir,

por  estares ali,

saudades das tuas mãos nas minhas,

da minha boca na tua,

saudades dos planos que fizemos,

sabendo quão difícil seria fazê-los,

por impossíveis,  loucos, parvos, transcendentes,

saudades das músicas que ouvimos e dançámos,

e só conseguem atiçar-me mais saudades que alguma vez tive,

que saudades de nós lado a lado na alcova,

sonhando,

não vivendo, mas sonhando,

o que, dadas as circunstâncias, já nem era mau,

e agora o sofrimento das horas sem ti,

o esfumar da tua imagem se a não alimento,

o esbater das recordações vívidas que de ti guardei,

me esforço por manter intactas e das quais vivo,

acumulo,

acarinho e odeio as saudades de tudo o que vivemos ,

e do que não conseguimos viver,

entesouro saudades do modo como me amavas,

como te amava e fazia sentir a mulher mais amada do mundo.

 

Empilho saudades da nossa dependência mútua,

da nossa forma de esquecer o mundo quando juntos,

amplio as saudades de ser teu, só teu, e tu só minha,

de saber ou lembrar o que fazíamos e quando,

cumulo de recordações e saudades a nossa história,

a mais estranha que alguém já viveu,

armazeno para memória futura saudades desses encontros,

e desencontros,

às quais acrescento as saudades de estar contigo,

simplesmente por estar, ou precisamente por estar,

tenho doridas saudades da tua amizade,

do teu sorriso, da tua força, do teu amor,

saudades da tua voz, do teu carinho,

da tua paixão e do teu desejo,

 das tuas loucuras,

da tua inteligência, do teu talento.

 

Saudades de ti quando comigo.

Saudades de mim quando contigo.

Saudades que imagino verdadeiras…

Ou que verdadeiramente imagino,

que interessa,

serão sempre saudades…

 

E mais uma vez aprestaram-se os exércitos,

convocaram-se as gentes,

senhores e servos, a hora era de luta,

contra os castelhanos marchar marchar,

mas também contra os nossos teimar,

nossos nobres e burgueses,

acomodados a Castela,

acomodados ao novo império,

um mundo enorme à sua espera,

um mundo de negócios,

e de ócios,

um mundo de oportunidades,

novidades e cidades.

 

Logrou o povo vencer barreiras,

derribá-las,

de novo fazendo valer antigas fronteiras, e,

entalados entre Castela e o Atlântico virámo-nos para o mar,

uma vez mais, mais uma vez,

na esteira de Castela e da prata,

do ouro,

de prometidas riquezas sem fim,

no Novo Mundo era assim,

dizia-se…


XX – O ALENTEJO É UM MUNDO

 

E o Alentejo, este mar de gente,

ficaria séculos esquecido, adormecido,

quase transformado em coito de bandidos,

de malteses e outras más reses,

lavradores sem escrúpulos, agrários avaros,

cadinho de burgueses e de subversivos operários,

Alentejo rude tornando rudes os homens,

as doutrinas, as atitudes, as esperanças e as sinas.

 

Era uma vez um rei de Portugal e dos Algarves,

d’aquém e d’além-mar,

d’África,

senhor da Guiné e da conquista navegação e comércio

 da Etiópia, Arábia, Pérsia e India,

fora percorrido largo e longo caminho,

desde sua mercê ao sua alteza real, ao vossa majestade,

sua majestade fidelíssima e por aí adiante,

que o caminho faz-se caminhando e é em frente,

tal qual diria a infanta Paula Duarte,

andando,

em frente que atrás vem gente.

 

Eram uma vez, p’lo Além Tejo adentro,

ordens ordenadas e servos ordeiros,

seguindo os Templários, depois aos de Cristo,

eram muitos malteses, aquilo só visto,

lutou-se p’la fé, p’la cruz, por Jesus e prebendas,

e na hora das oferendas, os maiores na frente,

atrás os bons servos,

aos da frente planícies inteiras foram ofertadas,

para os de trás bonitas palavras foram proferidas,

e naturalmente, dadas,

e as terras transtaganas que já eram imensas,

imensas ficaram dado as poucas pertenças,

ou pouquíssimas mãos a que as entregaram.

 

Cresceram como vírus, latifúndio e latifundiário,

um conjunto instável, diria incendiário,

entronou alguns, trilhou muitos mais,

mas a todos submeteu à vontade dos demais,

à vontade divina de uma minoria,

sabemos hoje quanto tal aristocracia nos escravizou,

erros cometidos, erros herdados,

erros mantidos e até abençoados,

abençoados, ungidos,

o homem põe e Deus dispõe.

Deus fazia falta p’ra justificar o disposto,

o abençoado assim generalizado,

afinal em Seu nome se lutou té quebrar,

e quem estava na frente aproveitou p’ra na frente ficar,

veio Deus absoluto e foi só reiterar.

 

Manda quem pode, assim Ele ordenou,

obedece quem por baixo na escala ficou,

toda a vida houve e toda a vida haverá,

ungidos, sobrinhos, boys e afilhados,

a sorte não é p’ra todos e nem p’ra mendigos,

e quem nunca a terá muitos haverá,

a aristocracia é isso, tem raízes no tempo,

no tempo das galés, no tempo das elites,

no tempo das vanguardas,

no tempo dos comités,

no tempo das democracias inté.

Atrás do tempo seguem os servos,

os da gleba e outros servos,

metecos, pés descalços, sans culottes,

a democracia é vilã e somente para quem se inscreva,

p’ra quem caiba na designação cidadã.

 

 

Era uma vez um alentejano maltês,

que durante séculos vagueou implorando,

pedindo, rogando, dobrando a cerviz,

cumprindo e calando, alimentando o ódio,

contra a mesma mão que o comer lhe dá,

e onde um dia, no futuro, c’a bênção de Deus morderá.

 

Alentejanos sérios se fizeram malteses, bandidos,

servos da fome e do destino, conforme a sua sina,

sina escorregadia, destino estreito não cabendo no peito,

servos da terra,

servos de um senhor,

ou d’uma vinha…

claro que podia ser diferente,

por exemplo, eu armar-me em gente,

talvez num alentejano valente,

como o Henrique Raposo,

ou o Raposo Tavares,

de seu nome António Raposo Tavares,

nascido na aldeia do Pinheiro,

temperado em Mértola,

mas quem era essa abécula

que de abécula nada teve ?

vou contar-vos.

Era uma vez mais um alentejano maltês,

uma vez um maltês, nascido na aldeia do Pinheiro,

no termo de Mértola, idos de  1598,

nem vinte anos teria,  para o Brasil partiria,

tendo sido ilustre e desconhecido bandeirante,

mas a partir de 1618 também bárbaro assassino,

sim um dos maiores bárbaros por ali vistos,

no aprisionamento e escravização de indígenas,

índios, negros, mestiços e

todos quantos rebelados foram assassinados,

os restantes submetidos pela força,

todos expulsos das suas terras,

escravizados de modo desumano e bárbaro.

Tavares era descendente de Judeus e Cristãos novos,

e a par da besta há a registar o facto de ter sido herói,

contradição nunca contradita,

antes confirmada e expandida,

tem estátua na terra, placa e louvor,

Tavares sofreu  sofrimentos impensáveis,

inimagináveis,

 enquanto bandeirante

e na dilatação das terras p’ra Portugal,

no tornear de Tordesilhas,

nas travessias de milhares de léguas,

palmilhadas durante anos e anos,

as ultimas das quais estendidas por  2400 delas,

qualquer coisa como doze mil quilómetros,

(per)corridos em quase quatro anos e

cuja expedição voltou com um quarto dos homens que haviam partido.

Sim, as coisas não correram bem dessa vez…

tem destas coisas a nossa história trágico-marítima,

mas com um punhado de homens assim

a nossa história teria sido outra,

sim falo daqui, falo de nós,

falo do Alentejo,

e naturalmente do país,

onde a história se repete agora em modo cómico,

duvidando eu que não se repetia como farsa trágica… 

 

XXI - OS TEMPOS  CONTURBADOS DA 1º REPUBLICA

 

Era uma vez a Primeira República ,

Portuguesa claro,

dama também referida como República Parlamentar,

ou para lamentar,

cujo nome paternal dava simplesmente  por República Portuguesa,

sistema político na senda da marselhesa,

no pós Monarquia,

nada e nascida a de 5 de Outubro de 1910,

e que até ao golpe de 28 de maio de 1926 pulou e dançou,

e tanto dançou que uma ditadura originou,

era militar, mas era ditadura de seu nome real,

e mais tarde,

a senhora Ditadura Nacional,

e posteriormente madame Estado Novo.

 

Era uma vez um  período de festas,

e foi, um tempo em que se brincou bastante,

tal qual agora, mui edificante,

festejavam os Governos e a Igreja católica,

brincavam  republicanos, maçons e carbonários,

foram 16 anos de brinca e festejos em que,

grosso modo nasceram e morreram sete parlamentos,

oito presidentes da República,

quarenta e cinco governos,

quarenta chefias de governo,

um presidente de Governo Provisório,

trinta e oito presidentes de Ministério,

 duas presidências Ministeriais sem tempo para tomar posse,

dois presidentes de Ministério interinos,

uma junta constitucional,

uma junta revolucionária,

inté um ministério investido na totalidade do poder executivo.

 

XXII – CAOS, TEMPESTADE, BONANÇA

 

Era uma vez o caos instituído,

época pródiga em brincas, festejos e convulsões sociais ,

crimes públicos e políticos e outros que tais,

até a ditadura refrear os arraiais,

o Estado Novo meteu o cabresto ao país,   

instituiu novos ícones a idolatrar,

pátria, família, Deus,

a ordem era arbitrária mas autoritária,

p’ra aliviar deu ao mesmo povo fado, futebol e Fátima,

e exortou ao espírito de corpo,

todos unidos como um molho de lenha,

exemplo perfeito dum facho inquebrável,   

quem o fez soube chamar a si a coesão do país,

nunca os portugueses haviam conhecido tal solidariedade,

tal coesão em torno da questão, 

e a questão era o desagrado,

a aversão e a oposição ao pai desta pátria,

que chamou a si todos os ódios e todas as raivas,

que nos uniu como nunca se vira e nunca mais viu,

numa repulsa geral mal orquestrada mas bem animada,

morreu crente do seu milagre o pai desta pátria,

não o chorou Baleizão nem a ingrata mátria.

Era uma vez esse sabido ditador,

de quem se diz ter parido velho mito ancorado em Baco,

que o vinho daria de comer a um milhão de portugueses,

é verídico este mito,

embora conveniente e totalmente deturpado,

nascera  nele oposição à instalação de novas fábricas,

da SevenUp e Coca Cola, imperialistas e que,

acabariam com as nacionais existentes e bem quistas,

de gasosas e sumos naturais,

e principalmente com as adegas cooperativas,

de vinhos alentejanos, pra mim os principais,

adegas surgindo no Alentejo e por todo o país,

julgou-se à época mui acertadamente

que este povo preferiria beber Coca Cola,

mesmo sabendo ir provocar desemprego,

o desemprego de milhares de compatriotas,

como hoje sucede ao consumirmos os vinhos de Bordéus,

os fromages de,  de França, Itália e sabe Deus donde,

por motivos de logística militar tivemos que ceder

autorizar a venda dessas bebidas americanadas,

inda que somente nas colónias ultramarinas,

como podemos constatar mantivemos as adegas,

 e as fábricas de sumos e gasosas , tudo em laboração,

garantindo vencimentos a um milhão de portugueses... 

Hoje ingloriamente vendidas ao desbarato por um tostão.

 

Não olvidar um momento que seja,

que na sequência da 1ª GG sofremos percalço após percalço,

e durante anos enfrentámos um mundo em turbilhão,

turbilhão que culminou na eclosão da II GG,

cujas ondas e cujo pó não pararam ou assentaram no pós guerra,

anos e  anos de carrossel ou montanha russa deste mundo,

milagre que nele tenhamos conseguido apesar de tudo,

fazer alguma coisa positiva,

e sendo tudo relativo nesta vida,

 teremos que partir do ponto zero,

só comparando com zero e num tempo de vacas magras

veremos o quanto se fez , o quanto nos esforçámos,

desde que a primeira e desastrosa república dominámos,

contudo, todavia, muito fizemos,

muito se fez, porém agora,

em quarenta anos de paz e abundância na Europa,

que conseguimos ?

para além de nos atirarmos para o fundo de um buraco ?

não creio os próximos quarenta anos, anos de paz,

nem de paz, nem de abundância no mundo,

mas sim de individualismo, fecho sobre nós mesmos,

terrorismo, fascismo... 

a história ri-se, a história repete -se,

quando não como farsa, como tragédia,

há que mudar de vida, modos de agir,

estruturas mentais,

policiais, cívicas, jurídicas, comportamentais,

evitar outros ditadores..... 

ou novo ditabrando como o que estivemos lembrando... 

 

Era uma vez um ditabrando muito duro…

à mínima qualquer um era mimado, acariciado,

e aqueles dois sevandijas ?

teriam sido realmente sovados no posto de Grândola ?

o regime era avesso a papelada,

a relatórios e processos,

era conhecida a sua aversão a entupir os tribunais

por dá cá aquela palha,

os pequenos delitos eram julgados na hora,

não ainda na Boa Hora,

reservada para as mais importantes causas,

pequenos delitos eram apreciados julgados em três tempos,

a condenação exarada e aplicada em quatro,

poupando despesas ao erário público,

e maçadas aos senhores doutores, e na hora,

que não a Boa Hora,

dependendo o castigo da dimensão da falta,

 eram aplicados uns chapadões, umas orelhadas,

uns pontapés, uns murros, uns encontrões,

c’um cinturão ou uma chibata,

ou um tubo de borracha,

o preferido por não deixar mossas,

e a questão resolvida entre quatro paredes,

dependendo de elementos altamente objectivos,

e verificáveis a olho nu,

tais como a reacção do acusado,

neste caso já réu,

 pois estando-lhe sendo aplicada a pena seria réu,

e o castigo a aplicar objectivamente dependente de factores diversos,

tais como assumir ou não a culpa,

a admissão ou não de cúmplices e cumplicidades,

da natureza do crime e da sua exposição,

da qualidade da vitima,

homem, mulher,

operário, patrão,

estado, nação,

enfim,

panóplia de causas e alíneas inda que não regulamentadas

mas dignificando a sua constância regular e tradicional,

oral,

disseminadas e transportadas de geração em geração,

numa anormal eficiência que hoje nos envergonharia,

hoje  incapazes de atingir tal grau de perfeição,

mau grado a técnica nos ter prendado com todos os equipamentos e mais um,

o que mais impressionará negativamente,

sobretudo tendo em conta que,

 por aqueles tempos até o stencil era coisa rara,

e os poucos apreendidos

em oficinas gráficas dadas à subversão de mentes e das ideias,

completamente destruídos,

nem ao serviço da nação sendo colocados.

 

Porém a revolução, a abrilada,

foi enxurrada em cujas águas muita coisa foi arrastada,

muita sujeira lavada e,

como todas as revoluções também esta exigiu os seus mártires,

 e os seus heróis,

na tormenta das águas agitadas que por esses dias reinavam

tal qual o dilúvio de que só Noé escapou,

tentaram manter-se ao cimo das ondas,

tentaram sobreviver muitos daqueles a quem o grosso caudal arrastara,

entre eles  fura-vidas,  gatos-pingados sem eira nem beira,

 agarrando-se ao que podiam,

tudo lhes servindo de tábua de salvação,

sem saberem donde viria ela,

para alguns veio de carrinho,

para outros de carrão,

embora  não saibamos a quem os carro de ocasião eram comprados,

eram carros de ocasião, sem garantia,

eram carros em segunda  mão,

sabemos contudo e sem sombra de dúvida a quem um deles foi vendido,

a um acusado de constrangimentos psicológicos e de outras índoles,

haverão de separar-se muito bem as águas já que,

sendo um Algarvio, terra de praias e mar, de água,

de Boliqueime o pantomineiro,

aos de Baleizão e de Barrancos irritou,

p’lo que comungaram da mesma  rivalidade,

beberam do mesmo  antagonismo,

alimentaram  antipatias velhas entre a malta de águas fartas

e a de sequeiro, que  havia de ser pano de fundo,

pano de cenário,

tela de cavalete,

onde desde há décadas vem sendo pintada paisagem

das duras tintas pintalgando de vermelho o Alentejo.

 

Era uma  vez o Portugal democrático  e mudo…

onde se voltou a não falar e a temer,

curioso como em Portugal as pessoas não falam,

não entre si, não  umas com as outras,

nem isoladamente nem em grupo,

comprovou-se  porém nunca terem deixado de o fazer,

todavia em grupinhos,

em panelinhas,

secretamente,

nas costas,

pelas costas,

o que podendo parecer a mesma coisa

está muito longe de o ser,

nem as pessoas falam nem os jornais,

nem nacionais nem regionais,

nem tão pouco as locais rádios

espalhadas pelo território como praga,

as televisões nem pensar,

todos estes órgãos de comunicação

pura e simplesmente não comunicam,

ou por outra,

só comunicam vacuidades,

banalidades,

não abordando o importante a abordar,

ou raramente o fazendo,

tudo o que sejam necessidades ou problemas

 passa para segundo plano,

é um país de maravilhas,

onde só tontarias são debitadas,

tontarias,

apologias deste ou daquele,

factos soltos,

curiosidades,

 mexericos,

mesquinhices,

a verdade  incomoda e,

no fundo ignora-se o essencial ,

para em contrapartida fomentar-se o acessório,

a futilidade,

a ignorância,

o alheamento,

a irresponsabilidade,

isto não poderá acabar bem,

pensei de mim para mim,

puxei os cobertores e tentei dormir,

era tarde e amanhã queria meter-me cedo ao caminho.

 

XXIII - O 25 DE ABRIL ENCALHOU??

 

Depois um dia…. era uma vez um bando…

 

Sempre as aves de arribação me toldaram os sentidos,

coloridas, graciosas, chegadas na Primavera,

e, ou por isso, talvez por causa disso,

ou apesar disso,

a uma dei guarida e pouso,

e baptizei de Esperança,

após surpreendido a ter encontrado no beiral da vida,

enquanto outras ensaiavam voos felizes,

desenhando circunvoluções sobre os estragos em terra,

evitando este dúbio castelo que nunca visitaram,

cansadas ?

perdidas as esperanças ?

certamente o não saberei nunca,

imagino-as tão tresmalhadas ou fatigadas quanto eu,

somente quisemos ser amigos, e fomos,

somos, sempre seremos,

porém, tirem-lhes a liberdade e matá-las-ão,

sei-o, são aves de arribação, aves livres, compreendo, e aceito.

 

 

Gaiola não é para aves,

e domesticá-las só para alguns eleitos,

não sou falcoeiro,

muito menos homem resignado,

dediquei contudo muito do meu tempo à liberdade,

liberdade é amor .

Nada me regozija mais que passar os dedos p'las suas penas coloridas,

suaves,  era linda a Esperança,

deixava que debicasses os meus lábios,

que fixasses em mim esses teus olhos,

confusos, intrigados, profundos, ternos e meigos,

eras a Esperança, a liberdade,

mas foste-te com os teus,

sê feliz.

 

Já deixaste na minh'alma recordação imorredoira,

um coração grato de amor,

uns olhos fixando os céus e procurando

em cada ave voando,

distinguir tuas formas e cores,

porque uma andorinha pode sozinha fazer a Primavera.

 

 

 

E no canto da janela dos meus olhos encontrarás,

como sempre,  se voltares ao Alentejo,

alimento e água, um lugar p'ra repousar,

um dedo acariciando-te as penas,

uns olhos nos teus olhos,

um coração batendo em sintonia…

Desta vez amiga Esperança, não sei,

tu vais-te, eu fico meditando,

e não distingo entre lamento e despedida...

 

Sim Esperança, o 25 de Abril foi-se contigo,

sinto-me tolo quando nisto penso,

sem que saiba que se passa, pois algo houve, ou quê,

ou como e quando que não entendi e me pergunto,

que se passa, ou passou,

quem foi,

quem travou em Abril a harmonia desta bola de neve

rolando na história e no firmamento,

e repentinamente parada,

sem que eu saiba ou alcance o porquê.

 

Deixando-nos, deixando-me perdido,

porque aquele dia de Abril começara radiante,

como se nas margens de um rio a beleza das cores,

e a frescura e fragrância dos dias felizes

igualasse a cadência deste coração cansado e enorme,

a memória de outras cadências,

de outros dias felizes,

deste mesmo ou doutros rios,

as mesmas cores dos cravos, vermelho e verde,

não esfumadas mas intensas, fulgurantes,

repetição dum inexorável ritual de celebração da vida,

qual hino à existência,

sublimação da vida que há em mim,

e me redime do pior que haja em meu intimo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

XXIV - O 25 DE ABRIL FOI UM SONHO

 

Era uma vez em que estando na luz,

começara esse dia como começam os sonhos,

 divisando vagamente um vulto fugidio a que senti o perfume,

e a quem, na harmonia de um gesto delicado,

tento segurar a serena e pressentida presença de que,

primeiro apenas o sombreado,

mas depois o perfil de um desejo com forma de sonho,

cores claras, um ramo de cravos vermelhos,

o mundo repentinamente todo luz,

eu, sombra saindo da escuridão,

o corpo tolhido,

antecipando delírios e paixões,

o olhar renascendo nos meus sentidos,

os mesmos rodopios e devaneios,

o mesmo degelo da alma,

o corpo bamboleando-se-me,

a volúpia das palavras primeiro,

o aroma das flores depois e,

quando nem em mim cria,

 já não sonho, deliro,

embriagado com tanta liberdade

que repentinamente te abraço,

repentinamente te beijo,

saboreio nos teus lábios champanhe,

agora o delírio e a volúpia sim, mas dos sentidos,

lascivos, ébrios, sedentos de boémia,

e é noite,

mergulho na sombra do astro,

e já nem sei se arlequim se querubim,

ou serafim, sinto apenas que,

o teu corpo parecendo mexer-se,

nem sei se estes cabelos são meus se teus,

afago-me, afago-te a pele morena,

a silhueta,

depois as tuas curvas e o pecado que tramo,

e este sonho em escalada contínua,

estas sombras que me cobrem,

promessas figuradas tingindo meus olhos, e,

perante mim, qual milagre,

vagamente tomando forma uma mulher amada,

de imediato  tornando-se carência,

 imagem debruada a luz mergulhando no esplendor da minha alma,

chamei-te Liberdade.

 

Parece que em ti tropecei,

mas não,

não mais a melancolia, a solidão,

agora sei não querer habituar-me à tua ausência,

tudo que sou também és,

tudo que és também sou,

agora sei, o mundo somos tu e eu,

e os demais,

e nunca mais orgulhosamente só,

 palpitas em mim,

nem consigo dormir,

pois este sonho me leva a perder-me de mim,

perseguindo-me como silício vivo e eu,

 incapaz de fugir ao meu fado,

de alma sobressaltada e fogo alimentando os sentidos,

com este lume em meu peito,

imagino-te pulando, saltando,

 e cantarolando Liberdade,

tu comigo, de braço dado,

imagino carícias ingénuas,

o coração batendo descompassado  e eu,

fremente de desejo,

com destino e com rota,

já não perdido neste imenso Alentejo,

fugindo ao presente, ansiando o futuro,

os sentidos girando, a abóbada celeste num carrossel

 

girando, girando, e eu morreria se não te contasse este anseio,

corações mais não são que cinzas e paixões,

agora vejo claramente na penumbra desses dias com luz,

flâmulas e pendões multicores,

um mar de gente outro de rosas,

e esta alegria imensa de todo o meu bem querer-te porque,

agora a ponte que nos une não é já ausência e,

invento desejos, embriago-me com bacantes,

acumulando coragem para conquistar o teu corpo,

cobrir-te de abraços, de beijos, saciar estes olhos,

vaga-lumes tilintando numa festa nascida dum sonho,

inquietude dando largas à loucura,

gritando-me ter o nada que acabar-se e,

meu sangue, latino pulsando nas veias,

dizendo-me não haver regras nem limites,

só a verdade toda a verdade,

também  a minha, homem sincero,

perguntando-me quando posso gritar tudo isto ?

Onde posso sorrir sem parecer louco ?

Onde gritar a verdade e rir de tudo e de todos ?

Onde e quando  nós ?

Pois agora sei que neste Alentejo renascido,

o mundo somos tu e eu,

 e os demais  !

Embriaguei-me,

vivi quarenta anos ébrio,

cego,

acomodado,

desiludido,

traído,

evitando passar nas ruas que calcorreias,

por temer-me e à reacção que poderia ter,

e nem sei qual, se correr para ti e abraçar-te, olhar-te,

se ficar-me quedado estático,

fala perdida, mudo,

incapaz de mexer-me,

como se num sonho mau acometido por um touro,

e as pernas recusando mexer-se,

e eu assustado, temente,

acordando no momento do impacto,

em sobressalto,

e paralisia nenhuma,

e touro nenhum,

apenas eu e o meu medo,

de enfrentar, o touro, a ti, a mim,

por não saber que fazer,

como emendar o meu erro,

como voltar atrás no tempo,

emendar a mão,

arrepender-me ante ti das nossas faltas,

não te culpo,

também as tuas assumo,

não o seriam se não eu no teu caminho,

quero ver-te sorrir de novo,

esse sorriso rasgado e contagiante,

o cabelo ondulando ao vento,

os olhos como contas de vidro,

novamente vivos,

vivaços,

para que eu finalmente redimido possa dormir,

descansar deste esgotamento que me consome,

e novamente os dias alegres me encantem,

é tão difícil contentar a liberdade...

 

Sinto-me tolo quando nisto penso,

sem que saiba que se passa, pois algo houve, ou quê,

ou como e quando que não entendi e me pergunto,

que se passa,

quem foi,

quem travou em Abril a harmonia desta bola de neve

rolando na história, no firmamento , porém,

repentinamente abafada essa verdade,

sem que eu saiba ou alcance o porquê.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

XXV - ERA UMA VEZ UM MUNDO MUDO… 

 

Era uma vez um mundo mudo….

Andando o mundo em bolandas,

e o Alentejo em bonança,

a planície numa quietude perdida,

mas latente, subversiva,

forjada a dor e a fogo,

e a dolo e secretismo,

até que chegou Abril,

esse dia de Abril,

dia em que contra meu hábito,

mal dormira nessa noite,

talvez por pesadelos e sombras pressagiarem

o que eu não entenderia nos dias,

semanas, meses e anos seguintes.

 

Recordo ter acordado mui cedo nesse dia fantástico,

não tanto devido às insónias sonhadas,

antes devido ao alarde desde madrugada  sentido na quintarola.

 

Por artes mágicas tudo naquela manhã se conjugara

para que jamais a esquecesse,

se bem que naquela minha modesta idade,

não me fosse permitido ainda entender os prodígios,

as coisas a que assistia e impossíveis de,

em minha mente,

serem de imediato transformadas,

em augúrios felizes de dias vindouros.

 

Nessa manhã de sol a quinta ficara entregue à bicharada,

 e eu, sozinho,

reinando ignorado no meio dela,

galos haviam abandonado o galinheiro,

escavando com unhas poderosas os locais mais inconcebíveis da quinta,

modelarmente arrumada e engalanada por canteiros de diversas espécies,

onde o sol avivava a clorofila,

onde rebentos de variadíssimas flores

matizavam de cores diversas esse espaço a perder de vista,

e poedeiras pedreses viravam, sobranceiras,

as costas ao cativeiro,

depondo os ovos nos lugares mais dispares,

que vez nenhuma tinham pisado,

mostrando, arrogantes,

soberbas poses que a vida inteira lhes tinham sido interditas.

 

Que me lembre,

nem caseiro nem quaisquer outros dos homens apareceram nesse dia e,

aflitas,

as vacas mugiam impacientes,

amojos cheios que nem balões de festa majestosa,

sem viv'alma que lhes acudisse,

cães corriam de lado para lado enlouquecidos pela festa,

sendo  absurdo não entender os latidos como advertência,

 agoiro de milagres futuros que teriam,

certamente eles e eu a felicidade de vivermos.

 

Tal era a minha alegria

e a de todos quantos na quinta não estavam,

que nem dei pelo sol transpor o zénite e,

absorto, aguardava,

vendo passar filas e filas de gentes entusiasmadas,

empunhando cartazes e gritando palavras de ordem,

que hoje entendo como traídas p’lo tempo,

pois desse dia apenas a minha tia Inácia,

ainda viva,

conserva o mesmo sorriso,

um sorriso de esperança que na hora afivelou,

dia em que pela primeira vez a vi bater com a mão no peito,

e lhe soube de um filho levado para as longínquas terras do Gungunhana,

onde jazeu,

nome estranho que me assustou e cujo pavor só ultrapassei meses mais tarde.

 

Também por esses dias me foi dado a conhecer o primo Hilário,

recém chegado dessas terras remotas,

pisando pela primeira vez esta metrópole que jamais conhecera ou vira,

razão pela qual nem considerou a importância de tão banal pisadela.

 

Pelo fim de tarde a festa era já um arraial colossal,

embora eu não lhe entendesse a causa,

habituado que estava às comemorações do Natal,

Carnaval, Páscoa e Senhor dos Passos,

em que multidões se arrastavam pela vila,

apesar dessas vagas nem por sombras terem,

nem nos seus melhores dias,

chegado aos calcanhares do mar de gente que seguia agora eufórico,

 desfilando alvoroçado a meus olhos.

 

Então, como hoje,

 todos falavam mas ninguém ouvia,

 cresci portanto no meio de gentes meio surdas que prolongaram no tempo,

embalando-me e iludindo-me,

histórias de felicidade inventada,

prometida e futura,

que ainda hoje estou à espera de ver e viver e,

desse dia mágico,

ficou-me uma esperança teimosa e um optimismo militante que,

uma vida inteira vivida,

finalmente lograram acomodar no sótão das ilusões,

o mesmo sótão em que guardei os pesadelos premonitórios,

os sonhos prodigiosos mas nunca cumpridos,

e todas as recordações deslumbrantes dos presságios que nesse dia vivi.

 

É domingo neste Alentejo por cumprir-se,

 nuvens toldam o dia,

e o futuro anunciado é de um inverno glaciar

onde nem as aves se atreverão aos voos rasantes e às piruetas de outrora,

e eu, triste,

 acordo e lamento que o meu sonho não tenha continuado... 

 

XXVI - OUTRO 25 DE ABRIL ? AINDA NÃO, É UM BAMBÚRRIO

 

Ainda não é um bambúrrio,

mas um burburinho atravessou os nossos quartéis,

não tenhamos a mínima duvida,

desde a dose de protagonismo em 74,

os militares não davam acordo de si,

embalados primeiro no prestígio,

na consideração que alcançaram,

depois,

na dolce vita regimental proporcionada,

criaram barriga e maus hábitos,

saíram agora de novo das casernas,

não já para reporem a ordem das coisas,

mas reclamando o pagamento atempado do pré,

sempre pouco,

numa tentativa histriónica para garantirem privilégios

que nunca deveriam ter sido continuados,

por desnecessários num pós guerra,

guerra cuja teimosia nos exauriu.

 

Verdade que nem sei para que servem tantos

marechais, brigadeiros, majores,

generais, tenentes e coronéis,

e por aí abaixo,

sabido que actualmente,

vendemos os anéis p’ra ficarem os dedos,

muitos quartéis acabarão vendidos ao desbarato,

magalas para varrer as paradas já se ouve às chefias e,

agora que descobriram não haver pecúlio que lhes baste,

temo por nós.

 

É certo que tivemos um ponto alto em Aljubarrota,

cuja padeira fez o que tinha a fazer,

e que o recuo para o Brasil quando das invasões francesas

foi táctica que nos garantiu a vitoria,

 sem mérito mas indiscutível,

concedo terem sido momentos altos da nossa história,

mas eram outros os tempos,

 hoje,

 com dois submarinos e endividados,

tomara não venham a ser penhorados,

 se metermos um em Alqueva,

duvido o restante sirva para leiloar em caso de ameaça,

ameaça de fominha generalizada,

ou p’ra pescar lá longe o bacalhau,

onde dantes uma frota se aventurava,

tendo sido paga e abatida p’ra não fazer nada …

 

Quanto ao resto do material bélico que nos anima,

 nem sei se teria venda na feira da ladra,

andaram mal os militares,

pois se em 74 tinham do seu lado quase toda a populaça,

agora,

por nem dela se terem lembrado,

apenas colocando em causa privilégios pessoais,

olhando exclusivamente para o próprio umbigo,

ficaram sem o meu apoio e certamente o d’outros portugueses,

que teriam preferido vê-los de novo clamar,

mas decerto p’los direitos de todos nós,

nós, o célebre povo unido remember ? …

 

Porque todos nós temos algo a lamentar,

e nem ao menos as barrigas e honrarias

que no entretanto eles acumularam e tanta inveja fazem,

todos nós perdemos alguma coisa senão tudo,

uns mais, outros menos, democraticamente,

e necessidades temos todos,

que alguns só deles se lembrem,

lembra-nos Salazar e a sua divisa de dividir para reinar,

o mal é estas coisas serem faladas,

nem o governo nem qualquer tuga com dois dedos de testa,

acreditará que sejam capazes de um desiderato qualquer,

apesar das bocarras de Otelo,

causam por certo mais mossa ao governo os comentários,

a propósito de tudo e nada na comunicação social,

que as mal disfarçadas ameaças de levantamentos de rancho

a que a sua marcial indignação deu azo.

 

Mas não foi pela igualdade e solidariedade o 74 ?

não foi por isso que se bateram em Abril ?

e agora seria então pela desigualdade ?

pelos seus privilégios ?

Mas disso estamos nós fartinhos de todo !

Para esse peditório não contem comigo !

Já dei uma vez e bastante arrependido estou !

 

Assumo ser difícil ter mão nesta gentalha,

como em professores e alunos,

que desde o tempo em que tudo se resolvia à chapada

nunca mais deram descanso,

para mais,

com ministros que se portaram com civis,

como se fossem ditadores militares,

e se portam agora com os militares como se eles fossem civis,

nunca mais a bota baterá com a perdigota,

eu já me rio,

passados que são tantos anos,

das vãs glórias que o 25 de Abril nos trouxe,

e em que,

qual trouxa,

acreditei então piamente,

agora a coisa chia mais fino,

não só me admira como se aguenta sem ir abaixo este país,

que só pode ser rico por muito que nos façam crer o contrário,

somente ricos se dão ao luxo do desperdício que desde então praticamos,

desportivamente,

como me admira que,

passados tantos anos após a revolução das promessas,

continuem elas por cumprir ou abranger toda a gente,

e continuem por resolver senão todos

mas mais problemas eu aqueles com que então nos debatíamos,

mas sobre esses problemas,

nenhum dos sargentos lateiros ou generais empertigados se pronunciou,

isso é política,

e a política é para os políticos,

estamos bem defendidos creiam-me.

 

Cai nessa Vanessa !

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

XXVII – VALE A PENA FESTEJAR O 25 DE ABRIL ?

 

Não sou maniqueísta,

nem benfiquista,

nem salazarista,

simplesmente não me conformo só com estas opções,

todas serôdias,

e às quais pretendeis que responda sim ou sopas.

 

Dir-vos-ei ter a lógica mais soluções,

mais razões,

mais equações,

mais matemática,

mais geometria,

números primos,

algarismos,

algoritmos,

e magia.

 

Não sou pelo 25,

nem pelo 24 mas,

já que teimais pergunto-vos:

- Quem fechou as portas que Abril abriu ?

 

Como conseguem não lembrar,

ignorar ,

ou não ser solidários com aqueles que Abril esqueceu ?

 

Quinhentos mil p’ra rua hoje,

quinhentos mil embarcados p’ra lua amanhã,

quinhentos mil c’a cabeça debaixo duma pua,

quinhentos mil no fio dum fino arame de filigrana.

 

É muito motivo,

 muita razão,

muita gente,

 não achais ?

 

Otelo não voltaria a fazê-lo,

afirmou-o ele mesmo,

e a ser assim,

nem eu a querê-lo !

E podeis crer em mim.

 

As portas que o 25 de Abril abriu ?

Perguntai aos Salgados e a outros havaianos,

ou aos Fabianos e outros panamianos.

 

E depois é em cima de mim que vós caís ?

Tu ?

Que estás bem instalado e esqueces,

e ignoras,

tu que finges não ver o mundo lá fora ?

Tu que arvoras a consciência de um coelho,

Tu que sempre que abres a bocarra és um Dantas,

tu que festejas o 25 de Abril e me apontas o dedo,

a mim,

que não cedo.

Tu que ao apontar-me um dedo não vês,

não reparas,

não crês,

que apontados a ti ficaram três.

Tu,

um burguesinho que só pensa em si,

em si e no seu inseparável Galaxy X.

 

A mania que esta gente tem,

ou somos pelo 24,

ou pelo 25,

afirmas tu,

pomposo,

mas não sabes que há mais números ?

mais opções ?

mais alternativas ?

mais escolhas ?

Atiro eu à tua sobranceria.

 

Que culpa tenho,

que te tenham dado a pior escolha,

e ela nada te dê ?

nada nos dê ?

nada dê ?

 

… a não ser a Salgados, Varas, e outros diabos assim ?

 

E mandas as culpas para mim ?

é em cima de mim que te cais ?

és maniqueísta,

és parvo ou quê ?

Tu que p’los outros sempre fizeste nada,

é aqui que quando te ouço meu maniqueísta,

me “cresce a raiva do peito para os braços” e,

se pudesse,

ai se pudesse,

PIM PAM PUM !

Vai-te catar pá !  Sou fabiano !

XXVIII - VEMOS, OUVIMOS E LEMOS

 

“ Vemos, ouvimos e lemos…

Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos

Não podemos ignorar

 

Vemos, ouvimos e lemos

Relatórios da fome

O caminho da injustiça

A linguagem do terror …  “ (Trecho de Sophia de Mello B. A.)

 

Vivemos de ilusões,

a burocracia tolhe-nos,

alimentamo-la e ela alimenta-se de nós,

é o faz que faz sem fazer,

é o mexe mexe sem mexer,

é o discurso palavroso mas inconsequente,

é o ter a bola na mão sem saber que fazer dela,

ou com ela,

é este impasse que o Alentejo vive,

o Alentejo e o país,

em potência tudo é possível,

na prática nada se faz,

mas afinal para que serviu  Abril ?

Estávamos presos a interesses que manietavam,

 estamos manietados por interesses ?

Afinal que mudou ?

A cara dos interesseiros ?

A cara, a cor ?

E o povo pá ?

Quem disse que o povo mais ordenava pá ?

 

O país produziu mais, Abril esperançou,

porém era um esforço sem correspondência,

isto é,

era desarticulado das directrizes do ministério,

quantas vezes em contraciclo com o sector,

com a lavoura,

perdão,

a agricultura,

já que lavoura é mais uma das palavras banidas,

sintagma de tempos que nos marcaram como um estigma,

melhor socorrer-me da novilíngua surgida após Abril,

agricultura,

arte agrícola e não agrária,

outro vocábulo de conotação negativa e igualmente banido,

mas falávamos de contraciclo,

como quem diz de directrizes contra-revolucionárias,

desfasadas das necessidades de quem trabalhava a terra,

da produção agrícola,

muita culpa era devida a curta duração dos governos,

derivada da instabilidade governativa vivida,

onde e quando terão sido dados os passos,

enoveladas as voltas,

misturadas as cores,

hoje parece impossível destrinçar o procurado,

e o que pretendemos entender,

tão rebuscadas e complicadas as situações,

 onde o caos se apresenta a cada dia que passa,

como se todos tivessem vivido e agido não conforme,

mas deliberadamente,

 no sentido de dar a este país a ausência de rumo,

a desigualdade,

a pior distribuição de rendimentos do mundo e,

uma democracia de pechisbeque,

castigadora de quem alguma coisa faça,

premiando chorudamente os réditos da trapaça.

 

Era uma vez algo, alguém,

alguma coisa algures explicará o desnorte do país,

sem objectivos, sem desígnios,

 sem futuro, e essa imagem, esse quadro,

essa pintura do Alentejo,

será encontrada entre Barrancos e Baleizão,

entre o Tejo e o Guadiana,

entre Silves e Almourol,

nestas terras de todos e de ninguém,

onde se jogou e joga uma luta de classes e de interesses,

ondas de choque subterrâneas colidindo por baixo e,

 à vista da constituição mais democrática do mundo,

mas se observa que de tão democrática,

 é na prática demasiado elástica,

demasiado permissiva,

demasiado compassiva,

comprometida,

condescendente,  indolente,

ridente ridícula,

e afinal de contas parece não nos servir para nada.

Era uma vez um povo sofrido…

um povo maltês, de malteses,

um povo  sofrendo  cantarolando,

quem não está de alma e coração com estes cantadores ?

um povo cantando um  “cante” sentido,

sentido por este povo muito antes da reconquista cristã,

desde a era recuada de mercadores gregos e fenícios,

da presença romana neste canto da península,

e ligada à proverbial indolência dos árabes que daqui corremos.

Na reconquista cristã vastas terras foram dadas em aforamento,

dadas de foral ou de enfiteuse,

os coutos de homiziados,

as doações a ordens religioso militares,

tudo processos que geraram grandes,

extensas e vastas propriedades,

ou herdades,

como as que por aqui abundam e

tão contestadas foram quando do 25 de Abril.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

XXIX – CANTO E DOR

 

O cante é sobretudo o sentir deste povo,

subjugado à terra e aos senhores dela,

cante dum povo servo da gleba,

que encontrou no lamento assim expiado uma fórmula,

uma forma de sublimação da raiva e da submissão,

cante é expressão da frustração e da dor desse martírio,

da sua exploração, do seu jugo

e dessa aceitação calada e conformada,

o cante é portanto mais que um lamento,

e muito mais que  mera cantata nostálgica,

o cante é sentimento,

o cante é geografia peninsular,

é sociologia, psicologia, economia, história.

 

Mas, este o cante afinal que é ?

voltemos de novo a ele,

o cante é o mesmo e é igual,

se diferente poderá ser somente por questão de perspectiva,

 muitos de nós o olham de prismas diversos,

agora que galardoado e guindado a património mundial

parecer-nos-á edifício majestático que urge abençoar,

das fundações aos píncaros,

porém,

o cante tem um  carácter tímido,

intimista, ou fechado,

o cante é lamúria, queixume,

é submissão, é aceitação,

o cante não é hino à luta,

o cante não é protesto,

o cante é testemunho de oitocentos anos de sofrimento.

 

Outros povos já se teriam erguido e lutado,

 o alentejano não,

este cante é sinónimo de solidariedade na resignação,

não é nem nunca foi um grito de Ipiranga,

este cante tautológico é  o ideal de subjugação

é o sonho que o capitalismo idealizou,

apreciou, e com que sempre sonhou,

talvez no Alentejo não sejamos capazes de mudar,

talvez nunca tenhamos sido tão solidários,

como somos à volta do cante,

 mas nunca para outros fins igualmente comuns,

talvez só agora para  louvar tamanha tontice,

mas enfim,

prefiro outros hinos,

outros cantes,

de exaltação à luta e à vitória,

de glória e advento da justiça sobre injustiças de séculos…

 

 

Afinal qual o significado profundo do cante ?

o cante é intimista, individualista,

não me serve, sou plural altruísta e extrovertido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

XXX – ALENTEJO FAROESTE

 

Era uma vez um caminhante alentejano …

um maltês que não migrou p’ra fora,

migrou para dentro,

foi para fora cá dentro,

 p’ra Lisboa e arredores,

baptizar a zona dos saloios,

a cintura industrial da capital,

nem para o barco p’ro Brasil tinha dinheiro,

o Alentejo tão extenso,  enorme, imenso,

aguardando a ocupação p’lo homem,

a colonização interna feita junta,

a repartição dessa região despovoada,

a distribuição de terras nessa paisagem desumanizada,

onde as campanhas do trigo dinamizaram o  povoamento,

herdades abandonadas há seculos foram aforadas,

foros deste, foros daquele, foros daqui, foros dali,

e a soberba p’l a posse da terra voltou a colocá-los frente a frente,

proprietários ou lavradores, seareiros arrendatários, e trabalhadores,

ou serventuários, os velhos servos da gleba,

que em épocas de fome percorreram o Alentejo pedindo,

à esmola,

e em caso apertado pilhando,

roubando, assaltando, sobrevivendo,

dormindo ao relento,

vidas de malteses,

a extensão do Alentejo protegendo e encorajando,

ditando a sorte e o azar, a sina,

protegendo e tornando anónimo,

secreto, e

formaram-se bandos,

nasceram bandoleiros,

chegaram a fazer dele o oeste ou faroeste da península. 

 

Era pois uma vez um Alentejo de malteses,

um Alentejo em fogo,

foco de instabilidade social e,

ou,

coito de aventureiros,

durante demasiados anos,

tantos que a revolução de 1926 foi aplaudida,

paradoxalmente foi aplaudida e bem recebida,

esse 28 de Maio ficou triste mas eternamente na história,

é que não só se revestiu de grande apoio popular mas

incrivelmente trouxe a paz  a campos e cidades, 

a muito almejada paz,

até ali reinara o caos,

a politiquice partidária,

o amanha-te tu agora que depois eu,

sem alternativa nem alternância mas muita ganância,

deriva daí a desmedida aceitação do Estado Novo,

estado que no seu inicio foi aplaudido,

daí e da colonização das terras,

do estabelecimento da campanha do trigo,

da transformação das altercações por corpos da ordem,

pela transformação da velha Guarda Municipal,

metamorfoseada no novel corpo da Guarda Nacional Republicana,

por sua vez expandida pelos campos, 

levando ordem à vida das pessoas e ao país,

nesse momento único fora quebrado o ciclo miséria e caos,

o Estado Novo adaptou-se,

substituiu-se aos partidos desordeiros e aventureiros,

substituiu-se aos partidos tornados donos disto,

o Estado Novo foi  a jeito, soube ir a jeito,

ao encontro das necessidades primárias deste povo,

pão, paz, habitação e ordem,

soube manter e reforçar durante anos esses mecanismos,

criou e afinou refinando-os os aparelhos de defesa do regime,

e os  regimentais, os marciais e os generais,

vieram as tais conversas em família,

veio o reumatismo e a cegueira,

veio o olho p’ra guardar a carteira,

e contra isso veio a vacina,

porém estragada,

sem validade já,

ultrapassada,

fora de prazo,

do 25 de Abril…

e agora que fazer ?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

XXXI – MEDO & ESPERANÇA

Era uma vez um maltês a quem,

agora mandaram catar-se, e calar-se,

caluda e vai-te catar pá !

Eu ?

Estão falando  comigo ?

Connosco ?

Sou fabiano, somos fabianos,

e,

ao contrário do que acontecera em quinhentos

em que por ficar sem saber que fazer, fomos,

vieram agora os dias em que ficámos sem saber

o que fazer,

para onde ir,

onde ficar,

ou se voltar,

ficámos no nada,

vivendo na ignorância ,

enleados em nada e em tudo,

tudo perdendo e nada ganhando,

delapidando o reino moral e o país real,

ditando sabuja sorte aos futuros vindouros,

nada ganhando, tudo perdendo, dedos e anéis,

engordando os outros e emagrecendo os nossos,

queimando património, acirrando egoísmos, individualismos,

não,

não sei que fazer agora nem para onde irmos,

só sei que não iremos a lado algum.

 

Sim, porque existe medo,

medo do futuro,

nada parece ter futuro.

 

Desde o Big-Bang inicial que o cosmos não pára,

expande-se,

não indolentemente,

como tantas vezes o comezinho correr das nossas vidas e dias,

mas expande-se,

nem casuística nem aleatoriamente,

expande-se simplesmente,

tem o destino traçado,

diria mesmo um futuro que podemos prever.

 

Não são assim os nossos dias,

nem sequer o nosso futuro,

que por vezes imagino tão caótico

quanto o teórico e incerto caos definido como origem de tudo.

 

No início era o Verbo,

no início era eu,

esse eu que,

com a mesma aparente passividade do infinito,

moldada em mim, que moldei e moldam,

esse eu a quem transmutam os dias,

o porvir,

umas vezes tornando ilusão o que foi,

outras inacreditável o presente e até mesmo o futuro.

 

É-me impossível adivinhá-lo,

quando muito tenho dele uma ideia feita,

preconcebida,

projecção das rotinas

pisadas e repisadas na constância de uma vida vivida que,

como qualquer outro aceito,

como qualquer outro idealizo,

cumpro,

e à qual procuro aditar a irrelevância da exaltação,

ou a alegria dos momentos em que me julgo feliz.

 

Como é relativa a apreciação que cada um faz desses momentos !

Não fora o sonho e eles seriam tão válidos como as falácias fiduciárias de que,

em momentos de aperto, as sociedades tanta vez se socorrem !

Não fossem os sonhos e como suportaríamos o tédio dos dias,

a ocorrência destas vidas simples,

balizadas, mais dos outros que nossas ?

 

Por isso sonho,

com os dias futuros e me envolvo,

sim, neles me envolvo,

qual molusco em casca dura,

e os torno fim e meta, objectivo e escape.

 

E é sempre na miríade de momentos felizes,

que me sonho e julgo centelha fugidia,

fugindo da girândola absurda em que nos querem fazer crer vivermos,

acontece é crer-me e pensar-me passeando  à beira rio,

olhando feliz e despretensiosamente os campanários da urbe,

os bandos de aves cruzando os céus

num V cujo vértice lhes aponta rumo e destino,

que de forma inata conhecem, e,

nesse item, me superam, nos superam,

vulgares mortais

a quem foi dado o livre arbítrio e jamais soubemos que fazer com ele.

 

 

 

Por isso, ao invés das certezas que às aves invejamos,

nos quedamos sonhando,

incapazes de tomar uma decisão,

 ou crer numa certeza tornada aspiração e,

repetidamente, teimamos nos mesmos sonhos como se,

desse modo,

pudessem  alterar-se em nossas mãos estas linhas traçando o futuro.

 

Tornasse uma varinha mágica os sonhos realidade e,

certamente me veriam de mãos dadas,

novamente visitando os lugares em sonhos percorridos,

ou outros para onde a luxúria dessas miragens me conduzisse,

feito príncipe encantado ou encantado com a beleza desses dias,

como se num outro universo paralelo,

ou numa outra vida, ou dimensão,

de cujos céus roubaria as estrelas que poria nos ombros,

como dragonas de luz,

aliviando as dores do despovoamento,

sofrimentos e responsabilidades assumidas  que,

nem o carácter,

nem a personalidade a que me sujeito me permitem alijar.

 

Então, então nem as estradas seriam negras,

antes pautas musicais que um violão para mim conjugasse,

nas quais caminharia,

com a destreza e velocidade dos caracóis que nos sonhos me acompanham,

tal qual os dias sem fim,

e as nuvens ou escolhos com que o sonhar me suplicia.

 

Seria decerto eu mesmo e um outro,

sem passado nem peso,

eternamente sonhando a realidade em que me sonho como se,

numa Primavera sem fim  nem princípio,

os odores me toldassem a razão perpetuamente,

soltassem nela flores sempre viçosas,

belas, coloridas e risonhas,

num chão tornado espelho mágico qual história do feiticeiro de OZ.

 

Assim sim, desceria das nuvens e caminharia sem medo.

 

Mas por que tenho eu medo?

De que tenho eu medo?

Por que até já de sonhar tenho agora medo?

Quem me diz?

 

Era uma vez eu e ela caminhando lado a lado …

caminhando e falando em surdina, ombro a ombro,

a medo, sim a medo,

 - Tu sonhas-te,

mas não te sonhas envolta na tristeza dos dias,

dias que te maceraram o espírito inquietando-te o futuro,

sei que não,

sonhas-te uma dádiva de entrega e partilha.

 

Aprendeste há muito, como eu aprendi,

que o mundo não é de cada um de nós,

que o mundo é grande, que o mundo somos todos,

apraz-me saber que a dor que te crestou o passado não te diminuiu a esperança,

sim, a esperança,

essa última meta que desejamos atingir

sem que nunca a percamos de vista e que  após cumprida,

queremos sempre mais longe,

e à qual tornamos a cada dia a fasquia mais alta,

para que nunca o desafio se perca,

para que jamais deixemos de a ter como fim,

como meta, como alvo, como uma razão de vida, e, nisso já serás mestra.

 

 - Tens razão sim, sei que sim.

 

- A dor e o sofrimento passados não te roubaram a esperança,

deram-te alento,

o alento do qual todos deveríamos fazer bandeira,

um estandarte de luta pelo cumprimento de nós,

dos ideais que nos animam,

de projectos e até de ilusões.

 

Ah ! Ilusões !

 

Quantas sofrestes e te marcaram os dias ou inquietaram as noites ?

 - E quem não as tem ou não teve ?

- E quem não as tem ou não teve ? 

A arte é sobreviver-lhes, aprender com elas,

usá-las em proveito próprio,

para que os ensinamentos delas retirados nos fortaleçam,

aprender custa, e nem sempre somente tempo ou dinheiro,

as maiores lições das nossas vidas,

quantas vezes não são pagas com lágrimas e sangue ?

Frustrações, desilusões, sonhos desfeitos ?

 

E o mundo não pára, trucida e nunca pára,

não nos deixemos soçobrar,

façamos com que o que nos não mata nos torne mais fortes,

resistamos, seguremos com esperança a esperança,

quantas vezes ela a única mão amiga que nos resta e à qual nos agarramos,

não com o desespero que nos tomba,

mas com o ímpeto que impele à vida, ao futuro, à superação.

 – Exacto !

 

Palavra-chave essa, superação,

da dor, do sofrimento,

de mágoas e traumas

com que os desaires da vida e desilusões nos confrontam,

ergamo-nos a cada queda, ergamos a esperança,

lancemos mão de novo vigor,

nova atitude perante as experiências com que a vida nos confronta.

 

 – Tal e qual,

acreditemos que há sempre algo ou alguém que partilhou vivências idênticas,

dores mesmas,

e estará disposto e precisado igualmente de mão amiga,

compreensão no sofrimento e entreajuda na empatia,

tão exigida como imperiosa para o levantar do chão,

e fazer frente à vida rumo a novos ideais.

 

 – Adoro-te,

 

ao ouvir-te acredito que nunca estamos sós,

nunca estaremos tão sós como quando,

numa concha protectora nos isolarmos do mundo que nos rodeia,

dos demais.

 - Afinal entendes-me,

 

 não por acaso o “homem” é um animal social,

cujo ideal de convivência é o clã, as interligações pessoais,

não fora assim e há muito a humanidade se extinguira,

de tédio,

na incapacidade de juntos construirmos o devir,

teria sucumbido no confronto às adversidades,

sempre presentes e sempre constantes, ou,

em último grau,

num manifesto desinteresse na reprodução da espécie.

 

Abraçados caminhámos sem rumo nem tempo,

 e sem medo,

sem sabermos como nos vimos nesse entardecer de fim de verão

passeando neste bosque que,

do Convento dos frades cartuxos leva ao cabeço de S. Bento,

local e mirante de onde a vista abarca toda a cidade.

 

Subimos a encosta de mãos dadas,

sorrindo, gracejando,

amparando-nos mutuamente como se toda a vida estivesse à nossa frente,

e dependente desse apoio, desses sorrisos e graças.

 

Do cimo contemplámos as luzes da cidade que,

alternadamente,

se iam acendendo nos vários bairros visíveis,

como estrelas coloridas numa noite de fogachos de artifício.

 

Lembro que, no alto, ao lusco-fusco do entardecer,

uma brisa soprava indolente, e tu,

que somente envergavas leve blusa plissada,

sentiste o ar frio roçar-te a pele sedosa, afagando-te levemente e,

aproveitando os meus braços estendidos,

tentando abarcar toda a cidade visível,

terna e meiga neles te acolheste,

pareceu-me assim desejares ficar eternamente.

 

Senti em ti o tremor frio que te arrepiava os braços nus,

o calor das coxas que contra mim comprimias na busca da excitação do meu corpo

somente denunciada pelo rubor no meu rosto,

mas que,

mordido pela sombra do anoitecer, eu escondia.

Docemente,

levado pelo odor que de ti emanava,

mordisquei-te a orelha,

 rocei na maciez da tua face a minha face e,

quando já nem ouvia os murmúrios exalados p’los teus lábios

vermelhos de cor e tensão,

aceitei a boca que me oferecias procurando com a língua a tua língua,

cuja ânsia e avidez denunciavam quanta estabilidade paz e amor sonhavas.

 

Na tontura do mesmo abraço senti hirtos os bicos dos teus seios, e,

não sabendo se do frio se de tanta ternura derramada nessa noite de ilusão,

contra mim te apertei e acariciei até que,

os caracóis dourados do teu cabelo,

que a noite entretanto derramada transformara em véu de odalisca,

na minha barba há muito escanhoada se prenderam.

No tempo suspenso do infinito nos quedámos e,

sob a protecção da miríade de estrelas com que o universo nessa noite nos prendou,

um no outro nos acolhemos até que,

as ilusões de ambos separar-nos se negaram,

nuvem alva nos envolveu e,

se numa alvorada fresca do fim do verão observarmos,

ver-nos-emos decerto na aurora dos dias,

sobre a névoa matinal, fugindo ao sol que desponta.

 

Nessa nuvem ténue e imperceptível em que nos acolhemos,

eternizando ilusões e sonhos,

a qual recusamos há séculos abandonar,

recolhidos num último reduto,

e em promessas impossíveis de cumprir neste mundo em que,

lógica e irracionalidade respondem por todos os pecados

atrocidades e males de que apesar da tentação nos desviamos

mas onde jamais deixaremos de cair,

tu soubeste aquietar-me,

sublimar em mim o medo,

aquietar um maltês,

tirar-lhe o temor,

de vez.

                                                                               FIM


Agradecimntos; á Luisinha, à Leonor e à Cátea.


Capa, pintura de Fátima Magalhães, acrílico sobre tela 30x30